João Paulo emitiu a senha que o capitão Joaquim saboreou como “Vinho do Porto”: como a rádio uniu o golpe de 1974
A 24 de abril de 1974, a rádio juntou dois homens que se desconheciam. João Paulo Diniz deu voz à senha, que muitos ainda acreditam ter sido a música de Paulo de Carvalho. Joaquim Correia Bernardo ouvia-a para dar seguimento ao plano de Otelo Saraiva de Carvalho. A senha foi escutada por quem poderia travar o golpe.
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“Faltam cinco minutos para as 23 horas. O Paulo de Carvalho com Eurofestival de 74: ‘E depois do adeus’”, foram palavras que entraram para a história na noite de 24 para 25 de abril de 1974. A senha, reproduzida na então Rádio Peninsular por João Paulo Diniz, pôs militares a caminho de Lisboa para derrubar a mais longa ditadura da Europa.
Na altura com 25 anos, o radialista conta à TSF que “foi um momento inesquecível” da sua vida: “Senti uma grande responsabilidade. Tinha de cumprir aquilo que me tinha sido solicitado e que tinha ficado combinado.”
A missão tinha-lhe sido confiada dois dias antes pelo então capitão da Força Aérea, Costa Martins, mas o primeiro encontro, à saída dos estúdios do Rádio Clube Português, outro espaço no qual João Paulo trabalhava, não correu bem. O militar aliciou-o a ir ao carro que tinha trazido, sobre o pretexto de ver uns novos discos que tinha trazido de Israel. O jovem radialista aceitou, mas desconfiado.
“Entrei no carro dele, mas deixei a porta aberta e a perna direita de fora. Foi aí que me disse que precisava que desse um sinal na rádio”, lembra João Paulo Diniz, referindo que Costa Martins explicou-lhe que o objetivo seria “fazer um Golpe de Estado, instaurar uma democracia e acabar com a Guerra Colonial”.
João Paulo Diniz insinuou depois que o militar seria da PIDE e, por segurança, recusou inicialmente o convite para participar no golpe. Costa Martins insistiu e, perante a estranheza do radialista, sugeriu um segundo encontro, mas com Otelo Saraiva de Carvalho, o estratega da operação, que João Paulo Diniz tinha conhecido na Guiné, quando lá esteve na Guerra Colonial.
“Ele precisava que transmitisse uma cantiga do Zeca Afonso. E eu disse-lhe que não fazia sentido, porque o Zeca estava proibidíssimo. Foi então que sugeri uma cantiga que não levantava suspeitas e que passava muitas vezes na rádio: o Paulo de Carvalho com ‘E Depois do Adeus’”, lembra João Paulo Diniz.
Foi também numa conversa com Otelo Saraiva de Carvalho, na casa do “cérebro do golpe” em Oeiras, que o jovem capitão Joaquim Correia Bernardo, soube da senha que iria ouvir na noite de 24 de abril: “Cheguei cinco minutos antes de ir para o ar. Fazia questão de a ouvir e, por isso, quando cheguei ao posto de comando, a senha apareceu três ou quatro minutos depois.”
Correia Bernardo ficou responsável pela segurança da Escola Prática de Cavalaria de Santarém (EPC) e, à semelhança de Salgueiro Maia, foi um dos capitães que escutou a senha, tal como quem poderia travar o que estava em curso.
“Um dos capitães, ligados ao movimento, convidou o comandante [do quartel] a ir jantar a casa dele, isto porque precisávamos que não estivesse presente para a operação arrancar. Ligou depois a rádio, durante o jantar, e trouxe-o para a EPC para ser detido depois. O comandante não fazia a mínima ideia do que se estava a passar. A comer o seu bife com batatas fritas não se apercebeu daquilo”, recorda, entre risos, o agora Coronel.
Certo é que assim que ouviram o sinal na rádio, as tropas movimentaram-se no maior dos silêncios, mas ainda houve tempo para euforia: “Houve abraços. Aquilo [a senha] foi um aquecimento interior. Foi aquele copo de vinho do Porto que bebemos e aquece por dentro. A primeira senha marcou-nos profundamente.”
Do outro lado da antena, João Paulo Diniz assumia a responsabilidade, com a consciência de que o que tinha sido combinado podia ter corrido mal: “O Otelo tinha-me disto que isto ia correr bem, ao que respondi: ‘E se correr mal?’. Disse-me logo a seguir: ‘Vai correr bem, mas se correr mal é simples, nós somos militares vamos presos para o Forte da Trafaria, tu és civil, vais preso para o Forte de Caxias. Respondi: ‘Ok, boa sorte’.” A frase foi premonitória, já que a sorte esteve mesmo do lado dos revoltosos.