José Palmeira: "Não se pode banalizar as eleições, nem se pode brincar aos governos"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres em Portugal fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre a importância da democracia participativa. O politólogo José Palmeira espera que o povo envie uma mensagem ao poder político com a ida às urnas no dia 18 de maio
Corpo do artigo
O voto é uma das principais bases do estudo da ciência política e, para o politólogo José Palmeira, é também aquilo que os eleitores devem usar para enviar uma mensagem aos políticos e aos partidos.
"Não devem ser os outros a decidir um futuro que implica connosco. Isto é, devemos ser nós também a ter a nossa palavra a dizer. Não devemos colocar na mão dos outros o nosso futuro. Eu diria que isso deve acontecer em qualquer circunstância e sobretudo numa altura em que o país começa a ter eleições sucessivas que podem conduzir a um certo cansaço eleitoral e, com isso, a própria democracia sair beliscada. Seria extremamente positivo se os eleitores participassem de forma massiva no próximo ato eleitoral, porque isso também seria uma mensagem que dariam aos partidos de que também devem ser responsáveis, na medida em que não se pode banalizar as eleições, nem se pode brincar aos governos", disse José Palmeira à TSF, professor de Ciência Política na Universidade do Minho.
O politólogo também desfaz algumas confusões: "O voto permite aos eleitores escolherem quem querem que os represente no Parlamento. Convém, aliás, aqui desfazer um equívoco. É que nós não elegemos o primeiro-ministro. Nós não elegemos o Governo. O primeiro-ministro não é eleito, o Governo não é eleito. Portanto, nós elegemos deputado."
Recuando 51 anos no tempo, José Palmeira explica porque é que o Estado Novo foi um dos últimos regimes autoritários da Europa ocidental a caírem.
"A queda do regime português, um regime de características autoritárias, em 25 de abril de 1974 aconteceu, de facto, num período já muito tardio, em grande medida devido ao facto do regime ser sustentado numa política colonialista. Eu diria que um dos grandes sustentáculos do regime eram as forças armadas. As forças armadas estavam envolvidas numa guerra colonial e, nesse sentido, havia aqui um objetivo de manter um país de características ultramarinas. E isso fez com que tivesse fracassada a tentativa de Marcelo Caetano, que chegou ao poder na sequência da morte de Oliveira Salazar, em 1968. Marcelo Caetano foi ele próprio incapaz de mudar as características autoritárias do regime, embora tenha empreendido uma certa abertura. Daí que esse período, até 1974, ficasse conhecido pela ‘Primavera Marcelista’", analisa.
Mas não foi só isso que levou à queda da ditadura: "Evoluíram nesse período personalidades que acabaram por ser figuras também de relevo após a instauração da democracia, como é o caso de Sá Carneiro, que foi deputado da chamada então Ala Liberal na União Nacional. Portanto, estes aspetos relacionados ainda com uma política Internacional muito fechada, vivíamos no período da Guerra Fria, em que o importante era o apoio aos blocos, no caso de Portugal ao bloco Ocidental, e também o facto da Espanha ter um regime semelhante à época, com o franquismo, fez com que a queda do regime só acontecesse bastante mais tarde em Portugal."
No ano seguinte, tensões políticas levaram a uma constante instabilidade política e social no país, no entanto, as primeiras eleições livres foram realizadas exatamente um ano depois do 25 de Abril.
"Isso é mérito, de certa forma, do Movimento das Forças Armadas. É verdade que o MFA tinha várias alas, umas mais radicais, ligadas sobretudo ao Concelho da Revolução, e umas mais moderadas, ligadas ao chamado ‘Grupo dos Nove’, liderado por Melo Antunes, e acabou por prevalecer essa ala mais moderada. Por outro lado, dentro das próprias Forças Armadas, houve divisões. Designadamente envolvendo a figura do General Spínola e generais considerados para a época mais revolucionários, digamos assim, que queriam uma via diferente para o regime. Tivemos designadamente o 25 de Novembro de 1975. Nesse mesmo ano obtivemos o 11 de Março, que foi marcado por um conjunto de nacionalizações. No fundo, estamos a falar do chamado Processo Revolucionário Em Curso [PREC]", enumera.
Mesmo assim, a democracia venceu: "Apesar de tudo, foi possível realizar eleições democráticas 1975 e essas eleições acabaram por inaugurar uma nova era, na medida em que foi aprovada a primeira Constituição democrática e, a partir daí, sobretudo com o início das negociações para a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, Portugal acabou por entrar nalguma normalidade, depois de um período revolucionário que é normal, digamos assim, quando há um golpe de Estado."
Da Assembleia Constituinte saiu, como o nome indica, a Constituição, aprovada a 2 de abril de 1976. E foi aí que os deputados escolheram, olhando para o passado, que tipo de regime iria ser Portugal.
"A escolha do sistema de Governo semipresidencialista tem a ver com o facto de os constituintes não queriam que o novo regime tivesse semelhanças com o regime anterior, que era um regime muito personalizado na pessoa de António Oliveira Salazar, e o Presidencialismo, por exemplo, é um sistema de governo personalizado no Presidente. Mas também tinha a imagem da instabilidade política em Portugal na Primeira República, entre 1910 e que acabou com o golpe militar de 28 de maio de 1926, que implantou um regime autoritário, portanto, o parlamentarismo, o sistema de governo parlamentar, tinha, digamos assim, na altura também uma conotação negativa, por haver esse histórico da instabilidade permanente. Então foi-se para um sistema misto", explica.
Esse sistema semipresidencialista acabou por assentar-se e a candidatura à Comunidade Europeia foi uma grande ajuda para que isso acontecesse, ainda que tenha havido alguns precalços pelo caminho.
"Houve o fim da Guerra Fria, houve um processo de globalização. O regime acabou por se institucionalizar de uma forma coerente com aquilo que são as características dos países com os quais Portugal acabou por conviver primeiro nas Comunidades Europeias, na atual União Europeia. Nesse sentido, Portugal acabou por beneficiar, digamos assim, de um processo no qual estava integrado e acabou, por via disso, pese embora algumas crises, algumas intervenções do Fundo Monetário Internacional, de alguns contextos de crise económica, acabou por chegar a bom porto e neste momento é um país completamente integrado no espaço europeu", considera José Palmeira.
Nessas eleições para a Assembleia Constituinte houve uma afluência às urnas que nunca mais se repetiu: "Vínhamos de um período onde os atos eleitorais eram altamente condicionados, onde não havia liberdade de expressão, onde não havia democracia. Portanto, quando os portugueses têm oportunidade de votar livremente, fazem-no de uma forma massiva e foi isso que aconteceu. Depois, naturalmente que essa expectativa inicial de um Estado de direito democrático participativo, criou-se uma certa ilusão, até de uma certa utopia, que depois, com o passar do tempo, acabou por se desmoronar. Eu diria que Portugal acabou por se normalizar com os outros países europeus e ocidentais Os índices de participação são normais para aqueles países onde o voto não é obrigatório. A percentagem de abstenção umas vezes maior, outras vezes menor, nem sempre corretamente medida, porque nem sempre os cadernos eleitorais estavam devidamente atualizados e, portanto, muitas vezes as percentagens apuradas não correspondiam à realidade. Mas seja como for, eu acho que o país acabou por ter um índice de participação que é comum àquilo que acontece na maior parte dos países europeus e ocidentais."
O politólogo explana que a maior polarização política leva a que o povo tenha mais vontade de ir às urnas.
"Há momentos, de facto, de particular polarização e esses momentos são mobilizadores do eleitorado. Por exemplo, essa disputa presidencial entre Mário Soares e Freitas do Amaral foi uma eleição muito polarizada. Aliás, foi a primeira e única vez até agora que houve uma segunda volta nas eleições presidenciais. E, sempre que há essa polarização, a tendência é, de facto, para haver uma maior participação. E o mesmo tem acontecido em termos de eleições legislativas", disse, dando o exemplo das últimas eleições legislativas, em que a taxa de abstenção recuou.
Portugal está em plena campanha eleitoral para as legislativas de 18 de maio e os partidos levam a cabo as tradicionais arruadas e comícios, mas conseguem votos e vitórias eleitorais nessas ações?
"O número de votos que se podem ganhar neste tipo de campanhas é residual. Agora, se uma eleição for muito disputada, por muitos poucos votos que se conquistem por essa via para os partidos que os conquistem, é sempre positivo. Eu diria que as campanhas têm mais um fator de mobilização, isto é, levar sobretudo aqueles que são já apaniguados a ir votar no dia das eleições. Portanto, aquilo que as máquinas partidárias procuram é mobilizar os eleitores e essas ações de rua têm sobretudo esse objetivo."
Hoje também vivemos tempos diferentes em que as campanhas eleitorais têm outras formas: "Vivemos numa era onde esse tipo de campanhas de rua já não tem o mesmo efeito do que tinham no passado. Hoje, as campanhas passam-se muito na televisão e nas rádios. E, nesse sentido, os eleitores estão mais atentos, seja aos debates televisivos que têm tido uma audiência que tem muito significativa, quer porque hoje em dia, ao contrário do que acontecia em 1975 ou mesmo em 2005, nós temos um acesso à informação muito maior. Nós temos canais de informação 24 horas por dia, nós temos internet, nós temos rádio, redes sociais. O cidadão informa-se de uma forma muito mais democrática, tem acesso muito mais fácil à informação ou se a quiser procurar ou, mesmo que não a queira procurar, sobretudo no caso da televisão, ela vem ter como eleitor. As campanhas eleitorais já não têm o mesmo efeito porque há formas mais fáceis de chegar ao eleitorado."
E ainda há a velha questão sobre se o dia de reflexão continua a fazer sentido.
"Eu diria que tem a vida mais como uma tradição do que outra coisa, porque se os eleitores podem votar oito dias antes com o voto antecipado, aí não há dia de reflexão. Portanto, o dia da reflexão tem mais como objetivo, digamos assim, fazer uma pausa nas campanhas para que o eleitor não esteja a ser incomodado, se não é permitida a expressão, pelos partidos até ao momento em que estão a votar. Porque não tem outro efeito. Poucas pessoas vão reservar esse dia para pensar em quem é que vão votar", argumenta.
Nas eleições mais recentes temos visto que as sondagens não são 100% fiáveis, como as que davam o PSD de Rui Rio muito perto do PS em 2022 e acabaram em maioria absoluta de António Costa, ou as que davam a derrota mais do que certa de Carlos Moedas nas autárquicas do ano anterior.
José Palmeira explica: "Não nos podemos esquecer que há um certo dinamismo que as sondagens muitas vezes não captam, porque se costuma dizer que a sondagem é uma fotografia, logo capta o momento e pode haver momentos posteriores que alterem o pensamento dos eleitores. Por outro lado, as sondagens baseiam se numa amostra e a amostra, por muito qualificada que seja, pode não reproduzir a realidade. Por outro lado, também temos que ter consciência que as sondagens influenciam o eleitor. Isto é, uma sondagem ao apontar para determinado resultado, pode fazer com que o eleitor vote de forma estratégica. Pode não votar no partido da sua simpatia, sobretudo se esse partido for um partido que não tem possibilidades de aceder à governação, por exemplo, e votar, pelo contrário, no partido que está mais próximo do seu, mas que tem que tem possibilidade de exercer a governação."
Mas as sondagens têm relevância informativa para os cidadãos? "Mais do que aos cidadãos, eu acho que as sondagens interessam é aos partidos políticos, aos concorrentes. Por quê? Porque eles muitas vezes moldam a sua estratégia em função das sondagens. E, se repararmos, há sondagens que vão ao ponto de dizer que as pessoas entre os 18 e os 35 anos tendem a votar neste partido, as pessoas mais velhas tendem a votar naquele partido. E muitas vezes os partidos acabam por orientar as suas mensagens para aqueles escalões etários onde à priori aparecem como estando pior colocados no sentido de procurarem inverter essa situação. Por outro lado, os próprios partidos realizam sondagens. Não são apenas as sondagens que são públicas. Existem também sondagens que os próprios partidos efetuam e, portanto, eles sabem quais são o tipo de eleitores em que têm que fazer um maior investimento em termos eleitorais."
A nível de governabilidade, a fragmentação da Assembleia da República e o crescimento do Chega têm dificultado a criação de maiorias estáveis.
"O caso do Chega é que veio alterar aquilo que era uma característica do nosso Parlamento, que era haver dois partidos, PS e PSD, que tinham um ascendente muito grande sobre os restantes. Agora há um terceiro grande partido, o Chega, que de facto pode em função do que seja a sua conduta, criar maior ou menores dificuldades em termos de governabilidade. Aquilo que assistimos no último Parlamento foi precisamente a situações dessas (...) É verdade que é difícil garantir a governabilidade como um partido que é rejeitado por todos os outros. É rejeitado sobretudo em termos de positividade, isto é, em termos de poder integrar uma coligação do Governo, por exemplo. Nesse sentido, isto torna mais difícil a obtenção de maiorias", entende.
Ainda assim, José Palmeira avisa que a atuação do partido de André Ventura pode ter consequências negativas no eleitorado.
"Também é verdade que os eleitores se adaptam a todas as situações. Por exemplo, o Chega pode ser penalizado pelo facto de ter contribuído para a queda de um governo de centro-direita. Vamos ver o resultado das próximas eleições. As sondagens, para já, numa apontam propriamente para aí, mas vamos ter que aguardar pelos resultados finais. O Chega tem dois tipos de eleitores. Tem o eleitor muito conservador que pela primeira vez encontrou um partido, digamos assim, que representa os seus princípios. E tem também um outro tipo de eleitores, que são os eleitores de protesto que estão contra o sistema político. Esses eleitores às vezes votavam de protesto no Bloco de Esquerda no PCP e agora a forma de protestarem é no Chega, porque o Chega é mais vocal, é mais extremista ainda do que os outros", conclui.
Depois de uma revolução quase sem sangue, Portugal está há 50 anos a utilizar a arma mais forte que o povo tem: o voto. A TSF convida 25 personalidades a falarem sobre a importância da participação dos eleitores. Para ouvir todos os dias na antena da TSF de manhã, à tarde e à noite, e a qualquer hora em tsf.pt