JP Simões sobre o voto: "É a única forma que as pessoas têm de serem soberanas. Uma enorme catarata começa com uma gota de água"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres em Portugal fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre a importância da democracia participativa. JP Simões quis trazer para a atualidade a arte de José Mário Branco e diz que o voto é a forma de as pessoas se manifestarem
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A música também teve um papel decisivo para que hoje os portugueses pudessem usar o voto como uma arma. Aliás, todos os anos a Grândola, Vila Morena é ouvida e reproduzida vezes e vezes sem conta nas comemorações do 25 de Abril. Tal como Zeca Afonso, uma das vozes mais importantes da luta cantada foi José Mário Branco, cantor e compositor que JP Simões tem vindo a homenagear há largos anos, principalmente no último. O músico acredita que as pessoas são um ponto pequeno, mas importante, num movimento maior.
"Às vezes as coisas são difíceis. Parece que não há ninguém que inspire as pessoas no sentido de as motivar a votarem e muitas vezes o pior que acontece é que as pessoas realmente que estão motivadas, estão motivadas [pelas razões erradas]. Quer dizer, há maior capacidade de aglutinação da vontade humana mais pelo ódio do que pelo amor, mas, acima de tudo, é preciso que cada um de nós assuma que tem um papel importante. Como dizem os chineses, uma enorme catarata começa com uma gota de água. Nós fazemos parte de uma catarata, somos uma gota de água e vamos formar um movimento maior, que é o movimento da soberania do povo, que foi uma coisa arduamente conquistada", argumenta JP Simões em declarações à TSF.
E, por isso, sempre que é chamado às urnas, acede ao pedido: "Eu sempre me esforcei para não trocar as eleições por idas à praia. É a única forma que as pessoas têm de se manifestar, de serem soberanas. Muitas vezes erradamente, ou talvez não erradamente, não sei, as pessoas [pensam] 'acho que o meu voto não serve de muito, não vale a pena, está um belo dia de praia’. Eu também percebo isso, respeito e até aqui não tem sido uma coisa muito grave."
O músico lamenta que recentemente tenham surgido movimentos que tendem a tentar retirar liberdades individuais às pessoas, conquistadas em Abril.
"Tem havido uma grande expressão no que toca à relação dos cidadãos com a política. Tem havido novos elementos, muito bizarros. Estamos a falar em verdade falsificada. Estamos a falar em organizações que foram feitas e estão a ser patrocinadas para virem extorquir ou roubar a liberdade conquistada pelas pessoas. E há que dizê-lo mesmo, são mesmo patrocinadas por interesses superiores", afirma.
JP Simões nasceu em 1970, viveu quatro anos em ditadura, dos quais não tem recordações, e, dos primeiros anos de democracia, tem poucas: "Lembro-me de estar sentado no muro à frente da casa dos meus avós e estarem a passar umas moças simpáticas, todas sorridentes, e toda a gente dizia que eram moças comunistas. E fiquei a achar piada a moças comunistas. Elas tinham um ar tão simpático. Acho que é a minha única recordação, são as moças comunistas."
"É memória seletiva, sim", diz entre risos.
A memória continua a não ser nítida quando é questionado sobre a primeira vez que foi votar, mas há um período antes disso que marcou o cantor.
"Eu vi em Coimbra, lembro-me da furiosa campanha das presidenciais entre Freitas do Amaral e Mário Soares. A cidade estava muito dividida, as pessoas andavam em carrinhas de caixa aberta, cada uma dos seus lados da barricada, e eram muito mal educadas umas com as outras. Ou seja, era um clima assim fortemente politizado. Mas de uma maneira mais ou menos pacífica. Quer dizer, não me lembro de grandes perturbações. As pessoas meramente ofendiam-se. Eram como se fossem de equipas diferentes, de certo modo, mas é uma recordação imensa dos anos 1980. Muito forte mesmo. Ver as pessoas muito divididas e quase cegamente a lutarem para defenderem uma ideia ou, neste caso, uma pessoa para comandar os seus destinos", refere sobre as eleições presidenciais de 1986, a única que teve segunda volta na história da democracia portuguesa.
Por falar em praia, passamos à praia de JP Simões: a música. Hoje é um confesso admirador da música de intervenção, mas essa luta cantada entrou na sua vida já no final da adolescência e não foi propriamente pela mensagem política.
"Eu sempre fui ouvindo música. Mas, mais uma vez, o que aconteceu foi que há coisas que eu devo ter ouvido e devem ter passado por mim, mas só muito tempo mais tarde é que comecei a distinguir umas coisas das outras. Só lá para o fim da adolescência é que comecei a dar mais importância também à música de intervenção, mas, na verdade, enquanto música que me interessava per si, fora do contexto de intervenção. Enquanto música que tinha valor musical e poético extraordinário", explica.
Só "bastante mais tarde, nos anos 1980" lhes deu "alguma importância e a descobriu coisas que tinham sido importantes".
"Como é o caso, por exemplo, da Inquietação, que é uma que eu já cantei várias vezes, ainda canto ultimamente. Mas, quer dizer, ainda não se pode chamar a essa precisamente uma música de Intervenção. É uma música mais poética e pessoal e universal, mas não é uma coisa direta de intervenção", considera.
A Inquietação é uma música marcante tanto na carreira de José Mário Branco, que a lançou em 1982, e de JP Simões, que lhe deu uma nova versão em 2006, canção que depois os uniu.
"Eu sempre gostei da música José Mário. Aliás, eu conheci-o, porque ele gostou de mim, no Cinema São Jorge já há uns bons anos. Ele veio ter comigo muito amavelmente dizendo que tinha gostado da minha versão da Inquietação. Claro que fiquei absolutamente feliz e convivemos durante algum tempo episodicamente. Uma pessoa mui amável e extraordinária. Essa versão já teve bons anos", recorda.
Há um ano, nos 50 anos do 25 de Abril, JP Simões levou mais longe a homenagem e lançou um álbum com versões de músicas de José Mário Branco: JP Simões Canta José Mário Branco.
"Não me ocorreu na altura que iríamos comemorar os 50 anos do 25 de Abril, mas o meu editor, o Hugo Ferreira, que foi diretor da Rádio Universidade de Coimbra, num aniversário, em 2009 creio eu, convidou o José Mário Branco para ir lá ao que ele acedeu, dizendo que não tinha tempo para juntar uma banda, mas que iria lá de guitarra e voz, e assim foi. E o Hugo Ferreira tinha guardado uma gravação desse concerto. Tinha ali uma peça que ele achava preciosa, com todo o respeito e importância que o ligava ao José Mário Branco. E um dia sugeriu-me: ‘Ouve lá isso. Não queres fazer uma versão deste concerto que o José Mário fez aqui?’", começou por contar.
E prosseguiu: "Eu, na verdade, já andava há algum tempo a fazer alguns concertos em abril e a escolher muitas músicas que fizessem sentido e grande parte eram do José Mário Branco. E o que eu propus ao Hugo Ferreira foi fazer uma coisa in-between [intermédia, em português]: ‘Vou pegar nalgumas músicas que já venho cantando, escolher outras novas.’ Fiz aqui uma grande pesquisa sobre músicas do José Mário e fizemos então um disco. Foi uma coisa que me deu um enorme gozo a fazer. Percorrer as músicas do José Mário, ouvi-las, estudá-las, e, no fundo, apreciar, que é o mais importante. Apreciar a sua poesia, a sua força, o empenho. Acima de tudo, o imenso empenho que ele punha em tudo o que fazia. Não havia nada que tenha preguiça de dizer. É muito forte."
A homenagem chegou no 50.º aniversário da Revolução dos Cravos e, passado um ano, JP Simões continua a manter vivo o legado deixado por um dos maiores nomes da música de intervenção em Portugal: "Entretanto, vieram as comemorações do 25 de Abril e, na verdade, tenho andado por aí com a minha bela banda a cantar e a promover esse disco e tem sido incrível. Também tenho sentido a sede do público e das pessoas em beber aquelas palavras. Fico com um certo peso da responsabilidade de estar a ser porta-voz delas nestes concertos. Mas creio que elas são muito importantes e são bem-vindas e isso é um ponto de referência nosso. É muito pessoal sobre alguém que viveu intensamente as lutas políticas e as variações de humor da nossa sociedade. Creio que é uma voz fundamental."
E as músicas de José Mário Branco, como as de Zeca Afonso ou Sérgio Godinho, por exemplo, continuam atuais? "Elas estão coladas a um período mesmo importante para aquilo que é um bocado o renascimento da nossa vida enquanto país, que foi o 25 de Abril, foi o fim da ditadura, foi o fim da guerra. Houve um movimento ali que cresceu. O 25 de Abril tem muitas explicações de várias partes, mas nos poetas e nos músicos, essa força, essa premonição de que havia uma vontade que os ultrapassava e que eles pressentiam nas pessoas, e essa música que ficou aí como testemunho disso. Tornou se num marco muito importante, tornou-se mesmo um testemunho além da sua beleza estética e da sua importância ética, são testemunhos históricos, portanto, têm essa importância em todos os aspetos. No seu sentido de oportunidade, na sua beleza e na sua justeza. E continuam [atuais] por esse motivo e também porque apontam para questões do comportamento humano que naturalmente vão ser sempre relevantes, como, digamos, o abuso de um ser humano pelo outro. O homo homini lupus, o homem que come o homem. Salvo seja, fazem logo muitas interpretações ambíguas, por assim dizer, mas eu falo de canibalismo de má índole. E a verdade é essa, são músicas muito importantes e continuam."
Nos últimos anos, vários artistas nacionais têm enveredado pela música de intervenção, seja com homenagens como as de JP Simões, seja como adaptações ou novas criações a apontar para temas como os direitos das mulheres e as questões raciais. JP Simões tem mais ideias.
"Além de todos os temas precisos, implicam que haja justeza, seja qual for a orientação sexual ou religiosa, ou seja, o que for. Isso é um trabalho para o resto da vida da humanidade (...) Não esqueçamos, até porque muitas gerações, muita gente cresce um pouco em conflito para se definir, cresce em confronto com o que está anterior, com o que é velho. Isso também já é uma característica muito própria dos humanos. E, claro, é muito boa, porque já fez coisas maravilhosas e pode ser perigosa porque pode achar caprichosamente que é uma moda interessante. As pessoas voltarem a ter líderes cegos e presunçosos, com tiques de Mussolini. Enfim, há muito que fazer, mas todas as causas, que apontam claramente para os feitos mútuos, são as causas que interessam", expõe.
Isto, porque há, na visão de JP Simões, um perigo de esquecimento: "Também uma das questões fundamentais aqui é os limites do poder que as pessoas têm, sejam ou não sejam eleitas democraticamente. Os perigos de esquecimento da história (...) Há uma certa tendência para as pessoas procurarem nessas forças mais petulantes da direita, de presunção. Há muita gente a identificar-se com isso, especialmente os jovens, porque também é natural que isso aconteça. A história é assim, tem o seu impacto e depois, quando esse impacto passa, as gerações esquecem um pouco também as coisas que aconteceram. E são muitas vezes coisas muito atrozes. E, naturalmente, podem voltar, nem que seja por capricho."
Depois de uma revolução quase sem sangue, Portugal está há 50 anos a utilizar a arma mais forte que o povo tem: o voto. A TSF convida 25 personalidades a falarem sobre a importância da participação dos eleitores. Para ouvir todos os dias na antena da TSF de manhã, à tarde e à noite, e a qualquer hora em tsf.pt