Lídia Jorge: "O voto é um ato de humildade, porque é um entre milhões. Mas ao mesmo tempo é um ato de grande superioridade"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre a importância da democracia participativa. O sonho de votar acompanhou a juventude da escritora, que alerta que o país vive atualmente um "contraciclo" que facilmente "conduz a democracias iliberais"
Corpo do artigo
A escritora portuguesa Lídia Jorge sublinha que, na noite de 18 de maio, o "número que em cada irá ditar, em cada partido, o número de deputados que irá representar os portugueses, não é mágico", antes, é "feito por todos" os cidadãos. E considera que, ao mesmo tempo que votar é "um ato de humildade", é também "um ato de grande superioridade".
Para verdadeiramente entender as palavras da autora é preciso recuar, pelo menos, 50 anos no tempo. Antes de Abril de 1974, além de não haver liberdade, o povo português não "podia escolher quem dirigia" o país. Por isso, o voto, que hoje pode ser visto como um gesto simples, foi outrora muito ambicionado.
"Como jovem universitária, aquilo que nós, e que eu queria, era votar. Eu achava que, se votasse, seria um ato de libertação e esse sonho acompanhou a minha juventude", confessa Lídia Jorge.
Licenciada em Filologia Românica, foi ainda durante a guerra colonial que a escritora rumou a Angola e Moçambique, durante o último período da guerra colonial. Lídia Jorge garante que na altura já tinha a noção de que estava "a viver contra a história" e de que aquele era um tempo "muito duro para os portugueses que morriam, que ficavam estropiados, que estavam longe das pessoas e que estavam, sobretudo, a lutar contra a liberdade do outro povo". Mas esta não era uma certeza generalizada.
"Era um momento dramático, porque havia pessoas que estavam absolutamente convencidas de que aquele era o caminho certo e que iria prolongar-se, mas eu pertencia ao grupo de pessoas que não, que sabia que esse não era o caminho", retrata.
Lídia Jorge fala numa "guerra inútil" e da sensação de impotência perante a consciência de que, "cada dia mais que se continuasse, havia mortes e havia dificuldades e estropiamentos, de um lado e do outro, absolutamente inúteis". À medida que o tempo foi passando, esta tornou-se a ideia dominante. Este clamor de revolta acrescentava fôlego àquela que viria a ficar conhecida como a Revolução dos Cravos. Nesse dia, em 25 de Abril de 1974, a alegria era "absolutamente indescritível, porque se percebia que iria ser não só deixar as antigas colónias finalmente poderem escolher o seu destino — bem ou mal, mas seriam elas a escolher — e, por outro lado, isso significava também a libertação da própria população aqui, que se chamava metrópolo".
Exatamente um ano depois, o país foi chamado a eleger a Assembleia Constituinte. O voto foi, pela primeira vez, estendido a todas as mulheres. Lídia Jorge lembra que levou "os dois filhos pela mão" para ir exercer o seu direito, no meio de uma "multidão em flor".
"Quando regressei da cabine de voto, que era tudo improvisado, havia uma fila gigantesca para ir votar. Foi uma alegria absolutamente extraordinária. A conquista de um direito que pela primeira vez me era dado. Era não só por ser mulher, mas por ser cidadã, por ser um entre milhares que iam pela primeira vez votar. Foi um momento extraordinário", adjetiva.
O momento foi de tal forma impactante que a escritora revela que, se pudesse passar uma emoção para as novas gerações, escolheria a emoção de votar pela primeira vez: "É uma emoção extraordinária, sobretudo quando se teve 48 anos de ditadura e isso não era possível. Se a estes jovens lhes dissessem, 'vocês não vão votar', eu acho que eles queriam todos votar. Só não vão votar, porque sabem que podem votar", lamenta.
Mas, para melhor honrar aquilo que foram as conquistas de Abril, Lídia Jorge aponta que é necessário "inaugurar um outro tempo", sobretudo porque, meio século depois, Portugal vive um "contraciclo".
"É um contraciclo que está criado a partir de uma outra era, que é a era digital, que é uma era que trouxe conceitos de relação entre as pessoas, que exige das pessoas novas formas de existência", explica.
Este, diz, é "o tempo das novas democracias" e isto implica ultrapassar novos desafios, que se prendem essencialmente com transmitir "conceitos de humanidade" e o "respeito de uns para os outros", algo que ainda não está a acontecer.
"Não há aqui ainda um momento para reinaugurar os valores universais dentro das democracias modernas, estas que conduzem facilmente a democracias iliberais", alerta.
Estas fragilidades, acrescenta Lídia Jorge, têm servido para alimentar o crescimento da extrema-direita, que "não tem perspetivas humanísticas, ainda que as diga que tem".
"No discurso primário até pode parecer que tem, porque denuncia males que são concretos, que são verdadeiros e que têm de ser tomados a sério. Agora, arranha-se um pouco dessa superfície e o que está por baixo é o contrário. O que está por baixo é uma proposta de desumanização", concretiza.
O que está, então, em falta é a capacidade de encontrar "serenidade suficiente nas populações" para que cada um se consiga fazer entender. Esta é uma realidade que "preocupa" aqueles que têm presente na memória "como se entrou na democracia e de como se estão a perder esses valores".
"O que se está a propor neste momento são raciocínios anticartesianos, em que as pessoas voltam a acreditar na aura de messias, em que voltam a confundir os políticos com os Papas, coisas incríveis com imagens grotescas, mas que as pessoas, de forma acrítica, assumem como atos de submissão a poderes extravagantes que não imaginávamos que existissem no mundo letrado, mas que está a acontecer", argumenta.
Para este cenário têm também contribuído a inação das restantes forças políticas, que não têm conseguido ir ao cerne da questão. Antes, estão a "discutir prestígio e desprestígio das figuras, sem estarem a discutir aquilo que é importante, que são os programas" eleitorais. O princípio de idoneidade na política também "deixou de ser um critério".
"A idoneidade de um político, seja ele qual for, é a marca de água para depois aquilo que é a sua governança, para aquilo que são a escolha dos ministros, a escolha de todas as equipas que vão conduzir os Governos. Antigamente, as pessoas tinham de jurar pela Constituição, era um ato sagrado. E hoje sabe-se perfeitamente que as pessoas ultrapassam várias cláusulas, vários artigos da Constituição, e é como se nada fosse", atira.
A isto somam-se as horas dedicadas na comunicação social ao espaço de comentário, que também têm sido prejudiciais. O que se tem feito é uma avaliação do "impacto que têm as palavras dos líderes junto dos seus seguidores", sem que nunca seja mencionado o valor das propostas eleitorais.
"Muitas vezes, quando se está a falar bem para os seus seguidores, está-se a dizer mentiras, falsidades, está-se a gabar de coisas que não se fizeram. Um jovem que hoje esteja atento, que tenha 14/15 anos, olha para a política e vê que aquilo que a escola lhe diz, aquilo que os pais lhe dizem, não é praticado pelos políticos. E isto de facto vai minando por completo aquilo que é a criação de novos líderes e, sobretudo, de novos cidadãos capazes de fazerem escolhas com critério", defende.
O mundo vive, por tudo isto, um "momentos dramáticos", com a transmissão de valores "inarticulados e são esses que, depois, ganham, numa espécie de perspetiva de concursos circenses, eleições e que estão a dirigir países". Lídia Jorge, que foi votar antecipadamente nestas eleições legislativas, deparou-se pelo caminho com uma "desorientação imagética", que reforça a forma "clubística" como se decidem os vencedores eleitorais.
"Neste momento, os partidos estão a apostar sobretudo no invisível, que são as redes sociais: estão a insultar-se uns aos outros e a tentarem esclarecer de formas enviesadas. E acho que deixaram de apostar nos cartazes. Há cartazes aí que são uma vergonha completa. Há cartazes de um mau gosto, de uma soberba...", denuncia.
A autoria destaca, assim, que na noite de 18 de maio, o número que irá, em cada partido, ditar o número de deputados que irá representar os portugueses "não é mágico", mas antes um número "feito por todos" os portugueses.
"Aqueles números não aparecem por acaso, nem são mágicos. E que cada um de nós que está lá a colocar o voto, é um ato de humildade — porque é um entre milhões —, mas, ao mesmo tempo, é um ato de grande superioridade. E ele funda, de facto, aquilo que é mais importante na nossa existência cívica", considera.
Ainda assim, não participar neste "ato de cidadania" é igualmente um "direito em democracia", que "deve ser respeitado".
Depois de uma revolução quase sem sangue, Portugal está há 50 anos a utilizar a arma mais forte que o povo tem: o voto. A TSF convida 25 personalidades a falarem sobre a importância da participação dos eleitores. Para ouvir todos os dias na antena da TSF de manhã, à tarde e à noite, e a qualquer hora em tsf.pt