Maria Elisa Domingues: "Alimentar a democracia é votar. Devia ser uma alegria, a celebração da liberdade"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres em Portugal fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre o voto. Maria Elisa Domingues esteve dos dois lados das eleições, como jornalista e candidata, e assegura que "não há nada de banal na democracia"
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Durante décadas foi uma das caras da RTP, escreveu livros nas horas vagas e teve uma breve passagem pela Assembleia da República. A jornalista Maria Elisa Domingues acredita que a democracia tem de ser "alimentada" e que isso só é possível através do voto.
Maria Elisa esteve na emissão da RTP das eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e, em entrevista à TSF, considera que, nessa altura, as pessoas davam mais valor ao ato eleitoral.
"Fui rever as imagens dessas campanhas eleitorais e quando nós vemos as filas que havia nos centros eleitorais para as pessoas poderem votar, eram filas de centenas de metros e as pessoas aguentavam ali a pé firme, chovesse ou fizesse sol. É claro que hoje não vemos isso. Se as pessoas tivessem ideia, tivessem a consciência de que durante 50 anos nós não podemos votar ou podíamos votar num partido único, com certeza davam mais valor ao voto e não optavam por ir para a praia no dia em que se vai votar", argumenta.
Hoje as coisas são diferentes: "Eu acho que é claro que está muito mais banalizado e a tudo aquilo que é mais banal, dá-se menos valor. Mas é bom lembrar que não há nada de banal na democracia. É um valor que pode sempre ser ameaçado e que convém preservar e alimentar. E alimentar, para nós, para quem não está dentro da política ou não quer estar, alimentar é valorizar o ato eleitoral, é ir votar, mesmo que a vontade seja de ir passear em vez de cumprir esse dever. Só que não é um dever só. Devia ser também uma alegria, devia ser a celebração da liberdade."
Em 1975, Maria Elisa esteve na emissão da RTP, mas atrás das câmaras. E as dificuldades eram muitas.
"O meu papel foi essencialmente ser capaz de ir adiantando resultados com a margem de erro que normalmente teriam de ter, dado o muito pouco apetrechados que estávamos em termos tecnológicos. Nessa altura, convém lembrar sobretudo aos mais novos, não havia internet, não havia computadores, não havia telemóveis. Portanto, tudo era feito através dos telefones fixos e com os nossos contactos, quer na Comissão Nacional das Eleições, quer nos distritos onde tínhamos correspondentes e outras pessoas que nos iam dando algumas indicações", relata.
Quanto à emissão, essa, para a jornalista, teve uma marca que sobressaiu em relação a outras: "Daquilo que eu me lembro melhor da cobertura das eleições para a constituinte em 1975 é da sua forte componente ideológica. Nessa altura, o Partido Comunista tinha uma grande influência na direção de informação, na redação, e acho que isso agora, ao rever algumas imagens dessa noite, recordei essa realmente essa componente. Não é por acaso, por exemplo, que há várias das entrevistas a personalidades políticas que são feitas, não por jornalistas, mas por personalidades, umas da RTP, outras de fora ligadas ao Partido Comunista. Há, por exemplo, dois realizadores a fazer entrevistas quando o normal era que seriam os jornalistas, mas tinha muito a ver, de facto, com a filiação ideológica."
Outro exemplo dessa "componente ideológica" era a forma de tratamento, já que os militares eram tratados como "camaradas militares". "Toda a gente era tratada por camarada. Havia naturalmente uma grande consideração e um grande carinho pelos militares do MFA que tinham feito a revolução, mas havia também em toda a sociedade uma onda ideológica, uma camada ideológica muitíssimo presente e que talvez Hoje em dia seja até difícil perceber. Quando nós requeremos aos pivôs neutralidade, naquela altura não, era completamente natural que as pessoas estivessem de algum modo engajadas naquele entusiasmo revolucionário", explica.
As campanhas eleitorais também eram praticamente uma novidade total: "Nós vínhamos da ditadura, havia um arremedo muito embrionário de qualquer campanha eleitoral, porque, enfim, era o Estado Novo que podia fazer propaganda basicamente, o resto era tudo feito praticamente às escondidas. Portanto, também não havia ‘know how’ para fazer as campanhas. Tudo era feito de uma forma muito artesanal, muito primitiva, mas que mais uma vez era compensada pelo ardor, pelo entusiasmo enorme dos partidos e também dos profissionais de informação. Há realmente aí uma osmose muito grande entre o sentir revolucionário do país, o sentir muito ainda próximo dos militares do MFA e aquilo que era transmitido ao público."
Um ano depois, Maria Elisa voltou a fazer parte da emissão que acompanhou as eleições legislativas de 1976, mas aí já apareceu no quadrado mágico.
"No ano a seguir, do meu ponto de vista, é completamente diferente em termos de conteúdo e já todo ele coordenado e apresentado por jornalistas. O meu papel foi dar a conhecer os resultados, não só estar a apurá-los, a fazer as contas - eu não sei se é porque eu sempre gostei de matemática e fui bastante boa aluna à matemática, mas coube-me de facto essa incumbência - e depois apresentá-los mesmo perante as câmaras. Lembro-me que quer uma emissão quer outra foram épicas no sentido em que nesse tempo a RTP emitia apenas poucas horas. Excecionalmente, nessas duas ocasiões nós estivemos no ar até muitíssimo mais tarde, com uma ligeira interrupção durante a noite e recomeçando logo de manhã. Lembro-me de ir a casa apenas para tomar um duche, porque estivemos no ar, quer numa emissão quer na outra, mais de 30 horas", descreve.
Passados uns largos anos, Maria Elisa Domingues saltou para o outro lado das eleições e foi cabeça de lista em Castelo Branco pelo PSD às eleições legislativas de 2022.
"Eu aceitei com algum o entusiasmo, porque acreditei nas propostas para o país do doutor Durão Barroso que ele apresentou em 2002. Aceitei com algum entusiasmo, pensando que poderia fazer alguma diferença mais no meu campo específico, que era o da comunicação social, da cultura, a que estive sempre ligada, mas a passagem de um jornalista para a política é muito difícil ou eu diria quase impossível. No mesmo ano entrei eu pelas listas do PSD na Assembleia da República e entrou o Vicente Jorge Silva pelas listas do PS. Nem eu nem ele fizemos nada que se possa assinalar na Assembleia da República. Não tivemos essa possibilidade", lamenta.
Os políticos de carreira e os jornalistas tiraram o espaço necessário para fazer a diferença: "Nós tivemos essa possibilidade. Os políticos aceitam extremamente mal as pessoas que vêm totalmente de fora, que vêm de fora daquela estrutura partidária. Por outro lado, os jornalistas também não nos tratam tão bem, porque não percebem, acho eu, ou não aceitam essa passagem, de maneira que o nosso campo de ação é muito limitado. Eu não tive possibilidade de fazer praticamente nada e muito menos em áreas em que eu podia ser útil. Acho que não fui utilizada, não fui aproveitada. O meu ‘know how’ específico que tinha levado o doutor Durão Barroso a convidar-me, acabou por não ser aproveitado."
As coisas ficaram longe de correr como a jornalista esperava e até teve de abdicar do seu cargo na RTP e das aulas que lecionava no Ensino Superior.
"Foi uma experiência, para mim, talvez a experiência mais frustrante da minha vida profissional, até porque por isso deixei coisas que eu gostava de fazer. Era professora numa instituição universitária, deixei de poder dar aulas. Fazia outras coisas que deixei de poder fazer, como o meu papel na RTP. Fui obrigada, o que quando eu fui convidada não estava em cima da mesa que eu seria obrigada a sair da RTP e no fim obrigaram-me numa votação interna por proposta do Partido Socialista, mas que o PSD deixou passar, obrigou-me a optar entre a RTP e a Assembleia da República", conta.
Maria Elisa Domingues assume que não se candidataria à Assembleia da República se soubesse como as coisas viriam a decorrer: "E aqui está a profunda contradição: nós éramos convidados, aconteceu com outras pessoas vindas de outros campos, por termos um know how específico num determinado campo da sociedade, no meu caso, da comunicação social e da cultura e depois somos obrigados a sair dessa atividade que era aquela que nos dava alguma diferença em relação aos políticos profissionais, porque os grupos parlamentares assim decidem. Se eu alguma vez tivesse sabido que era obrigada a deixar a minha atividade normal para ser deputada, nunca teria obviamente concorrido às eleições. Claramente fui enganada."