"Não ter vergonha dos políticos e os políticos não darem motivos para que tenhamos vergonha deles foi, até ao fim, o combate de Mário Soares"
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Em entrevista à TSF, José Manuel dos Santos, coordenador das Comemorações do Centenário de Mário Soares e antigo assessor cultural no Palácio de Belém, sublinha o papel de Soares para “naturalizar a democracia.” Fala do horror à “plastificação” da política de um romancista adiado e um “leitor gourmet” para quem Camilo era “bom para as gripes” e as caricaturas de Eça permaneciam atuais.
Neste tempo mais agitado, mais instantâneo, até mais descartável, que pistas para o futuro trazem estes cem anos de Mário Soares?
Trazem o exemplo dele e trazem a mensagem fundamental dele, que é, como disse, virada para o futuro, embora, com memória do passado. Mário Soares foi um homem que refletiu muitíssimo sobre a história em Portugal, mas também sobre a história da Europa e a história do mundo. Eu costumo dizer que ele, quando chegou a Portugal no 25 de Abril, tem 50 anos, viveu mais anos em ditadura que em democracia, e a sua reflexão fundamental foi formar uma ideia para Portugal e aprender com as lições da história, a história para construir o futuro. Porque a questão fundamental era saber porque é que Portugal a democracia nunca se tinha naturalizado, porque é que parecia ser um regime intervalar, um pequeno intervalo entre dois regimes autoritários ou despóticos. Mário Soares aprendeu com esses erros todos, analisou, está documentado no extraordinário espólio que deixou de mais de 2 milhões de documentos, cartas com grandes historiadores da geração anterior à dele, como Jaime Cortesão e também António Sérgio, mas também os mestres mais diretos como Vitorino Magalhães Godinho, ou pessoas da geração dele como Oliveira Marques. O grande desígnio nacional dele era naturalizar a democracia em Portugal, e tudo o que faz é uma ideia de democracia que é uma ideia europeia, democracia pluripartidária, pluralista, civilista. E essa é a lição fundamental que ele nos dá. Eu creio que essa talvez seja a mais importante vitória dele, porque verdadeiramente a democracia naturalizou-se em Portugal, normalizou-se em Portugal. Hoje aquilo que são os perigos que ameaçam a nossa democracia são parecidos com os perigos que ameaçam todas as democracias. A democracia está a ser ameaçada, sabemos, é um período muito difícil, mas não há nenhuma especificidade que diga, como a ditadura dizia, que os portugueses não poderiam viver em democracia por serem um povo assim ou ter certas características. Isso é mentira, provou-se que era mentira, pelo contrário, nós em momentos cruciais da construção da nossa democracia mostramos bom senso, mostramos capacidade de ultrapassar as dificuldades maiores, de ultrapassar as grandes tensões, estivemos várias vezes à beira de coisas radicais e drásticas, mas conseguimos, apesar de tudo, até em comparação com outros países e outros povos, conseguimos arranjar fórmulas de concórdia e de entendimento que nos permitiram ir avançando. E isso foi sempre o entendimento do Mário Soares em relação ao futuro de Portugal. E, portanto, essa mensagem fundamental, que tem a ver com os valores, os valores da liberdade, com os valores da democracia, ele gostava de citar uma frase do grande escritor francês Victor Hugo, que diz, “salvem a liberdade que a liberdade salvará o resto”. Essa era a convicção profunda e fundamental dele. Ele próprio explicou que as posições políticas dele e a sua ação política, que era, obviamente, causada pela defesa da liberdade e pela luta contra aqueles que queriam negar e que tinham negado a liberdade, radica numa atitude cultural fundamental. Essa atitude cultural não é abstrata, é concreta, porque Mário Soares foi educado por mestres, ele próprio diz quem são, um deles é, por exemplo, Agostinho da Silva, e esses grandes mestres intelectuais eram também grandes mestres cívicos. Isto é, eram mestres que lutavam contra o despotismo e o regime ditatorial, e por isso, na formação dele, a luta política e a luta que era feita também no nome da cultura eram inseparáveis uma da outra, uma justificava a outra. E, portanto, esta ideia fundamental de que precisamos de dar à política, de voltar a dar prestígio à política, de não ter vergonha da política, de não ter vergonha dos políticos, e os políticos não darem motivos para que tenhamos vergonha deles, foi até ao fim o combate de Mário Soares. Ele escreve um dos últimos livros, quando alguns dos políticos que ocuparam os mais altos cargos, e que usavam todas as técnicas e às vezes as mais baixas técnicas da política, truques da política, diziam, “eu não sou político”, isso era mais um truque, no fundo verdadeiramente populista, esse já era uma antecipação de outras coisas futuras, do populismo, essas pessoas, para Mário Soares, mereciam, de facto, uma grande reprovação, e por isso ele escreve um livro, quando está já nos últimos anos, que se chama “Um Político Assume-se”, e assume-se porque acha que a política é das mais nobres atividades humanas, é não estar a fazer uma ação em prol dos interesses particulares ou dos interesses de alguns, mas é servir o bem comum e o interesse geral. E isso é uma missão fundamental, desde que nos conhecemos, não é como na nossa condição, e isso é preciso, portanto, voltar a dar prestígio à política, e os políticos são os primeiros, devem ser os primeiros responsáveis para que a política não se degrade e para dignificarem os próprios pela sua ação, pelo seu exemplo, a política.
E como devolver esse prestígio numa altura em que até os mais jovens parecem dispostos a abdicar dos valores da democracia e da liberdade, em troca de outros valores. Isto resulta de alguma falta de memória?
Uma regressão, eu chamar-lhe-ia uma regressão, é uma falta de memória, essas pessoas nunca viveram situações de privação de liberdade, e por isso acham que a liberdade é dispensável ou inútil, mas verdadeiramente o que falta aqui é a tal atitude cultural que está antes da política. Os políticos não podem apenas ser gestores, hoje a política é muito confundida apenas com a gestão. Há uma famosa polémica, é uma das polémicas fundadoras da nossa modernidade cultural e política também, que é a famosa questão do Bom Senso e do Bom Gosto, a Questão Coimbrã, entre o António Feliciano de Castilho e o Antero de Quental, fundador do primeiro Partido Socialista português, em 1875, grande poeta, que Mário Soares admirava imenso e que lhe prestou imensas homenagens, e nessa polémica o Antero diz ao Castilho “Mas, Excelentíssimo Senhor, acha que é possível viver sem ideias?”, e hoje há muita gente que acha possível viver sem ideias, a viver apenas com objetivos práticos e utilitários, e a política não pode ser isso. A política tem de partir de valores, de princípios, e quando não parte disso as pessoas depois também não têm consideração por ela, e portanto é preciso voltar, nos momentos de crise, é preciso voltar ao essencial. Não a soluções passadas, porque as soluções passadas não servem depois à atualidade, as nossas sociedades são hoje muito mais complexas e muito mais difíceis muitas vezes até de entender, a mudança é tão rápida e tão radical e portanto é nestes momentos que é preciso ouvir aqueles que criam ideias, aqueles que têm conhecimento, e não andar a correr o dia a dia apenas atrás das pequenas coisas e nunca pensar nas grandes coisas. Essa foi a lição fundamental de Mário Soares. Ele foi um homem que tinha de facto qualidades quase opostas e que ele conseguia aliar. Era por exemplo de uma enorme flexibilidade, mas ao mesmo tempo de uma enorme firmeza, e também era um homem que era capaz de olhar as coisas simples com simplicidade e perceber imediatamente o que elas eram, mas nunca simplificava as questões complexas.
Sabia muito bem que hoje tudo acelerou, tudo se tornou mais difícil de compreender, a especialização do conhecimento leva às pessoas que normalmente não sabem o que as outras pessoas sabem e isso priva a política de alguns instrumentos preciosos também de analisar o mundo e de saber olhar para ele, e por isso mesmo é que muitas vezes há a tentação, o populismo é muitas vezes disso, de recorrer àquilo que parece dar satisfação aos impulsos mais irracionais e mais primários porque de facto falta pedagogia democrática, falta dignificação da política e falta no fundo formação cultural e uma atitude cultural antes disto tudo. E o exemplo de Mário Soares é exatamente para nos dizer que assim não vamos a lado nenhum. Ele acreditava sempre que atrás de tempo, tempo vem e que às vezes há momentos difíceis mas depois a seguir vêm outros melhores, mas a verdade é que devemos evitar o pior. Ele tinha também uma grande consciência de que normalmente nos períodos difíceis, quando havia capitulação, quando havia desistência e quando a certa altura as pessoas se alheavam dos combates fundamentais, foi isso sempre que provocou os grandes desastres e as grandes calamidades. Ele era um otimista e fazia do otimismo um instrumento fundamental. É conhecido, que ele anunciou durante os anos todos que foi um grande oposicionista à ditadura, preso treze vezes, deportado e exilado, anunciava aos amigos, quer portugueses, quer estrangeiros que a ditadura ia acabar no dia seguinte. É uma história muito engraçada porque o Mário Soares no dia 25 de Abril estava na Alemanha, o chanceler alemão era o Willy Brandt, presidente internacional socialista e seu amigo, e ele estava lá e quando chegou lá ele tinha conhecimento que havia movimentações militares, disse-lhes, disse aos dirigentes do Partido Social Democrata Alemão, do SPD, que isto estava por pouco tempo, a queda da ditadura ia acontecer. E eles diziam, “lá está o Mário, lá está o Mário, diz-nos isso há não sei quanto tempo e infelizmente a ditadura vai continuar”. E durante a noite, quando ele estava a dormir, tocaram o telefone, era o ministro dos Negócios Estrangeiros a dizer, “ó Mário, desta vez parece que tens razão, há mesmo uma revolução na rua em Portugal”. Mas isto para dizer que ele que era um otimista e que mesmo nos momentos difíceis achava que com as tais ideias, a vontade, a determinação que nós conseguimos mudar as coisas para melhor, morreu, os últimos anos da vida dele são de um profundo pessimismo, ainda que isso não o convidava à resignação, pelo contrário, convidava-o a uma ira, a uma espécie de cólera sagrada contra a decadência dos valores fundamentais em que ele acreditava. E, portanto, esse pessimismo, ele tinha uma espécie de dom de prevenir e de ler muitas coisas e muitos sinais do que se estava a passar e se formos ler os últimos artigos dele, são artigos de um profundo pessimismo, ele achava que o atual sistema neoliberal, baseado em grande parte na exclusão social e na desigualdade económica e social, que iria acabar por degradar a democracia e que a democracia tinha sido capturada por esse sistema. Os últimos artigos dele são, por exemplo, que escreve nos jornais, são a prevenir isso e a dizer que os políticos devem resistir e não andar nessa guerra permanente de querer, com eles próprios e com os outros, de querer parecer aqueles que são mais obedientes e a querer servir esse tal sistema que estava a dar cabo das próprias instituições políticas e não perceberem que isso era uma coisa que estavam a fazer contra eles próprios, contra a sua missão, contra a sua atividade. Ele passou a vida a prevenir isso. Morreu e, infelizmente, depois da morte dele, tudo o que se passou só veio dar razão às suas prevenções e às suas apreensões.
Mário Soares era conhecido pela cultura imensa que tinha, mas também por uma grande capacidade de comunicação. Que lições é que se podem tirar para o atual momento em que os eleitorados parecem tão zangados com a coisa política?
Por um lado, essa maneira de contactar as pessoas advinha de uma coisa fundamental nele, que era uma enorme curiosidade. Ele era um homem que tinha uma curiosidade infinita por tudo. Tinha curiosidade por conhecer novas terras, por conhecer novas gentes. Tinha curiosidade por descobrir um livro novo que lhe trouxesse novidades, que o ajudasse a descobrir coisas novas. Mas, antes disso tudo, tinha curiosidade pelas pessoas. E, quando via alguém, ele gostava de saber que tipo de pessoa era essa. E isso tanto fazia ser um chefe de Estado, com quem ele se encontrava, como um colaborador que, por exemplo, cozinhava no sítio onde ele estava como Primeiro-Ministro ou como Presidente da República. Fazia-lhe perguntas e tinha essa curiosidade. E, portanto, essa curiosidade é que o levava a ter um contacto natural com as pessoas. Mário Soares detestava a plastificação da política e o marketing político. Obviamente que há determinadas técnicas, era preciso de propaganda, sempre houve, mas não é isso. É transformar a política numa coisa apenas de marketing político, em que os políticos dizem o que não pensam, dizem o que não sentem, dizem o que não são. Ele era profundamente contra isso tudo e, quando detetava isso num político, ficava irritadíssimo e ficava, normalmente, com uma aversão a essa pessoa. Essa pessoa, para ele, deixava de lhe merecer grande consideração intelectual e política. E, infelizmente, hoje a política é feita com muitos truques, com muitas técnicas em que, de facto, não corresponde nem aquilo que as pessoas são, nem aquilo que o político é, nem é uma relação natural e democrática entre o político e o eleitor, para dar um exemplo, de uma campanha eleitoral. Ele, por isso, também tinha irritações e, às vezes, até apareciam fora do contexto e até pareciam que ele tinha uma agressividade, etc., porque eram irritações naturais. Se alguma coisa tinha corrido mal, ele estava irritado, ralhava, às vezes, com a pessoa que tinha feito com que as coisas corressem mal, ele tinha prevenido para que as coisas não corressem mal. Às vezes, ele foi surpreendido em todas as situações da sua naturalidade e na sua espontaneidade tanto a rir à gargalhada, com gargalhadas...
Sim, aquela gargalhada larga…
Larga e imensa, como também com fúrias e irritações, etc., que, às vezes, as pessoas não percebiam e, obviamente, que os adversários depois usavam isso para, a partir daí, querer construir uma imagem. Mas ele acreditava, esperemos que não fosse exageradamente, que as pessoas comuns tinham uma capacidade de perceber verdadeiramente o que os políticos são e aqueles que querem fingir que são o que não são. E, portanto, ele fez sempre aquilo que achava que devia fazer. Houve momentos em que foi acompanhado pelo país todo, houve momentos em que ficou sozinho e só mais tarde é que se percebeu que tinha razão. Eu acho que há uma definição que foi dada, creio que até foi o Miguel Sousa Tavares que um dia disse isso dele: que ele muitas vezes se enganou em coisas secundárias, em coisas acessórias, a escolher pessoas, agora, no fundamental para o país e no fundamental das suas opções, o que disse aos outros chefes de Estado em relação à Europa, em relação ao mundo, que verdadeiramente aí nunca se tinha enganado. Não porque ele próprio achasse que não falhava, mas porque de facto a sua ação política recorria de valores, recorria de uma ideia que ele tinha de Portugal, da Europa e do mundo e decorria de uma constante atualização pelas leituras, pelas conversas, pela tal curiosidade de não perder o passo e também pela sua cultura, que era uma cultura mais vasta do que a cultura política. Porque os políticos tratam com a vida das pessoas. A política todos os dias se encontra com a vida e todos os dias ela faz, constrói e destrói aspetos que têm a ver com a vida. E onde a vida se representa da maneira mais complexa, com todas as suas também contradições, é normalmente na literatura. Os grandes romances, mas também alguns poemas, são fundamentais para se perceber como é que o mundo funciona, como é que a vida funciona. Mário Soares foi sempre um leitor voraz, andava carregado de livros por todo o lado um dia, porque achava que era uma espécie de gourmet da leitura e por isso achava que há momentos para se escolher um livro e outros momentos para se escolher outro livro. E dependia do momento. Ele, por exemplo, gostava imenso do Eça e do Camilo. Achava, por exemplo, que o Camilo era bom para gripes, que quando estava com gripe, aquele clima de grande tensão, de exacerbamento normalmente passional do Camilo, que ajudava a suportar e a passar as gripes. O Eça talvez fosse melhor para um clima mais ameno, de primavera e de verão. Mas ele adorava o Eça, citava às vezes, quem tinha dito o “divino Eça”, ele adorava o Eça. Infelizmente achava que, infelizmente, alguns dos traços com que o Eça faz a caricatura de Portugal, que alguns deles ainda se mantinham. Que ainda havia muitos conselheiros Acácios, muitos Gouvarinhos, muitos Palmas-Cavalão, muitos personagens do Eça de Queiroz que ainda estavam ativos e presentes na vida portuguesa. E ele, muitas vezes, nas conversas com as pessoas que eram amigos e próximos e colaboradores, fazia essa correspondência entre algumas dessas figuras e algumas figuras queirosianas.
Um dos traços fundamentais, este não concretizado de Mário Soares, era a grande ambição de também ele próprio, tornar-se um escritor, no sentido de escrever um romance. Foi algo que ficou por fazer?
Ele disse “tenho uma visão literária da vida”. Ele dizia que o pai lhe dizia que ele podia ser escritor, e dizia que se não fosse político era escritor, jornalista. No entanto, ele foi escrevendo, ele escreveu, tem mais de cem livros, entre livros que corrigiram artigos, livros que ele escreveu. O Eduardo Lourenço, numa carta que lhe escreve em 1972, sobre o Portugal Amordaçado, diz, “este é o romance político da nossa geração”. E, de facto, o Portugal Amordaçado é um grande livro de ideias, um grande livro da literatura política do século XX. Mas, de facto, o grande romance, ele acabou por não escrever nem as memórias, ele faz o livro de entrevistas…
Com Maria João Avillez.
Sim, é também um livro extraordinário em que ele conta a vida de uma maneira vivíssima e naquele jogo subtilíssimo que ele sabe fazer entre o passado e o presente e o futuro, dos tempos todos, em que permanentemente vai atrás e que faz retratos extraordinários das personalidades que conheceu. Mostra com o talento e as características dele como escritor, que poderia ter sido um romancista, é que as pessoas para ele nunca são iguais, ele nunca as confunde com qualquer outra categoria menos individual. Por exemplo, ele no Portugal Amordaçado, quando fala dos PIDES, para outros políticos que lutaram contra a ditadura, os PIDES são todos iguais, não é? O Mário Soares, quando fala dos PIDES no Portugal Amordaçado, individualiza-os. Porque apesar de serem esbirros, de serem alguns deles torcionários, eles eram diferentes uns dos outros. Um era mais silencioso, outro mais agressivo e mais histriónico, outro era mais alegre, outro mais triste ... Portanto, há sempre uma espécie de caracterização das personagens todas. Ele escreveu alguma parte de um romance chamado Concordata, estamos à procura. Ele contava, aliás, uma história muito divertida, porque uma parte desse romance foi escrito na prisão, e chamava-se Concordata porque era um, como sabemos, nesse tempo a Concordata impedia que alguém que casasse pela Igreja Católica se pudesse divorciar, e obviamente que não poderia casar pela Igreja Católica outra vez, isso ainda hoje não pode, mas também nem sequer podia casar novamente pelo Regime Civil, pelo Registo Civil. E, portanto, depois os filhos não tinham proteção nenhuma legal, e, portanto, era uma coisa dramática. Ele queria escrever um romance a partir disso, e escreveu alguns capítulos. E ele contava que uma das vezes que saiu da prisão, que tinha avançado um pouco nesse romance, convidou dois amigos muito próximos, um deles o grande escritor Carlos de Oliveira, e outro o grande historiador Joaquim Barradas de Carvalho, amigos dele, sempre, para ler-lhes um capítulo do romance, ou dois capítulos. E ele foi à casa do Carlos de Oliveira, eles sentaram-se os dois num sofá e ele começou a ler. Estava tão entusiasmado com a leitura que não tirou os olhos do papel enquanto lia. E, quando acabou de ler o capítulo, eles dormiam os dois no sofá. E ele concluiu que aquilo não devia ser muito bom para eles estarem adormecidos. E isso, talvez, o tenha inibido. Não sei se de prosseguir ou, pelo menos, de divulgar o que tinha escrito. No entanto, sabemos que há muitas causas para que uma pessoa possa adormecer. Ou porque eles podiam estar cansados, ou porque a leitura dele fosse uma leitura demasiado monótona, ou porque, por qualquer outra razão, ou porque tinham combinado de brincar com ele. Até poderia ser isso, não é? E, portanto, ele divertidíssimo contava esta história, sem nenhum ressentimento em relação aos outros de não se terem posto aos gritos a dizer, é genial, é genial, é genial. Portanto, ele não ficou nada zangado, mas isso fê-lo, talvez, refletir. E, portanto, nós próprios temos uma enorme curiosidade para perceber o que é que existe. Nós gostamos de investigar, eu também sou o coordenador das obras de Mário Soares da coleção na Imprensa Nacional, e será um livro futuro que possa reunir alguns textos, algumas tentativas literárias. Se for caso disso, temos de analisar. Entretanto, até lá, por exemplo, nós temos, também está aqui na exposição de Serralves, uma imensa correspondência cultural. Não há ninguém do século XX, início do século XXI, com quem Mário Soares não tenha trocado cartas, e não são cartas apenas formais, são cartas, muitas vezes, com assuntos interessantes a conversar.
É o Sal da Democracia, assim se chama a exposição.
A exposição chama-se o Sal da Democracia, subtítulo Mário Soares e a Cultura. E nessa exposição vê-se que Mário Soares viveu toda a vida rodeado, até diria cercado, de livros. Os livros que ele escrevia, os livros que lia, os livros que os amigos davam com dedicatórias. O grande orgulho dele era receber uma dedicatória de uma grande figura que ele admirava , isso valia quase mais que uma vitória política. Gostava imenso de mostrar, quando recebia um livro de um grande poeta com uma dedicatória, já tinha ganho o dia. Mas também, quando ia aos alfarrabistas, comprar primeiras edições, comprar livros raros, dos escritores, dos autores que admirava, e também, com a Maria Barroso, as aquisições que faziam para a sua coleção de arte, que não era uma coleção pensada com uma estratégia especial, era uma coleção que tinha a ver com os pintores de quem eles gostavam, que eram, muitas vezes, amigos deles e que estavam nas paredes de casa, que viviam aquela coleção, essas obras estavam sempre presentes na vida quotidiana deles. E, portanto, a exposição tem isso tudo, e tem também a correspondência que é complementar disto. Muitas vezes está uma pintura na parede da Vieira da Silva, e há uma carta da Vieira da Silva que ajuda a compreender a relação, mas também é um elemento precioso para se fazer uma história cultural do século XX. No caso português, Mário Soares tem uma importância imensa na reaproximação da Vieira da Silva, grande pintora, e do seu marido, Àrpád Szenes, também grande pintor, a Portugal, eles tinham sido ostracizados pelo Antigo Regime, tinha-lhes sido negada a nacionalidade portuguesa. Já antes Mário Soares os conhecia, mas depois do 25 de Abril tem logo a preocupação de os reaproximar, nos cargos públicos que desempenhou, e tornaram-se muitíssimos amigos. Há, quer nas obras, quer nas cartas, quer em tudo o que trocaram, o convívio que tiveram, há testemunhos disso na exposição, mas também com o Júlio Pomar, que lhe fez o primeiro retrato.
Também há o retrato presidencial com que Pomar o imortalizou…
Esse é o retrato oficial. Mas ele fez-lhe o primeiro retrato quando tinha 18 anos, na prisão. E o Mário Soares conta que eles obrigavam, entre aspas, o Pomar a subornar os guardas através dos seus desenhos. Se havia lá um guarda muito mau e que tratava muito mal as pessoas, ele desenhava o guarda e dizia, “Olhe, já viu aqui a sua cara?” E o guarda ficava encantado, porque era o máximo do prestígio ter um pintor, mesmo ainda jovem, a desenhar-lhe e queria mostrar aquilo depois à família. E ele dizia: ”Só lhe damos este desenho se você se portar decentemente daqui para a frente.” O Mário Soares contava isso muitas vezes. E, portanto, tem esse retrato inicial, que também está na exposição, e tem o retrato da Presidência da República. Foi o Mário Soares que escolheu o Pomar. É uma escolha quase inevitável e natural. E que faz aquela mistura extraordinária, que dá um pouco a personalidade do Mário Soares também, que é aquele gesto de comunicação, aquele sorriso que ele tem nesse retrato, quase riso mesmo.
E as mãos…
E as mãos, e está sentado na cadeira dos leões. Portanto, é alguém que conseguia compatibilizar uma atitude solene de poder com a sua personalidade irradiante e comunicativa. Uma coisa não negava a outra. Ele conseguia fazer as duas coisas e, pelo contrário, cada uma delas potenciava a outra. Isso era verdadeiramente o segredo. E o Mário Soares, num discurso, diz que a cultura “é o sal da democracia,” porque é verdadeiramente, a cultura que põe em causa aquilo que está morto, as ideias mortas, os lugares-comuns. O Mário Soares tinha também uma espécie de horror ao lugar-comum. Quando alguém lhe fazia uma pergunta e quando alguém lhe dava uma resposta convencional ou já sabida, ele dizia-me, quando era alguém muito próximo, amigo ou colaborador, “mas só estás a dizer o que já se sabe, só estás a dizer lugares-comuns.” Ele era de uma enorme exigência intelectual para com as pessoas com quem se dava quando falava de assuntos de política ou de cultura…E, portanto, havia permanentemente nele esta vivacidade, uma coisa que ele tinha também praticado antes do 25 de Abril, nas tertúlias habituais que havia. As pessoas iam tomar café aos cafés, a seguir ao almoço, a seguir ao jantar, e conversar sobre o que se passava. E, portanto, ele, quando era advogado da Baixa, encontrava-se todos os dias com escritores, com políticos da oposição, com historiadores, para conversar sobre o último livro que tinha saído, sobre o último acontecimento que se tinha passado em Portugal ou no mundo. Ele considerava que a democracia é o regime em que isso é enriquecedor. Não se deve ter medo nem do debate das ideias, nem da discordância, nem da contradição, porque isso é um fator fundamental de aperfeiçoamento. Ele reivindicava, na sua filiação filosófica de filosofia política, o Iluminismo, as luzes, a filosofia de Kant, que estão na origem da democracia, e considerava que a razão autodetermina e que o conhecimento emancipa. E, portanto, havia, digamos, uma enorme coerência entre as suas ideias culturais e políticas e essa sua prática permanente que, muitas vezes se notava, de gostar de pôr em causa o conformismo. E as pessoas que para ele eram conformistas e que limitavam-se a repetir e a ter medo de se abrir ao debate e de se abrir aos outros, ele, de facto, não tinha grande ideia delas.
Este sábado, na Fundação Gulbenkian, vai também ser lançado o terceiro volume da Coleção Obras de Mário Soares, Escritos de Resistência. O que é que vamos poder encontrar neste terceiro volume?
Este volume reúne os dois livros de Mário Soares que reúnem textos dantes do 25 de Abril. Portanto, um deles foi publicado clandestinamente, porque foi proibido e apreendido pela censura, que são os Escritos Políticos, mas circulou clandestinamente, tem até quatro edições, e depois há um deles que reúne os textos que ele escreveu em França e também para Portugal, às vezes com pseudónimo, que se chama Escritos do Exílio e que só pode ser publicado depois do 25 de Abril. Portanto, estes dois volumes estão reunidos. O livro tem um prefácio da historiadora, que também foi colega, aliás, em França, do Mário Soares na Universidade, em que ambos foram professores, Miriam Halpern , que contextualiza aqueles textos e o momento de resistência à ditadura em que aqueles textos foram escritos. É o terceiro volume, embora haja um volume zero, em que foi publicado nesse volume, o primeiro livro de Mário Soares, sobre as ideias políticas e sociais de Teófilo Braga, o principal doutrinador da República. É um livro muito interessante, porque descobrimos que ele era um jovem, com vinte e poucos anos, enviou o livro para o António Sérgio e o António Sérgio anotou o livro. O António Sérgio gostava de Mário Soares, não gostava de Teófilo. E diz, inclusivamente no livro, “só você, Mário Soares, era quem era capaz de pôr ordem neste pensamento caótico de Teófilo.” E tem notas de leitura que estão nesse Volume Zero, portanto, que torna muito interessante este diálogo, no fundo, três gerações, o Teófilo, o Sérgio e o Mário Soares, em relação às próprias ideias da República e àquilo em que elas falharam tão bem. E, portanto, mas esse é o momento da cerimónia, do tributo a Mário Soares no dia do seu centenário. Depois vai haver também alguns testemunhos de personalidades da sociedade civil, que falam dele e da importância que ele teve para elas. E depois também vai haver um discurso do Presidente do Conselho Europeu, nessa qualidade, António Costa, do Presidente Cabo Verde, também nessa qualidade, e do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, para, digamos, sinalizar as três facetas fundamentais que Mário Soares definiu na política, a democracia, a Europa e o fim do império, a descolonização e a importância, depois, da comunidade de língua portuguesa.
Sendo que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, até invocou o célebre slogan de “Soares é fixe”, quando foi o lançamento das comemorações deste centenário.
Sim, estava a falar com crianças e, portanto, foi buscar um slogan que tinha sido inventado por jovens. Acho que a palavra fixe na altura era uma palavra muito moderna, acho que agora já é menos, agora os jovens já usam um pouco essa palavra. O vocabulário está sempre a mudar. Mas, mesmo assim, as crianças aderiram imediatamente e gritaram com o Presidente da República, “Soares é fixe”, com uma grande alegria e um grande entusiasmo. ~
E vai haver também uma exposição que vai percorrer o país?
Sim, até há duas exposições. Há uma exatamente para infantojuvenil e também há um livro da Luísa Ducla Soares que conta a história, a vida de Mário Soares num código de comunicação apropriado para essas idades. E depois há uma outra exposição, uma exposição biográfica, uma biografia política, que pode ser exibida em vários espaços. É uma exposição que tem como objetivo a descentralização das comemorações.
José Manuel Santos, esteve décadas no Palácio de Belém como assessor cultural, primeiro de Mário Soares, depois de Jorge Sampaio, que foi, aliás, o último Presidente da área socialista. A que é que se deve este jejum de vinte anos agora do PS do Palácio de Belém?
Pode ter havido erros políticos na escolha dos candidatos, mas muitas vezes isso acontece em política, para um cargo com esta importância e com as características dele, que é o único cargo político, as pessoas votam numa pessoa apenas, é preciso que o país reconheça que a pessoa em quem estão a votar é a pessoa adequada para aquele lugar. Não quer dizer que na área socialista não houvesse, mas aqueles que apareceram não foram suficientemente convincentes para que pudessem ter sido eleitos. O próprio Mário Soares, como sabemos, foi candidato e provavelmente a minha convicção é que, sobretudo o fator da idade levou a que não pudesse ser eleito. A razão que o levava era uma razão muito nobre, ele achou que ainda podia prestar alguns serviços pela sua experiência política num momento que já se avizinhava como difícil, mas pronto, ele não ficou nada ressentido com isso. A escritora Agustina Bessa Luís, como nos lembramos, tinha sido mandatária do professor Freitas do Amaral na candidatura de 1985-1986, em que Mário Soares ganhou ao professor Freitas do Amaral, e que, portanto, não era propriamente uma correligionária política dele, no dia a seguir à derrota de Mário Soares, nas eleições de 2006, escreve-lhe uma carta um pouco indignada a dizer “ a sua importância histórica, política, cultural não foi reconhecida, este resultado não está de acordo com ela.” E o Mário Soares responde-lhe numa carta a dizer, “minha cara, Agustina Bessa Luís, gostei muito de receber a sua carta e fico muito grato pela atenção que tem para comigo, mas deixa-me confessar-lhe uma coisa: já estou noutra, já virei a página, e agora já estou a pensar o que é que vou fazer no futuro, nas próximas semanas, já tenho a cabeça a fervilhar de ideias para fazer imensas coisas, não estou nada ressentido, as coisas são o que são”. Ele, no fim do livro da Maria João Avillez, faz uma espécie de resumo da sua vida e diz, a certa altura, “não tenho contas a ajustar com ninguém, sou feliz, tudo o que sou devo aos outros, estou num momento em que posso olhar para trás, mas gosto de olhar para a frente, mas insisto muito nisso, não tenho nenhum ressentimento, não tenho nenhuma conta a ajustar com ninguém, todas as que tinha a ajustar, ajustei-as num momento certo e passei, e a seguir já não me lembro mais disso” e até faz uma espécie de ladainha destas coisas e acaba usando uma palavra um pouco surpreendente nele e diz “Amém”, no final.
Porque ele dizia que não tinha sido agraciado com a Fé.
Sim, com graça da Fé.