"Não vou nem tentarei dialogar com o Chega, não negoceio nem dialogo com oportunistas"
A cabeça de lista do BE às eleições europeias, Catarina Martins, no TSF Europa, fala de diálogo com outras forças políticas, assume a governação económica, as migrações, a procura da paz e uma transição climática que não deixe gente para trás como prioridades caso seja eleita. Segunda parte da entrevista.
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Se for eleita, estima conseguir dialogar com os eurodeputados portugueses de outras forças políticas?
Claro que sim.
LEIA AQUI A PRIMEIRA PARTE DA ENTREVISTA COM CATARINA MARTINS
Incluindo o Chega?
Não tenho nenhuma expectativa dialogar com o Chega nem tentarei. Também é bom que sejamos todos claros sobre isso. O facto de o Chega, de vez em quando, poder ter votações que vão ao encontro de projetos que nós até consideramos interessantes, não quer dizer que haja qualquer tipo de acordo com o Chega; ou seja, o Chega normalmente decide as coisas por más razões. Nunca é por convicção, é por oportunismo. Eu não determino a forma como o Chega volta, mas determino a forma como me comporto e eu não negoceio e não dialogo com oportunistas. Penso que é bom que isto fique claro, que acho que é assim que deve ser a política. Acho que no Parlamento Europeu a capacidade de diálogo com mais forças políticas deve existir e espero que exista. Acho que a posição, por exemplo, do Partido Socialista na negociação do pacote da governação económica que retira aos Estados capacidade de investimento nos seus serviços públicos e até de investimento no seu território para coisas tão importantes como a transição climática é um erro e um mau anúncio, mas espero que possa haver alterações também aí. Todas as famílias políticas têm contradições no Parlamento Europeu. Tem sido possível - e a Marisa Matias foi prova de que era possível - fazer diálogos amplos também muitas vezes, e eu espero conseguir aprender também com este legado da Marisa e segui-lo no trabalho que farei.
Que conselhos ou recomendações lhe deu uma das deputadas portuguesas com mais experiência de Parlamento Europeu (PE), a Marisa Matias?
A Marisa, como sabem, não quis continuar Parlamento Europeu. Já o tinha dito em 2019 que seria a última vez que seria candidata. Foi, julgo eu e reconhecidamente, uma das melhores euro deputadas que já passaram no Parlamento Europeu, portuguesas ou não. Fez um trabalho extraordinário, fez um trabalho muito grande sobre questões muito concretas e eu julgo que hoje, por exemplo, quando lutamos pelos direitos dos cuidadores informais, sendo certo estarmos tão longe deles terem direitos, mas o simples fato de usarmos a expressão cuidadores informais, estarmos a lutar pelos seus direitos, vem do trabalho que a Marisa Matias fez no PE. Também em questões ambientais, no combate aos medicamentos falsificados, nas questões da paz, nas questões sobre o Médio Oriente, a Marisa Matias é, aliás, tem muita experiência nestas matérias. Eu falo muito com a Marisa. Se ela me deu um conselho? Deu muitos e ainda bem, espero que continue.
Foi na liderança da Catarina que o Bloco conseguiu o melhor resultado de sempre… em 2015, elegendo 19 deputados, superando o meio milhão de votos e obtendo pouco mais de 10% dos votos. Na altura, o jornal digital Politico, publicado precisamente em Bruxelas, disse que “o sucesso de Martins provocou arrepios a todo oestablishmentda Europa”. Entretanto, o Bloco foi descendo, descendo e agora já será difícil provocar arrepios em Bruxelas e Estrasburgo. Assim sendo, quais vão ser as suas principais batalhas, se for eleita, no Parlamento Europeu?
A governação económica tem de ser uma delas. Quando esse artigo foi escrito sobre o arrepio na Europa, não foi tanto sobre o resultado nacional, foi sobre o que ele significava para a política europeia. Estávamos num momento em que se dizia que os países do Sul da Europa tinham que se resignar para sempre, com salários baixos e, por exemplo, coisas como subir o salário mínimo em Portugal, que na altura estava em 505 Euros, podia ser considerado alvo de sanções económicas. E a força de partidos à esquerda que não abdicaram de lutar por salários melhores, obrigou a mudar até regras de governação económica na Europa. Na verdade, pouco tempo depois, vieram reconhecer que os planos da Troika tinham sido errados. E nas crises seguintes, as regras que tinham provocado situações como a que nós vivemos na crise financeira foram suspensas, por exemplo, ainda agora na pandemia. Ou seja, houve aqui um braço-de-ferro que foi feito e não foi feito só pelo BE. Foi feito por forças de esquerda da Europa de que o seu contributo e acho que deu um contributo forte, muito claro mesmo às vezes, com risco de sermos acusados antieuropeísmo, porque é sempre uma forma de não querer discutir as regras dizer que quem discute as regras é anti qualquer coisa e, portanto, já não se discute. Nós fomos atacados de tudo, mas pelo facto de termos mantido a firmeza de que a União Europeia não podia fazer de Portugal uma experiência neoliberal de destruição das condições da nossa democracia, até as próprias regras europeias tiveram algumas alterações. Hoje em dia, há eurobonds, quer dizer, é uma coisa completamente impensável sequer de discutir na altura. Eu acho que é preciso continuar com a força de fazer esta frente. Eu dou um exemplo muito simples. É aceitável que o Banco Central Europeu (BCE) não tenha nenhuma instância democrática de prestar contas? O BCE faz o que quer quando começa a crise da inflação, os estudos técnicos do BCE dizem: ‘a inflação está a ser provocada pela oferta e não pela procura’. E ainda assim, o BCE aumenta os juros, ou seja, dificulta os salários, põe o problema do lado da procura e não do lado da oferta. E com isto, premeia grandes acumulações. Aliás, ouvimos falar dos lucros excessivos por parte de alguns grupos económicos, ao mesmo tempo que a generalidade da população perde poder de compra. Isto é brutal. Em Portugal, as pessoas conhecem bem esta realidade, porque é um dos países da Europa em que há mais pessoas com crédito à habitação, com taxa variável. Portanto, esta decisão do BCE, que não tem nenhum respaldo técnico e que não foi legitimada por nenhuma instituição democrática, faz com que muitas pessoas em Portugal estejam a pagar o dobro da prestação ao banco. Nós precisamos ou não de discutir se o Banco Central Europeu tem de responder a instâncias democráticas? Esse é um combate para ser feito e esse é um combate que nós queremos fazer.
As migrações também?
Claro.
Vão ser um tema bastante sensível nas eleições de 6 a 9 de junho nos 27 países membros da União Europeia. As duas famílias políticas europeias com partidos chamados de extrema-direita têm intenções de voto que chegam a ser superiores às dos socialistas & democratas (S&D), nalguns casos atingem os mesmo valores que o Partido Popular Europeu. Embora essas duas famílias políticas com partidos de direita radical não estejam propriamente coligadas, tem consciência de que vai ser muito difícil evitar que a União Europeia se transforme mais e mais numa certa ideia de fortaleza?
Em primeiro lugar, é preciso ser claro, a União Europeia já é uma fortaleza e a extrema-direita já ganhou na política de migrações. Neste momento…
O Pacto Europeu de para as Migrações e Asilo é sintoma disso? É prova disso?
E é mais um sintoma disso e grave. Neste momento, o Mediterrâneo é a fronteira mais mortífera do mundo. E é bom que as pessoas tenham noção disso. O Mediterrâneo, por culpa da política europeia, é a fronteira onde morrem mais pessoas no mundo. É uma coisa extraordinária. A UE, e nem sequer estou a falar de Pacto de Migrações e nem sequer estou a falar do equilíbrio de forças no PE através dos seus vários governos, fez acordos bilaterais com a Turquia, com a Líbia e Egito também. Embora os acordos não sejam todos iguais, mas fez acordos para externalizar as suas fronteiras. Isto quer dizer que, em vez de a União Europeia garantir a segurança das suas fronteiras e garantir a forma como as pessoas entram, pede a outros países para tratar disso, para fazer de conta que cumpre direitos humanos e convenções internacionais, não cumprindo, porque, assim, quando pessoas que estão no Mar Mediterrâneo e precisam de ser salvas, em vez de aparecer lá um barco europeu a perceber de que é que aquelas pessoas fogem – sim, porque ninguém se atira ao meio do mar se não estiver a fugir de uma coisa muito grave, qualquer um de nós pense nisto: qual é a mãe que deita uma sua criança num barco no Mediterrâneo? Só se o que tiver em Terra, não for ainda mais perigoso do que aquela situação. A UE, em vez de ir lá perceber quem são aquelas pessoas e porque é que ali estão, o que é que faz? Manda a guarda líbia ir e eles chegam com barcos que são iguaizinhos aos da União Europeia porque são pagos pela UE, equipados com armas da UE e leva aqueles migrantes de volta para a costa líbia, onde eles são escravizados. E disto há investigações e há provas que o dizem. Isto é um atentado aos direitos humanos e quebra todas as convenções internacionais porque a Europa precisa de saber se aquelas pessoas têm ou não direito asilo e nem sequer lhes pergunta. Neste momento, a União Europeia não tem no Mediterrâneo barcos para salvar pessoas. Vê por cima com drones e aviões se há barcos e manda a guarda costeira Líbia ir lá, buscar as pessoas, isto é absurdo. Isto é uma política de atentado aos mais básicos direitos humanos, isto é uma Europa-fortaleza, isto é a extrema-direita no coração da decisão sobre como é que olhámos uns para os outros.
Eu, quando ouço falar de valores europeus, acho que não pode ser. Ou seja, os valores europeus são usados como uma espécie de autoridade moral da Europa no mundo. Eu gosto da ideia de valores europeus. Eu gosto da ideia de direitos humanos, direito Internacional, de democracia, de respeito pelas pessoas. Só que os direitos humanos têm de ser mesmo pra valer. Depois, não pode ser condenar pessoas à morte como está a acontecer, e portanto, quando dizem que o Pacto das Migrações foi o melhor que se arranjou e ainda bem que se fez e o Partido Socialista votou no Pacto das Migrações, eu acho que é absolutamente vergonhoso, porque senão a extrema-direita só fará pior no próximo mandato, eu pergunto: pior como? Nós já estamos a negar direito de asilo, nós já estamos a dizer que crianças podem ser detidas. A UE foi construída depois de uma guerra no território europeu em que houve europeus que foram para todos os cantos do mundo, incluindo para o outro lado do Mediterrâneo, e foram acolhidos. E com isso, com essa experiência, fez legislação Internacional a que nós estamos obrigados. E a UE não está a cumprir nada e eu acho que esse é mesmo um dos maiores desafios, para lá das questões muito complexas do que é ou não a estabilidade ou a instabilidade em várias zonas do globo e a responsabilidade da UE sobre isso. E acho que, por exemplo, Gaza é um exemplo que temos mesmo que falar e agir.
A União Europeia pode fazer mais do que está a fazer?
A UE não fez nenhuma sanção a Israel. A UE que faz normalmente sanções, é uma coisa normal…
E alguma vez vai ser possível convencer a Alemanha disso?
Mas tem de ser, mas tem de ser. Tenho um enorme orgulho na nas gerações mais jovens que eu vejo que, apesar das proibições, das perseguições, seja na França, na Alemanha e noutros países, estão a ir à rua a dizer que nós não podemos aceitar o genocídio do povo palestiniano a acontecer e a acontecer com o apoio da União Europeia. Israel tem um contrato de associação com a EU, que tem responsabilidade directa no que está a acontecer e não está a fazer nada. Há uma operação clara de ataque, de extermínio do povo palestiniano, que está a ser levado a cabo em Gaza, mas também na Cisjordânia e a UE não está a fazer nada. E quando a União Europeia não faz nada sobre isto, e é tão evidente o que está a acontecer, ]e muito difícil que a União Europeia seja vista com mínimo de seriedade no panorama Internacional.
Sendo o Bloco de Esquerda um partido que, na sua raíz, sempre foi contra a NATO, como é que se vai posicionar, se for eleita, neste contexto em que temos uma Rússia muito assertiva, ameaçadora até, do ponto de vista militar?
E a NATO dá-nos segurança? E a minha pergunta é real, ou seja, a NATO é um bloco político militar…
E há alternativa à NATO para a segurança e para garantir essa segurança?
Não, não; ou seja, quem achar que há alternativas simples e mudanças que se fazem de um dia para o outro é absolutamente irresponsável. E não é isso. Mas eu defendo que na Europa haja capacidade de pensar sobre o futuro que queremos. Nem todos os países da UE estão sequer na NATO e, portanto… nós não estamos todos muito preocupados com o que é que vai acontecer com a Irlanda ou com a Áustria e, portanto, tenhamos, tínhamos calma e vamos debater. A NATO é um bloco político-militar que subordina os interesses da UE aos interesses norte-americanos. E isso é assim ao longo da história e são interesses militares que são também interesses económicos. E a UE não ganha em não ter uma estratégia própria. Isso é perigoso do ponto de vista da paz no território europeu, é perigoso do ponto de vista de uma estratégia, por exemplo, sobre a energia e para a transição climática e, portanto, a Europa devia discutir uma estratégia própria com autonomia. E se não for pelas boas razões, e eu gostava que fosse pelas boas razões, pelas razões de querer a paz, pelas razões de querer uma Europa que fosse coesa, que seja pelas más. Se Donald Trump ganhar as eleições nos Estados Unidos, não haverá uma aliança óbvia com Putin? E será a NATO esse parceiro tão fiável de que a União Europeia quer?
Pode até ser contraproducente e uma derrota de Joe Biden acontecer por causa dos protestos contra a política norte-americana em relação a Israel e Palestina…
Tudo isso pode acontecer e é a política e a política acontecer e eu não sei o que é que acontecerá. Sei que os jovens estudantes americanos não estão a querer ver acontecer uma chacina com o seu nome e estão a levantar-se, como muitos europeus também. E ainda bem.
A União Europeia errou ao propor à Ucrânia um acordo de associação?
Não sei se errou ao propor um acordo de associação. A situação é obviamente complexa no Donbass, é complexa há muito tempo e fechou-se os olhos ao que estava a acontecer durante tempo demais.
Ou seja, é sensível às preocupações das populações russófonas do Donbass?
Em geral, sou sensível à ideia de que todas as pessoas e todas as minorias devem ser respeitadas. Mas isto não justifica de maneira nenhuma a invasão russa da Ucrânia; não há nenhuma justificação possível para o que está a acontecer. Isso é um problema e é um perigo. É um perigo para a Europa e claro, a Ucrânia tem direito à sua autodeterminação e às suas fronteiras e nós não achamos, nem sobre a Ucrânia nem sobre a Palestina, nem sobre sítio nenhum do mundo, que o direito à autodeterminação seja uma espécie de direito a ser mártir a ser morto sem se defender e, portanto, achamos que tem que haver um apoio à Ucrânia, na sua defesa e no seu direito a defender o território. Dito isto, a UE tem de fazer mais porque as guerras precisam de negociação para acabar. E é incompreensível, a não ser precisamente por essa subordinação aos interesses norte-americanos e também a interesses económicos muito específicos de armamento, que a UE não tenha tido até agora uma ação consistente para que haja negociações de paz. A UE devia ser a primeira interessada em que houvesse uma conferência de paz sob a égide das Nações Unidas para uma solução que acabasse com a guerra e que respeitasse a Ucrânia e que exigisse a retirada das tropas russas seguramente. Mas alguém tem de começar esse passo e a UE desde o início, que faz muito pouco e muito tarde.
Nunca propôs uma conferência de paz, nunca o quis fazer e um dos exemplos talvez - seria anedótico se não fosse tão trágico - é que, por exemplo, as primeiras sanções que faz contra bens de da oligarquia russa em território da UE foi dizer ‘nós daqui a quinze dias, podemos ficar com os bens que era para dar tempo aos oligarcas de tirarem os bens dos sítios e se protegerem, portanto. Isto foi tudo muito mal feito, foi tudo muito subordinado a interesses económicos e muito pouco a pensar na paz. E continua a ser, porque hoje em dia, quando há a corrida a mais armamento e quando há a corrida a um orçamento maior para o armamento, na verdade não está a haver nenhuma ponderação sobre a Ucrânia. O que está a acontecer é um velho desejo, tanto da França como da Alemanha, de colocar o orçamento comunitário a financiar as indústrias de armamento alemã e francesa, que, por sinal, também fornecem o Governo Netanyahu, com a chacina que está a levar a cabo em Gaza e, portanto, isto não tem nada a ver com a paz. E nós precisamos, sim, de ter um projeto para a paz na Europa.
Que não faça por aquilo que defendeu o presidente francês Emmanuel Macron, já o defendeu publicamente algumas vezes e ainda há poucos dias, de que é possível termos num futuro relativamente próximo, militares europeus a combater ao lado da Ucrânia em território ucraniano?
A escalada da guerra. A Ucrânia tem o direito a defender-se, mas a a entrada de tropas de países europeus, nomeadamente tropas da NATO na Ucrânia diretamente, é uma escalada da guerra com perigo nuclear. E eu não percebo como é que alguém com um mínimo de responsabilidade pode sequer aventar essa hipótese. Na verdade, estão sempre a trabalhar no cenário de guerra. Nunca trabalham sobre o cenário de paz e o cenário de guerra é um cenário que faz em primeiro lugar do povo ucraniano um povo mártir, tudo o que está a passar é horrível, as pessoas estão mesmo a sofrer com a guerra. Isto não é um videojogo. É a realidade das pessoas. E, por outro lado, alimenta grandes interesses económicos que, aliás, já estão a dividir entre si as fatias de reconstrução da Ucrânia para ver com quem é que fica com o dinheiro. E a Ucrânia está completamente endividada com uma dívida externa monstra e a UE não faz aquele princípio básico que era, se eu digo que nas questões da paz as sanções económicas tinham que ter sido efetivas sobre a oligarquia e não penalizarem os povos europeus todos, como acabaram por penalizar, também do ponto de vista da Conferência de Paz, ela devia ser lançada; em geral, a ideia de reconstrução da Ucrânia devia passar por processos tão importantes como a UE ser capaz de fazer um perdão de dívida à Ucrânia para permitir que o Estado seja viável e que haja uma economia viável e, portanto, todos os sinais que nós estamos a versão sinais de nenhuma preocupação com a Ucrânia ou com a paz. Estamos simplesmente a financiar indústria de armamento sem nenhuma estratégia, sem nenhuma perspetiva, sem nenhum caminho para fazer a Paz na Europa.
Em 2015, não se arrepende de não ter entrado mesmo para o governo, em vez de ter aquele acordo escrito que permitiu a chamada geringonça?
Não, repare, esse foi o Governo que correu bem, quatro anos em que as pessoas tiveram progressos nas suas vidas, o que correu mal foi em 2019, quando o Partido Socialista recusou ter um acordo escrito e quis governar à vista e a governação à vista do PS foi fazer uma política muito próxima da direita, exigindo que a esquerda a votasse.
Que acabou por ter consequências quase fatais, quer para o Bloco de Esquerda, quer para o Partido Comunista...
Sim, mas repare, os partidos têm que ter com coerência; o voto do Bloco de Esquerda não destrói o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e portanto, quem olha, por exemplo, a situação do SNS ou para quem vê o percurso dos salários médios e a forma como estão completamente esmagados, percebe que o Bloco de Esquerda não podia ter votado os orçamentos do Partido Socialista que criaram esta situação. E, portanto, enfim, se foi difícil explicá-lo, na altura foi seguramente muito difícil. Terei responsabilidades sobre isso, seguramente. Não digo que não, mas acho que a política não pode ser oportunismo. Tem de ser convicção. Tem de ser um projeto para o país e no nosso projeto para o país existe acesso à saúde, existem salários com mais fortes, com uma economia mais equilibrada e não com o desequilíbrio que existem. E nós devemos votar e fazer um caminho coerente com aquilo em que pensamos e tentar explicar o melhor possível, tentar juntar o máximo de pessoas possível sobre esse projeto. Mas mudar de projeto é que não, ou seja, passar a acreditar noutra coisa é que não. Eu acredito mesmo é que a democracia vive com um Estado social forte e que vive com questões de igualdade e que o salário é o primeiro mecanismo de redistribuição de riqueza e de dignidade de um país. E é assim que eu vejo a política nacional e a política europeia.
Acabou de dizer, ‘terei responsabilidade nisso’, consegue-o dizer depois de estar doze anos à frente de um partido, primeiro em co-liderança com João Semedo e depois como coordenadora do Bloco de Esquerda. Quem conhece um pouco os meandros da política europeia - bastaria falar no desgaste das viagens, mas vamos deixar isso - percebe que não se vai para o Parlamento Europeu para descansar. Portanto, candidatar-se é sinal que não está cansada da política, ou que a política não a desiludiu o suficiente?
Não, não, não, a política não me desilude. A política é um combate por ideias. É um combate por projetos de futuro. Acho que ninguém se deve eternizar num cargo e não quis eternizar-me num cargo. Acho, aliás, que a Mariana está a fazer um magnífico trabalho com a energia que eu não teria. E não é só energia como a forma de olhar o mundo que tem a ver com o momento que estamos a viver, e ela tem uma preparação extraordinária, tem feito um trabalho extraordinário. Outra coisa é saber se eu posso ou não, se eu devo ou não ter um papel de outra forma nos combates que são os meus de sempre, da dignidade do trabalho, do Estado social, de olhar para o futuro e perceber o que é que está a acontecer com o clima? Podemos ou não mudar a economia para termos melhores empregos, empregos mais qualificados, mudarmos a mobilidade e isso não ser deixar pessoas para trás, mas, pelo contrário, ter mais coesão territorial, incluir mais pessoas? Isso eu posso ter. Nisso, o BE achou que sim, eu modestamente também achei senão não teria aceite. Esta candidatura acresce que para mim também é desafiante, e que é verdade que do ponto de vista europeu, as dificuldades são claras e que em todos os grupos, todas as famílias políticas europeias há contradições. Nós articulamo-nos com partidos de esquerda, partidos ecologistas sobretudo, sabemos que há contradições na esquerda, mas também há contradições dos Verdes, por exemplo, que têm alguns partidos que estão em coligação com partidos liberais e que nunca farão uma transição climática, porque acham que o mercado é que a vai fazer, enfim... Mas é possível? Eu tenho trabalhado nisso e estou a trabalhar nisso há alguns anos, não por causa destas eleições europeias, mas por causa do momento que a Europa vive, uma articulação a que nós chamamos Agora, O Povo que começou connosco, Podemos, a França Insubmissa que, entretanto, tem vindo a alargar, alargou para os nórdicos com Aliança Verde Vermelha da Dinamarca, com o Partido da Esquerda sueco, com a Aliança da Esquerda da Finlândia. Entretanto, o elenco da Alemanha também tem trabalhado connosco, também no Luxemburgo e, portanto, há uma série de forças de esquerda que estão a ser capazes, digo eu, de lutar por ter um projeto que é simultaneamente um projeto social para a Europa, um projeto de respeito pelo trabalho, um projeto de superação de capitalismo, um projeto anticapitalista, um projeto climático e um projeto de direitos humanos feminista que leva mesmo os direitos humanos muito a sério. E esse é um projeto que me anima também. E eu acho que na Europa é preciso construir estas alianças vastas.
Falámos no início do número de deputados, portanto, a ideia de manter 2 deputados ou se possível crescer e reconheceu que seria mau resultado passar a ter apenas um eurodeputado. E em termos de classificação entre os entre os partidos portugueses, a meta do Bloco é ficar em quarto lugar?
Não sei. Ou seja, o Bloco foi durante algum tempo o terceiro partido.
Partindo do princípio que se os resultados das legislativas minimamente se transpuserem, o Chega será pelo menos o terceiro partido…
Sim, veremos o que vai acontecer. Eu não acho que o Chega seja uma força transitória, ou seja, eu acho mesmo que há uma parte da sociedade que não se revia nos partidos, digamos assim, democráticos e que encontrou ali um espaço de expressão que não tinha desde o 25 de Abril. Isso preocupa-me, isso deve ser combatido. E eu acho que isso é um combate muito vasto, social, cultural, que tem de ser feito.
A multidão nas comemorações no último 25 de Abril é uma resposta?
É claro que é, é extraordinário. Há 82% das pessoas não querem aquele projeto antidemocrático e que não querem aquele projeto do ódio, mesmo que depois vão votar em projetos que eu acho que são terríveis e que eu não concordo do ponto de vista económico, do ponto de vista da forma como olham para o Estado social. Mas, convenhamos, nós temos uma grande maioria que acha que a democracia é importante, que a igualdade e a liberdade são importantes e é nessa maioria que nós temos que disputar projetos de futuro, projectos que nos reinventem porque Portugal e a Europa está a precisar de uma reinvenção de um projeto económico que dê resposta às várias crises dos nossos tempos e em que as pessoas possam encontrar um horizonte de esperança, porque a democracia só vive de esperança. A democracia é como andar de bicicleta: se parar, cai. E, portanto, é preciso ter esse caminho comum a ser construído e eu acho que há muita gente que quer construir.