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Em entrevista à TSF, Jaime Nogueira Pinto defende que o 25 de Novembro foi o “termidor” português que consolidou a democracia. O politólogo e escritor afirma que se a esquerda tivesse ganho “teria havido uma guerra civil", mas admite que certa direita ficou desiludida.
Onde é que estava no 25 de Novembro?
Estava a chegar ao Brasil porque, quando eu estava em serviço militar em Angola, tive um mandado de captura numa daquelas listas de suspeitos porque eu tinha sido um dirigente da direita na faculdade e, portanto, nessa altura, fui para a África do Sul. Eu tenho essa história contada toda num livro chamado Jogos africanos. Fui para a África do Sul, através da Namíbia, fiquei um ano na África do Sul e depois fui para o Brasil. No dia 25 de Novembro tinha viajado de Madrid para o Rio de Janeiro. E conheci algumas das pessoas que estiveram envolvidas, sobretudo, do pessoal dos comandos que esteve envolvido no terreno no 25 de Novembro.
Depois, como disse, dá um romance: o Novembro…
É verdade, chama-se Novembro exatamente porque acaba no dia 25 de Novembro. Está contado de forma ficcionada, porque, é como diz o Prémio Nobel turco Orhan Pamuk, a vantagem da ficção é que a gente pode pôr as histórias passadas connosco, como passadas com outros e as passadas com outros como passadas connosco e tem toda a razão. E, portanto, está contado esse lado menos conhecido da história.
Havia, de facto, o risco de um golpe à esquerda? Houve mais do que um golpe a acontecer ao mesmo tempo?
Eu uso muito aquela imagem das caixas chinesas ou das bonecas russas. No 25 de Abril havia várias pessoas que achavam que o golpe deles era o último e depois havia sempre um que era mais fundo do que esse. No 25 de Novembro, eu acho que há uma conjuntura que acaba por ser desfavorável aos grandes intervenientes todos. Portugal, a partir de quando perdeu o Império, de certo modo, deixou de poder ter uma política independente, quer dizer, passou a estar um bocado dependente dos grandes poderes deste mundo. E, nessa altura, quem são os grandes poderes? São o Ocidente, nomeadamente os Estados Unidos, havia a Alemanha, que também está muito envolvida, a França e o Reino Unido também. E, do outro lado, a União Soviética que não tinha interesse nenhum em ter de repente um Estado comunista, uma espécie de Cuba em Portugal, até porque a conjuntura com a Espanha, com o General Franco, já se aproximava do fim, não havia interesse nenhum dos comunistas de um golpe comunista, imaginando que esse golpe seria bem-sucedido. O Doutor Cunhal, que era um homem lúcido, sabia perfeitamente qual era o jogo de forças. Os comunistas tinham sido assediados nas suas sedes e tinham tido sedes queimadas. Tinha sido varrido praticamente no terreno, tirando na cidade do Porto e na cidade grandes. Tinha havido todo aquele movimento popular, na altura muito orientado pela Igreja, pelos párocos. Por isso mesmo, no 25 de Novembro, não há dúvida que onde o Partido Comunista tinha alguma força era nos fuzileiros, que tinham ainda uma certa atividade e operacionalidade. Essa força não sai para enfrentar as companhias de comandos. Portanto, as companhias de comandos fazem aquela liquidação da polícia militar. E, depois, com o balanço que lhe dão, o grupo dos 9 e o Dr. Soares, o PCP sobrevive. Fazendo a comparação dos esquemas das revoluções, o 25 de Novembro foi o tal “termidor” português e, de certo modo, a revolução a partir daí vai-se institucionalizar com um novo regime, confirmado pela Constituição de 1976. Acho o período entre a 25 de Abril e a Constituição de 76 é uma espécie de interregno. Ainda não há Estado de direito. Nesse período, a gente vê os militares, as quintas divisões... Há uma espécie de interregno. É o PREC, depois é o contra PREC. Até à Constituição de 76 não se pode falar nem Estado de direito, nem garantias constitucionais. E, portanto, sobre esta polémica sobre se o 25 de Novembro deve ser celebrado ou não em termos de regime? Eu acho que faz parte dos fundamentos do regime democrático em Portugal da Terceira República.
E em Madrid havia algum fervor revolucionário golpista?
Contrarrevolucionário havia alguns. Nessa altura, estão divididos àqueles dois movimentos, um mais conhecido que era o MDLT (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), outro menos conhecido que era o ELP (Exército de Libertação Português), que, aliás, as histórias deles estão também lá ficcionadas, no Novembro. Havia o MDLT, eram os Spinolistas, e no ELP também estavam outros amigos. Havia uma certa consciência do que se estava a passar e também havia o pessoal mais sério, que era o pessoal das companhias de comandos que foi reintegrado, que eram os chamados convocados, e foi esse pessoal que foi decisivo na contenção da Polícia Militar, no 25 de Novembro.
Haveria a esperança de que a manobra militar pudesse ir um bocadinho mais longe?
Havia sobretudo aquela ideia de, a partir do 25 de Novembro, a partir dessa mudança ou dessa contenção, fazer, em relação à direita, aquilo que o Partido Comunista tinha feito à esquerda, depois do 25 de Abril. Era um aproveitamento contrarrevolucionário desse reequilíbrio militar. Mas não aconteceu. Essas estruturas tinham dependências estrangeiras que não queriam que fosse um “termidor”, que fosse aproveitado depois para uma linha contrarrevolucionária.
No fim do livro Novembro, o protagonista acaba um pouco desiludido. Houve alguma desilusão à direita?
Houve um bocado, porque havia pessoas que estavam à espera que voltassem para trás desde as nacionalizações, que a Constituição de 76, portanto, não fosse depois aquilo que foi, havia aquela ideia que se estava na Alemanha de Weimar. De facto, depois aí funcionou muito os contrabalanços, o grupo dos 9, o próprio General Eanes, os partidos, Partido Socialista e o PSD travaram muito essa movimentação. Digamos que o pessoal que estava no terreno, as tais companhias de convocados dos comandos podiam ter muito essa ideia e era natural, até porque era pessoal que tinha feito a Guerra de África e, portanto, estavam muito revoltados e chocados com a descolonização e tudo isso. Mas não há dúvida que a realidade das coisas era no sentido daquilo que depois funcionou até hoje, que foi a vinda do centrão, com um centro-esquerda ao PS e no centro-direita, o PSD.
A guerra civil chegou a estar iminente?
Não creio. Estas decisões tomam-se sempre na capital. A última guerra civil que a gente teve desse tipo foi a monarquia do Norte, que de facto se estendeu e tivemos depois naqueles movimentos em 27, os movimentos do 7 de Fevereiro, contra o Estado, contra a ditadura militar. As cidades é que comandam esse aspeto.
E hoje essas divisões estão resolvidas?
A esquerda acha e parece que, pelo menos uma parte do PS, acha que não se deve comemorar o 25 de Novembro, porque isso é tirar essencialidade ao 25 de Abril. Mas acho que o 25 de Novembro faz parte desse roteiro de revolução, estabilizador e terminador. Se o pessoal da esquerda tivesse ganho no 25 de Novembro, aí é que teria havido uma guerra civil e teríamos passado um mau bocado, porque eram um bocadinho lunáticos. Portanto, nesse aspeto, o 25 de Novembro faz todo o sentido, como ser um momento fundacional do regime da Terceira República.
A direita já se recuperou da desilusão do 25 de Novembro?
Acho que já passou tanta coisa horrível por cima. O fim do Império foi a coisa mais significativa e esse já estava para lá. Não sou de vinganças, nem de ressentimentos, portanto, também não me interessava nada. Ia-se pôr um regime ditatorial para quê? Enquanto durou o regime autoritário para manter o Império, para mim, fazia todo o sentido. Sem Império, não faz sentido nenhum. O chamado jogo democrático, enquanto for aceite, funciona, pelo menos tem a vantagem e acaba por ser um sistema que tem essa aceitação e vai funcionando melhor ou pior. O país está paupérrimo, as pessoas que têm alguma qualidade têm de emigrar, temos salários baixíssimos. Há 50 anos, antes da revolução, as pessoas, melhor ou pior, esperavam ter uma vida melhor do que os pais. Isso hoje é exatamente ao contrário, mas pronto, está feito. Está feito.