"O Bloco tem dois eurodeputados, gostaríamos de manter ou de crescer e é para isso que lutamos"
Foi líder do Bloco de Esquerda durante mais de uma década e agora encabeça a lista do partido às eleições europeias de 9 de junho. Define metas, assume o que poderão ser um bom e mau resultado, fala do Chega e diz que o governo de Montenegro tem sido uma trapalhada. Primeira parte da entrevista ao TSF Europa.
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Catarina Martins, natural do Porto, 50 anos. Em criança viveu em São Tomé e em Cabo Verde, onde os pais eram cooperantes. Fez a então primeira classe em territórios são-tomense e os dois anos seguintes em duas ilhas cabo-verdianas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, tem um mestrado em Linguística e frequência de doutoramento em Didática das Línguas. Esteve nas lutas estudantis contra a PGA, a Prova Geral de Acesso. Foi coordenadora do Bloco de Esquerda (BE) entre 2012 e 2023. É atriz e foi uma das fundadoras do grupo de teatro Visões Úteis.
Catarina Martins bem-vinda à TSF e ao TSF Europa… Qual é a visão útil que leva para Bruxelas?
Olá. Primeiro, muito obrigada. Gosto muito de estar cá. Julgo que a ideia (da candidatura) foi mesmo utilizar o percurso que eu tive já na política portuguesa e o conhecimento que tive de dossiers vários para decisões europeias, se quiser combates europeus, que vamos ter, que são determinantes nos próximos tempos. As pessoas o que têm noção, embora se sintam sempre afastadas da decisão europeia, é que na Europa se decide boa parte da nossa vida, e boa parte da legislação que, enfim, tem impacto direto no nosso quotidiano. Nós vivemos o momento particular em que muitas coisas vão mudar na Europa, seja por questões de modelo económico e a forma como a governação económica tem estado em debate - isso tem muitas implicações até na sobrevivência dos serviços públicos, por exemplo.
Mas vão mudar dependendo do resultado destas eleições ou já dá por adquirido que vão mudar para pior?
Não, há coisas que vão mudar necessariamente. Nós não queremos é que mudem para pior. Por exemplo, em relação à às alterações climáticas, as alterações climáticas estão aqui e isso está a ter um impacto e vai ter um impacto cada vez maior das nossas vidas e não fazer nada sobre isso é também tomar decisões sobre isso. E portanto, o que vai acontecer já está marcado. As questões da guerra e da paz estão aqui. Portanto, que a Europa está num momento em que existirá mudança, existirá seguramente. É preciso é discutir que mudança é que nós vamos ter e nós acreditamos que é possível fazer pontes largas na Europa para mudanças que que acreditem num projeto de democracia, num projeto coletivo de paz, num projeto coletivo desse equilíbrio tão precioso entre liberdade e igualdade de que se constrói a democracia na Europa, que precisa de estado social, que precisa de legislação do trabalho e vai precisar seguramente de uma política climática e eficaz. Caso contrário, a degradação das condições de vida será muito evidente e muito rápida.
Mas voltando ao trocadilho com o nome da companhia de teatro que fundou, é possível mais do que visões úteis ou utilitaristas? É possível, no momento em que vivemos, ter visões de esperança para um projeto europeu no qual os cidadãos se possam rever?
Eu acho que sim, acho que é preciso alguma clareza das escolhas. Parece-me claro que há campos diferentes na política europeia. Temos um campo de extrema-direita que vai tomando posições às vezes contraditórias do ponto de vista económico, mas que tem sempre uma ideia de ataque aos direitos humanos, tem sempre uma ideia de xenofobia latente e um bocadinho de corrida para o fundo. É um perigo e é uma ameaça à paz e à sobrevivência da democracia.
Temos também um campo político que tenta dizer que tem que ficar tudo como está, que não se pode mexer em nada - e aqui há uma aliança muito vasta que toca vários partidos e famílias políticas europeias, que tem defendido mais ou menos o status quo, recusando-se a perceber o que tem sido uma corrida para o fundo das condições de vida das pessoas, que leva a que essa esperança vá ficando cada vez mais difícil de encontrar. E a democracia precisa de esperança; por ser uma ideia de Comunidade, precisa que as pessoas acreditem que juntas estão a construir um futuro melhor e não pior. E depois, eu acho que há um outro campo que também, eu diria, atravessa várias famílias políticas e que acredita que com mudanças importantes neste momento na Europa, nós podemos ter um projeto diferente, um projeto que pode voltar a fazer com que com palavras como solidariedade tenham sentido e que consiga reconstruir o modelo de economia, um modelo de mobilidade na Europa, que possa ser essa nova construção de um espaço comum, que não insista no que não funciona, mas também que não decida que agora é a lei da selva que vale.
Para o Bloco de Esquerda, o que será um bom resultado a 9 de junho?
O Bloco de Esquerda neste momento tem 2 eurodeputados, gostaríamos de manter ou de crescer e é para isso que lutamos. Temos feito também um trabalho de aliança a nível europeu, que para nós é importante. Nós não desconhecemos as contradições em todas as famílias políticas, porque elas existem e temos construído um espaço político com vários países, que é bastante claro sobre as questões da transição climática. Tem de ser uma transição justa. Ou seja, se não houver apoio, se não houver uma maioria social que queira a transição climática, ela não vai acontecer. O Bloco tem tido posições claras sobre a necessidade da paz na Europa, sobre o respeito pela autodeterminação dos povos e também sobre modelos de governação económica na Europa que permitam aos estados ter estado social, ter serviços públicos. E esse tem sido um trabalho interessante e portanto, para nós, um bom resultado é um resultado nacional para o Bloco de Esquerda que seja bom, mas é também conseguirmos que essa ampla frente Europeia possa ter mais força.
Portanto, baixar de dois para um deputado seria um mau resultado?
Claro.
E se não for eleita é uma derrota do partido ou uma derrota pessoal?
São ambas, não é? Ou seja, claro que o BE é um coletivo e tudo o que eu faço, faço num colectivo, é assim que eu vejo a política. Só assim é que ela tem sentido, mas assumo também as responsabilidades individuais, claro, de ter que passar as ideias do Bloco, de ter uma campanha que passa essas ideias, que permite às pessoas compreender aquilo que nós propomos e, espero eu, votar nesse projeto.
O partido que esta segunda-feira começa jornadas parlamentares no Funchal é agora um pequeno partido?
Não, não diria isso. Acho que a política portuguesa no pós-pandemia teve uma reconfiguração muito forte, sobretudo à direita, que teve consequências com o que aconteceu à esquerda, nomeadamente sobre voto útil. Mas o BE continua a ser um partido onde se juntam pessoas de vários movimentos, de vários ativismos, de vários caminhos da vida, digamos assim e continua a ser um espaço amplo de disputa social, de progresso civilizacional e democrático muito amplo. E portanto, eu não creio que um partido se meça simplesmente por resultados eleitorais pontuais, mas também pela sua capacidade de interlocução social e essa claramente o Bloco tem-na e ampla.
Mas o líder do Chega também pode dizer que o Chega é hoje um partido que reúne pessoas de várias sensibilidades e com vários caminhos de vida e que acabaram por confluir naquele partido.
E é verdade, e eu acho até que o fenómeno Chega deve ser analisado tendo em conta os estudos eleitorais que foram feitos eleitorais e o facto de se perceber que uma parte da população que vota no Chega, antes não votava porque se abstinha, e há uma parte que vem de voto que já estava na direita e que se reconfigurou no Chega.
Alguma transferência de votos da esquerda, inclusive de pessoas que eram do Bloco de Esquerda e que passaram a votar no Chega…
É muito residual. Isso é muito residual. De acordo com os estudos, eu estive recentemente com o Pedro Magalhães e com alguns que têm feito alguns estudos sobre isso, e é interessante perceber que a generalidade do voto do Chega é um voto de direita e um voto de direita, parte dele que não se expressava porque é um voto de pessoas que são saudosistas do Estado Novo; ou seja, que têm dúvida ou que não acreditam na democracia, pessoas que têm visões claramente xenófobas, pessoas que têm visões claramente homofóbicas.
Portanto, está a dizer que quase uma em cada 5 pessoas neste país pensa assim, são xenófobos e racistas?
Não sei se cada uma em cada cinco pessoas pensa assim, mas nós enganamo-nos se não olharmos para as respostas que as próprias pessoas deram; ou seja, estes estudos fizeram perguntas às pessoas, em quem é que votaram? E perguntaram, como é que as pessoas viam questões como a imigração, como o respeito pelas minorias do mais variado tipo e também como é que viam as questões do Estado Novo. E não são todas, mas há uma grande maioria de pessoas que aderem a essas ideias. E eu acho que é importante debater isto, porque isso significa que, provavelmente, do ponto de vista cultural e social no nosso país, nós não fizemos até hoje, com a clareza que devíamos, os debates sobre o que é democracia, sobre o que é igualdade. E esses debates devem ser tidos. Se calhar nós deixámos muitas vezes de discutir questões, por exemplo, coloniais, porque era uma chatice e ninguém as quis discutir. Não discutimos, por exemplo, as questões dos direitos das mulheres e deixámos que, do ponto de vista cultural, enquanto temos leis muito avançadas na sociedade, as mulheres continuam a ser vítimas de crimes todos os dias. E se calhar o Chega é um sinal da quantidade de debates e conversas que não fizemos e que, enquanto democracia, devemos fazer. O que não retira e queria isto dizer, que não haja também, do meu ponto de vista, um problema de sistema económico, ou seja, de muita gente que se sente deixada para trás, que não percebe como é que tem uma perspetiva de um futuro melhor na forma como o nosso sistema económico está. E isso pode levar a raiva e a frustração, e isso deve ter outras respostas também. É por isso que eu não acredito em amplas frentes antifascistas que, do ponto de vista das perspectivas de vida, ou seja, das condições concretas e materiais da democracia, não avançam nada.
Como é que avalia este primeiro mês de governo da Aliança Democrática?
É uma trapalhada, mas eu julgo que o problema é que - a avaliação não é só minha, é uma avaliação mais ou menos geral - nós temos um governo que a única coisa que conseguiu mudar foi o logotipo do próprio Governo. Dizem que é da República, mas não, é só mesmo do próprio Governo. De resto, não se conhece nenhum projecto. Sobre o IRS, prometeu que ia fazer uma coisa, já se percebeu que não ia fazer absolutamente nada, que estava a apresentar o mesmo que António Costa já tinha feito, pouco mais. Não tem nenhuma capacidade de interlocução no Parlamento, não quer negociar. Aparentemente julga que, embora não tenha maioria, os outros partidos devem dar-lhe uma maioria. É um absurdo, é um absoluto absurdo.
Mas na semana passada, foi aprovado um diploma do BE que "permite a dedução dos juros do crédito à habitação contratualizados após 2011"…
É uma belíssima proposta, ainda bem que foi aprovada.
Portanto, não corre mal o diálogo do Bloco com o governo de Luís Montenegro…
Na verdade, foi contra a proposta do governo. Houve uma maioria no Parlamento que permitiu viabilizar uma proposta do BE que é uma proposta que, até do ponto de vista geracional, é muito importante, para se avançar alguma coisa de justiça no IRS. Para que as pessoas saibam: quem contraiu créditos à habitação até 2011, pode deduzir os juros no IRS, quem contraiu os créditos à habitação depois de 2011, portanto, as gerações mais jovens, já não o podem fazer. E há aqui uma injustiça geracional, incompreensível, ainda por cima. Agora, com a subida dos juros, isso tem um peso grande nos orçamentos familiares e a proposta do Bloco de Esquerda de alguma forma traz alguma justiça geracional à forma como se pensam as deduções em IRS.
Há uma outra proposta, que abrange, aliás, toda a gente, tem a ver com atualizar a dedução específica com a inflação, porque a dedução específica é uma dedução que as pessoas têm no IRS que tem a ver com o que é preciso para se viver (isto simplificando um bocadinho) e cujo valor estava parado há muito tempo. Ora, com a inflação que existiu, a adoção específica tinha de ser actualizada. Portanto, são duas propostas do bloco. Foram aprovadas. São duas boas propostas. Eu, aliás, diria que destes dias, o que fica foi o que a oposição foi capaz de aprovar.
Falamos da proposta de IRS do BE que acho que é importante, mas também foi importante a aprovação da proposta do Partido Socialista sobre o fim das portagens nas SCUTS, ainda que eu ache estranho porque o BE propôs tantas vezes e o PS chumbou sempre, mas ainda bem avançou-se. Da parte do Governo é que não se conhece nenhum caminho. E agora vir com esta ideia que, afinal, as contas não estavam como pensavam, quando não é verdade, porque o próprio Governo percebe a diferença entre os registros de défice em contabilidade nacional de contas públicas e apresentou o programa de estabilidade igual ao que o Governo do Partido Socialista tinha deixado pronto. Portanto, é uma má desculpa, digamos assim, à vista de toda a gente, e eu julgo que isso é um prenúncio do Governo a não querer cumprir com as expectativas numa série de profissões do Estado. E pergunto-me o que é que acontecerá, por exemplo, com as carreiras na saúde que são tão essenciais a que o Serviço Nacional de Saúde responda à população? O que é que acontecerá com o tempo de serviço dos professores, por exemplo, que é uma matéria que já devia estar resolvido há tantos anos e que se arrasta ou como serão as negociações com as forças de segurança.