"O caso é grave." BE pede explicações ao Governo sobre interrogatórios de companhia israelita no aeroporto de Lisboa
"Queremos saber desde quando é que esta prática existe, quem é que sabia, quem é que autorizou, se houve autorização. Deve haver consequências, sem dúvida, porque a nosso entender isto viola a legislação portuguesa", diz Fabian Figueiredo à TSF
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O Bloco de Esquerda (BE) considera que a existência de interrogatórios e intimidações a passageiros pela companhia aérea israelita El Al no Aeroporto Humberto Delgado é "inaceitável" e enviou questões ao ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, para saber se o Governo sabia e autorizou estas práticas.
À TSF, Fabian Figueiredo, líder parlamentar e dirigente do partido, considera que estas práticas são inaceitáveis: "Nós queremos saber como é que essa prática se compatibiliza com a legislação portuguesa, com as regras do Estado de direito, porque o caso é grave. E se o Governo tinha conhecimento, o caso é ainda mais grave, porque creio que a larguíssima maioria da sociedade portuguesa desconhecia estas práticas no aeroporto de Lisboa e elas são inaceitáveis. E é por isso que nós vamos apurar todos os factos e exigimos esclarecimentos às várias áreas da tutela, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, à Administração Interna, ao Ministério da Presidência e ao Ministério das Infraestruturas, porque nós queremos ter a certeza que isto termina, que esta prática termina no aeroporto de Lisboa. E queremos saber até que ponto é que o Estado português está envolvido neste processo, que se este Governo sabia se, os anteriores governos sabiam. Esta prática tem de cessar."
A El Al Airlines está a ser acusada de interrogar e intimidar passageiros e interrogar passageiros portugueses e estrangeiros no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Numa investigação do jornal online Fumaça, há dois relatos de cidadãs palestinianas. Além disso, a companhia israelita é acusada de recolher informações sobre cidadãos portugueses. A El Al já tinha sido alvo de denúncias sobre práticas semelhantes noutros países, mas não há registo de queixas formais nas autoridades portuguesas.
Para o líder da bancada parlamentar do BE, é importante saber quem são os funcionários que fazem estes interrogatórios e que garantias há sobre os dados recolhidos.
"Temos uma empresa aérea que tem gabinetes próprios, onde são recolhidos dados e interrogados cidadãos. Nós queremos saber também qual é que é a função e a profissão desses mesmos funcionários. Estamos a falar de funcionários da companhia aérea? Estamos a falar de funcionários da companhia aérea que pertencem ou que trabalham para forças e serviços de segurança do Estado estrangeiro? Quais é que são as garantias que há sobre os dados que são recolhidos? Isto é inaceitável", questiona.
Fabian Figueiredo considera que "há um problema de direitos humanos, um problema de soberania e, sem sombra de dúvida, um problema de cumprimento da legislação portuguesa, porque há regras sobre quem é que pode interrogar cidadãos, quem é que pode deter, nem que seja temporariamente, cidadãos".
"Essas competências pertencem aos órgãos de polícia criminal. Não pode ser uma empresa estrangeira a ter funcionários que fazem interrogatórios a cidadãos nacionais, a cidadãos residentes em Portugal ou a cidadãos que transitam por Portugal", complementa.
O Bloco de Esquerda pede consequências: "Se este Governo sabia, o anterior Governo sabia. Nós queremos saber quem que eram os responsáveis que deixaram que no aeroporto de Lisboa se instalassem salas de interrogatório de uma companhia aérea estrangeira. Queremos saber desde quando é que esta prática existe, quem é que sabia, quem é que autorizou, se houve autorização. Deve haver consequências, sem dúvida, porque a nosso entender isto viola a legislação portuguesa. É inaceitável achar-se que houve responsáveis governamentais ou altos responsáveis públicos que tenham autorizado, porque estas instalações tiveram que ser construídas. Aqueles gabinetes tiveram de ser disponibilizados. Isto acontece em território nacional, mesmo que seja em área Internacional."
"Processo de humilhação"
Selma (nome fictício) é uma médica palestiniana com passaporte israelita. Ao Fumaça, conta que sempre evita viajar na El Al, mas num dia em agosto de 2022 não teve alternativa para viajar de Lisboa para Telavive. A companhia israelita não tem check-in online e os passageiros são obrigados a ir a uma área reservada no átrio do terminal 1 do aeroporto lisboeta para um primeiro controlo de segurança. Com um agente da PSP presente, Selma é interrogada uma primeira vez por uma funcionária israelita em hebraico, em que é questionada sobre as razões que a levaram a Portugal, quem conheceu, com quem esteve e sobre a amiga que a levou ao aeroporto. Hesitante, identificou-a e, a partir daí, as questões focaram-se na amiga: "O que é que ela faz? Onde é que ela mora? Deu-te algum presente?"
Neste processo, os funcionários da companhia israelita dividem os passageiros consoante a avaliação que fazem. As respostas que deu não foram suficientes e recebeu instruções para se dirigir a outra sala, perto da porta de embarque, mas que não encontrou e ninguém à volta a soube ajudar. Dirigiu-se para a porta de embarque até que do altifalante ouve o seu nome e de outro passageiro serem chamados. Também ele é árabe. Selma entrou então numa sala reservada pela Ela Al e com a indicação de entrada proibida. Sozinha com cinco funcionários da companhia aérea, volta a ser questionada em hebraico. Os seus pertences, como telemóvel, passaporte e a mala, ficam com os funcionários que passam os objetos (incluindo os que estão dentro da mala) um a um pelas máquinas de raio-x e detetores de vestígios de explosivos. As questões continuam: "Perguntam onde moro, se sou casada, porque é que ainda não me decidi quanto ao meu futuro profissional, porque vou mudar de cidade e de emprego. Fazem-me perguntas para que nem eu sei a resposta."
Selma garante que não estavam mais pessoas na sala além dela e dos funcionários da El Al. "Acredito que nunca fui suspeita de representar qualquer tipo de ameaça. É só um processo de humilhação", considera.
Em maio deste ano, outra passageira palestiniana com passaporte israelita passou por um processo idêntico. Citada pelo Fumaça, Mariam, também nome fictício, é estudante. Na primeira abordagem foi afastada de uma amiga com quem falava árabe e foi interrogada sozinha. "Há outros passageiros na fila – europeus ou israelitas judeus – e isso não lhes é pedido. Eu sou a única árabe", conta. Uma funcionária questiona-a em inglês e outro em hebraico. Mais uma vez, existe um agente da PSP presente. Mariam estima que a conversa tenha durado entre 20 e 30 minutos.
É questionada sobre a amiga, sobre se conheceu pessoas árabes em Lisboa, nomeadamente libanesas e sírias, se viajou para esses países. Mariam responde que com o passaporte israelita não pode entrar na Síria e no Líbano. Contudo, as viagens para a Jordânia suscitam a curiosidade de quem a interroga: "Quem pagou o teu bilhete para cá? O teu pai sabe que viajaste para Lisboa?"
E pior ficou quando revelou que tinha estudado na Universidade Americana de Jenin. Nesta cidade da Cisjordânia estão ativos grupos de resistência armada contra a ocupação e é alvo frequente de ataques do exército de Israel. Diz que já não tem lá amigos, mas isso não convence. Também ela não tem outra alternativa de voo. Já na sala de revistas da El Al, encontra mais quatro passageiros: "Só há cinco árabes naquele avião e todos estamos a ser investigados e assediados naquele terminal."
Sozinha apenas com dois fiscais da companhia na sala, a mala é revistada e a Mariam é pedido que tire alguma roupa. Fica apenas com um top fino e com leggins para ser revistada: "Foi muito frustrante perceber que estas pessoas têm o direito de me questionar sobre toda a minha vida, vasculhar todas as minhas coisas, e determinar se eu posso regressar ao meu país, onde os meus antepassados viveram durante séculos."
Mas as denúncias chegam também de cidadãos portugueses. Afonso Queiró, membro de coletivos antirracistas e antissionistas em Portugal, conta ao Fumaça que também em maio deste ano foi questionado em inglês e com insistência sobre as razões que o levavam a Israel, tendo sido pressionado a mostrar fotografias das pessoas que lá ia encontrar. Também ele seguiu para uma revista numa sala separada, com a presença de um agente da PSP. "Disse-me que estava ali para proteger os meus direitos, que eles não tinham jurisdição para me obrigar a fazer nada. Mas não senti que pudesse recusar aquele processo e embarcar na mesma", conta Afonso, que seguiu viagem depois de 40 minutos de interrogatório.
Questionada pelo Fumaça, a PSP recusa responder há quanto tempo acompanha estes procedimentos da companhia israelita, nem sobre que tipo de função faz ou quem a contrata, já que "as ações de segurança aeroportuária são de carácter reservado", referindo apenas que estas denúncias "são necessariamente objeto da melhor atenção por parte da PSP, pelo que a situação reportada merecerá escrutínio". ANA - Aeroportos e El Al não responderam às questões do jornal online, ainda que a companhia aérea, nos termos do contrato dos seus voos, se desresponsabilize "pelo desconforto causado ou artigos confiscados por autoridades da segurança", deixando a nota de que as bagagens podem ser revistadas mesmo sem a presença dos seus donos. A Agência Nacional de Aviação Civil e a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor não têm qualquer registo de queixas contra a companhia aérea israelita.
Mas estas atuações não acontecem só nos voos da El Al Airlines. A companhia aérea participa no controlo de segurança de voos de outras companhias aéreas para Israel, como é o caso da linha entre Lisboa e Telavive da TAP. O espaço da porta de embarque em Lisboa é cercado por contraplacados e não se vê nada de fora para dentro. Para entrar é preciso passar pelas perguntas e pela revista realizada por seguranças de uma empresa portuguesa.
Foi o que aconteceu com Paula Castro, professora universitária, e a filha Beatriz Castro Ribeiro, investigadora, que viajaram em abril de 2019 num voo da TAP rumo a Israel. Foram questionadas sobre onde iam, o que iam fazer e com quem, e o segurança pediu ainda para ver as reservas de alojamento.
"Aquele é um espaço que se tornou território de Israel em Lisboa. Um enclave. Semelhante ao que acontece à chegada [em Tel Aviv], mas esse já esperávamos. Aqui, fiquei absolutamente chocada", conta Paula. Beatriz também não percebe o processo: "É um processo obscuro. Ninguém explicou por que é que estava a fazer aquelas perguntas, com que objetivo, para quem era aquela informação, ou quem eram aquelas pessoas. Não fomos avisadas de que aquilo ia acontecer, mas percebemos que, querendo embarcar, não tínhamos escolha."
A economista Eugénia Pires também foi surpreendida pelo mesmo processo, depois de ter evitado viajar pela El Al. "O segurança insistia, mas eu não lhe queria dar os nomes, nem as nacionalidades, nem qualquer informação sobre os investigadores com quem ia viajar para a Palestina. Senti um misto de choque, revolta, um certo receio e estava absolutamente intimidada", explica.
Também aqui existia o sistema de separação de passageiros por etiquetas. Os outros passageiros tinham etiquetas de cor diferente de Eugénia ou não tinham nada. A economista conta que arrancou a etiqueta à pressa e comeu-a. Antes de embarcar, viu as suas malas serem novamente revistadas, desta vez pela PSP, que fizeram a verificação à procura de vestígios de explosivos.
O Fumaça também tentou contactar a TAP sobre esta questão, mas não teve resposta.