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Desconheço se alguém, naquele partido, leu Alexandre O'Neill.
Lá dentro, a julgar pela postura e pelas narrativas exercitadas até à náusea, talvez achassem que o medo ia ter tudo. E nós, como no poema, a pensar no que o medo ia ter. E a ter medo, que é o que ele quer.
O medo, dizia-se, ia ter trinta câmaras, talvez sessenta.
O medo, dizia-se, ia ter autarcas mil, manta larga estendida no território, a visão superlativa do medo em modo municipal. E etc. e tal.
No Algarve começaria a reconquista, proclamou o chefe, o guia, o líder clonado para adoração e multiplicação dos fiéis. Mas a onda mal saiu de Albufeira, com vista para São Vicente, e não passou do Entroncamento. O fenómeno, afinal, era pífio, história mal contada. Ou requentada. E de fenómeno não tinha nada.
O medo, avisou o enviado de Deus - esse que substituiu Eusébio como soprador de ouvido - invadiria cidades, tomaria conta das casas e das almas.
Inundaria o território à boleia da desumanização do outro, do imigrante e do cigano, e do braço musculado da lei e da ordem. Tudo em nome de um País mitológico e de uma ética pronto-a-vestir para os outros, que a eles não serve, por não caber em malas nem nos vícios privados de homens másculos, patriotas de bem, como se sabe.
O medo ia ter presidentes a rodos, deputados a virar autarcas de estalo, cheios de estilo e de probidade blindada, reis do TikTok e influencers em modo tiki taka, como quem distribui jogo, mas viciado.
O medo, na sua ação desenfreada, dominadora e destruidora da sã convivência, levaria tudo à frente. Nada sobraria do sistema, da República, do ar e do vento que respiramos e não merecemos porque o partido assim o diz e Dom Ventura I o profetizou.
O medo, temia-se, ia ter tudo.
E, no entanto, nestas autárquicas provou-se que o medo em forma de partido é também o grito mudo do Portugal de sofá, esse que prefere que berrem por ele na rua e no Parlamento, mas não quer profetas a limpar-lhe o lixo, a arranjar jardins ou a estrada da terra.
Ainda assim, o medo, ufano, proclamou vitória. Uma e outra vez.
Mas mais de metade do milhão e meio de pessoas que, meses antes, votou pelo medo, virou, afinal, costas ao medo. Tal como a nêspera do velho Mário Henrique-Leiria, não ficaram, deitadas e caladas, à espera de ver o que acontece.
As eleições da reconquista deram lugar à desventura. Podia ter sido uma noite de tik tok. Mas mais pareceu o princípio do tic tac, tic tac, tic tac…Até ao apagão? Não, ainda não…chega.
O medo ainda vai ter propaganda, manipulações e muitas perceções, além de discursos à taberneiro e um líder limitado pela intuição, como dizia o outro.
Mas mais de 700 mil votos voaram numa noite de outono e nem a Rita Tik Tok tem agora uma história convincente - com asas - para contar às criancinhas sobre o impensável.
