A sala onde nos recebe não dá sinais disso, mas no sofá está sentado um dos militares mais condecorados do Exército português. Foi oficial dos Comandos, ferido em combate e fundador do Movimento dos Capitães. Hoje não sabe se ainda é militar. Ouça e leia aqui a Entrevista TSF com Carlos Matos Gomes
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Abandonou os Comandos em setembro do Verão Quente e quando o novembro chegou apanhou Carlos Matos Gomes fora do país. No regresso, viu o nome nas paredes e passou à clandestinidade. Entregou-se depois a Ramalho Eanes: “Tratamentos que nos dignificam a todos.” Já não usa o camuflado, mas o porte continua altivo.
Garante que nunca houve em Portugal a intenção de trocar a água-pé pela vodka e não acredita em justificações “para os pobres de espírito e crentes em toda a verdade”. Defende que o que o xadrez jogado em Portugal ultrapassou em muito a dimensão do país. “A Revolução portuguesa introduz como fator de perturbação o surgimento de um Movimento Popular num Estado da NATO.” E desafia os que querem festejar Novembro a indicar uma inovação na sociedade portuguesa “que não estivesse já garantida pelo 25 de Abril”. “Talvez do mercado, do lucro”, admite o coronel na reforma.
No 25 de Novembro, o Carlos Matos Gomes não está em Portugal....
Eu no dia 25 de Novembro de 1975 estava na Alemanha. Tinha sido convidado por uma instituição, que se chama Socialist Bureau, que é uma associação ligada ao Partido Social Democrata ao SPD alemão, que integrava vários núcleos de estudos sociais e políticos das grandes universidades, como a Universidade de Frankfurt, a Universidade de Estugarda, a Universidade Edilberg e depois a Universidade de Munique e eu fui convidado, juntamente, aliás, com um grande jornalista, o Adelino Gomes, para darmos uma visão do processo político português na Alemanha, que estava a ser muito condicionado com a narrativa, que vem a ser a narrativa do 25 de Novembro, que era a narrativa do Partido Socialista: de que Portugal corria o risco de cair numa ditadura comunista; de virem a ser impedidas as liberdades; de Portugal passar para outro bloco. E havia também caso República, que tinha sido muito empolado e muito manipulado pelo Partido Socialista.
Agora, eu conhecia e sabia da existência do 25 de Novembro desde agosto de 1975, quando eu era oficial nos comandos e quando o 25 de Novembro começa a ser preparado aqui, em Portugal. Em parte, através da Constituição ainda clandestina da associação de comandos, em parte também com as visitas que eram feitas ao Regimento pelo então coronel Soares Carneiro, que esteve também depois envolvido e da relação pessoal que eu tinha com o José Neves. Eu era o representante do Regimento de Comandos na Assembleia do MFA e era também o representante da Região Militar de Lisboa na Assembleia.
E, portanto, estava dentro deste processo e fui-me apercebendo das movimentações que iam ocorrendo à margem de todo esse processo e que vão culminar, em parte, na Assembleia de Tancos. Que é uma Assembleia onde estou presente, porque eu sou ainda, oficialmente, o delegado do Regimento de Comandos e também o delegado da região militar de Lisboa.
Nisto aparece o Jaime Neves, com um outro oficial dos Comandos, como representantes do Regimento. Não houve nenhum conflito entre nós porque não era o local para se haver conflito desse género. Mas levou quando nós regressámos à Amadora, aquilo que era comum fazemos, era debriefing das reuniões que normalmente era eu que fazia. Apresentava a situação aos meus camaradas, cada um deles pronunciava-se e discutíamos os assuntos democraticamente nas chamadas assembleias de unidade.
Nessa reunião, o Jaime Neves diz: 'Não, eu é que vou falar e depois fala aqui o Arnaldo Cruz.' Eu assisti, ele falou, disse o que tinha para dizer. Eu já não disse mais nada porque entendi que não devia dizer mais nada. Quando saímos da reunião, fui ao meu gabinete, depois fui ao gabinete do Jaime Neves e disse: 'Olha, fazes favor de me passar a guia de marcha para o Estado Maior do Exército, porque eu vou-me já embora. Já!'
E é assim que sai dos comandos?
Saí dos comandos. Arrumei os meus pertences, que também eram poucos, sempre poucos. Porque sabia que era este um golpe que estava a ser montado e sabia também de outras movimentações que estavam ligadas ao Grupo dos Nove.
Mas esta preparação militar não é feita em consonância com os Nove?
A preparação militar do golpe é feita, do meu ponto de vista, à margem dos Nove. E é feita sob o comando do Ramalho Eanes. Isto é, para entendermos o que é o 25 de Novembro, é um golpe conduzido do exterior, um golpe dos Estados Unidos e é um golpe dentro da sequência - da estratégia - que os Estados Unidos tinham.
Nos anos 70, debaixo da designação geral da détente, em que se procurou um equilíbrio e uma convivência entre os Estados Unidos e a NATO, por um lado, e por outro a União Soviética e o Pacto de Varsóvia. Isto culminou nos Acordos de Helsínquia de controlo de determinado tipo de armamento.
Aquilo que a revolução portuguesa introduz como fator de perturbação é o surgimento de um movimento popular, num Estado da NATO, e que punha em causa o equilíbrio de forças e fundamentalmente enfraquecia estrategicamente o flanco sul da NATO. Em [19]74, temos na Grécia uma agitação social já profunda de contestação à chamada ditadura dos coronéis. Além disso, havia uma tradição - que vem desde a Segunda Guerra Mundial - de um Partido Comunista grego forte e autónomo. Havia um movimento fortíssimo e considerado pelos Estados Unidos perigoso de compromisso histórico em Itália entre a Democracia Cristã de Aldo Moro e o Partido Comunista de Berlinger, que levou ao assassino do Aldo Moro. Havia uma agitação social grave e profunda em França, com a aproximação dos socialistas ao poder. Havia a ideia, que se veio a comprovar, do final da ditadura de Franco, que estava já prestes a morrer, vai morrer em novembro de 1975, no dia 22.
Portugal era uma pedra não controlável que poderia, por um lado, animar as contestações em toda esta margem norte do Mediterrâneo e fundamentalmente podia prejudicar a transição que se queria muito pacífica da Espanha para a democracia. E é isto que faz com que os Estados Unidos tenham de intervir. Os Estados Unidos, em termos estratégicos, eu era militar, era?! Não sei se ainda sou, mas enquanto militar tinha estudado estratégia e percebia isto.
Os Estados Unidos orientam toda a sua ação em termos internacionais até hoje por dois vetores: a teoria do alinhamento ou da lealdade. Isto é, em que medida é que cada um dos Estados é leal e está alinhado com a política dos Estados Unidos? Este é um ponto. O outro é o da contenção. Eu tenho de estar onde o inimigo quer estar e tenho de o impedir. É com estes dois vetores que os Estados Unidos interveem em Portugal. A primeira ação em que os Estados Unidos revelam as grandes preocupações têm com Portugal aconteceu em outubro de 1974. Quinze dias depois da demissão de Spínola. É uma reunião que é realizada em Washington, onde está o Henry Kissinger, de um lado, e do outro o Presidente Costa Gomes, acompanhado por Mário Soares enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros. É a célebre conversa em que o Kissinger diz a Mário Soares: 'O senhor vai ser o Kerensky português' e Mário Soares responde: 'Mas eu não quero ser o Kerensky.' E o Kissinger volta responder: 'Mas o Kerensky também não queria ser o Kerensky.'
E é a partir daí que as antenas dos Estados Unidos se viram aqui para Portugal, com as preocupações sempre a aumentar. O que faz com que, em janeiro, logo no início do ano, venha para Portugal um especialista em contra-golpes no terreno: Frank Carlucci. Ele tinha estado envolvido no golpe do Brasil.
Tinha estado também no Congo...
No Congo e, além disso, já era o patrão do golpe do Pinochet no Chile. É muito interessante nós repararmos que os padrinhos do 25 de Novembro, da defesa, da democracia e do anticomunismo são os chefes do golpe do Pinochet, que não tem nada que ver nem com a democracia, nem com os Direitos do Homem. E vemos um agente da CIA dublê em embaixador, que já tinha estado no golpe do Congo - a primeira grande intervenção dos Estados Unidos em África e que está no golpe dos generais do Brasil.
E esses é que vão ser então os patronos do golpe e aquilo que é muito conversado, que é a divergência entre Carlucci e o Kissinger. Tudo isto está publicado num livro muito interessante. “Os Americanos na Revolução Portuguesa” do Bernardo Gomes e do Tiago Moreira de Sá, onde isto está lá tudo explicado.
Kissinger é sempre adepto de um golpe de cortar. O Carlucci é adepto de fazer uma negociação. E essa negociação é feita entre os Estados Unidos e a Europa, através de um grupo da Internacional Socialista, que é constituído pelo Willy Brandt, pelo Bruno Kreisky, Giscard d'Estaing, que não era socialista mas também está, e pelo James Callaghan da Inglaterra.
E é através deste grupo que são transferidos milhões de dólares dos Estados Unidos para a Europa através da Internacional Socialista e que permitem investir fortemente nas eleições do 25 de Abril de 1975, que o Partido Socialista ganha. Eu sabia desta história e penso que esta ideia dos Estados Unidos intervirem aqui em Portugal é aquilo que é decisivo.
Faz pôr o golpe em marcha?
Sim e o homem que é a chave deste processo é o Melo Antunes. Isto é, o Melo Antunes é escolhido por Carlucci para ser o seu homem aqui em Portugal. E tem como primeiro objetivo o derrube do V Governo provisório. Vasco Gonçalves é que é o diabo deste processo e a questão é colocada em termos de chantagem: ou o Vasco Gonçalves sai do Governo ou não há aviões americanos para fazer a ponte aérea de Angola para Portugal. E Melo Antunes escolhe Ramalho Eanes para chefe do Grupo Militar. E é este grupo militar que vai ter depois como força de manobra principal o Regimento de comandos.
O golpe em si mesmo é um corte com um processo revolucionário que tinha ultrapassado os compromissos que haviam sido estabelecidos porque quer o Partido Socialista quer o Partido Comunista não controlavam as massas. Esta é uma das grandes questões que o próprio Partido Comunista tem: não ter o controle sobre os seus militantes e sobre os seus aderentes. Aquilo que é específico no processo político português e que causa o alarme é a força do movimento popular e é a sua inorganicidade. Ou seja, quem é que era responsável por isto? Podemos dizer, era o Otelo, mas o Otelo nunca se assumiu como um salvador da pátria, nem como um condottiero, nem como o profeta que vai à frente da multidão. Nunca assumiu isso e daí que fosse necessário fazer esse corte radical com a desordem.
Aquilo que se fala, aquilo que é apresentado como razão para o 25 de Novembro... Há uma que é a chamada justificação para os pobres de espírito e crentes em toda a verdade que é: havia o papão do Partido Comunista e, portanto, nós íamos trocar a águapé pela vodka e passávamos todos aqui a dançar a kalinka em vez do vira e há muita gente que acreditou nisso. A Igreja Católica assumiu esse tipo de discurso. A outra questão real, que está, aliás, muito expressa no documento dos Nove é que é necessário que o Estado seja forte. Que haja um Estado que imponha a ordem e um Estado que represente a sociedade portuguesa em termos internacionais. E isto era decisivo para os Estados Unidos, na medida em que se estava no limite da independência de Angola. E era necessário um Estado para assumir.
Mas, curiosamente, era necessário que esse Estado não fosse o Estado responsável pela descolonização, porque era previsível que a descolonização criasse, como criou em todas as descolonizações mundiais, movimentos de culpabilização de revanche. E o que vai acontecer? Curiosamente é que a independência de Angola se vai dar em 11 de novembro e o 25 de Novembro vai ocorrer 14 dias depois. O que quer dizer que o novo regime já não pode ser acusado das questões que vão ficar com a descolonização de Angola. Porque a descolonização e o poder em vão ser dirimidos entre os Estados Unidos e a União Soviética. E é isto que é o 25 de Novembro.
Tudo o resto depois é a implantação, aqui em Portugal, de um modelo uniformizado, padronizado de regime de representação parlamentar, que é idêntico ao de todos os outros países europeus que vêm desde a Segunda Guerra Mundial.
Voltemos a setembro e à Assembleia de Tancos. Depois dessa Assembleia e depois da esquerda militar perder poder ainda se justificava? Ainda era necessário o golpe?
O golpe era necessário porque é necessária uma representação do corte. E era necessário haver sangue. E é por isso que o Regimento de Comandos vai assaltar um quartel que está de prevenção. O que é normal estar fechado e arromba a porta com a chaimite do comandante. E há disparos porquê? Porque era fundamental haver sangue e estava previsto que, se não houvesse sangue ali, havia bombardeamentos aéreos feitos, por exemplo, sobre o Ralis. Essa situação depois também não se pôde concretizar.
Já lá estava o Salgueiro Maia.
Sim e por isso já se tornava muito mal visto em termos de opinião pública esse excesso. Agora o que não faz nenhum sentido é que o ataque das chamadas Forças Democráticas seja feita a um quartel que está a 200 metros da sede do poder, que é a Presidência da República e de onde ninguém tinha saído para atacar o Palácio de Belém, nem para alterar qualquer alguém.
Entendo ainda que este processo do 25 de Novembro, que é conduzido claramente o Melo Antunes, que, aliás, tem um discurso preparado que ele prefere logo no dia a seguir.
Na noite de 26..
Sim e para quem conheceu o Melo Antunes... a forma fluente como ele o faz sem uma hesitação, é sinal de que ele tinha aquele discurso completamente alinhado na sua cabeça. E, portanto, este é o processo. Por outro lado, há a sabedoria de duas entidades: o general Costa Gomes - que eu estou absolutamente convencido e, daquilo que sei, - estava muito limitado nas suas capacidades de comando. Isto para não dizer que estava sequestrado em Belém.
Sequestrado por quem?
Sequestrado pelo Gupo dos Nove e pelo Grupo militar. E é por isso que Vasco Lourenço está em Belém e pela genialidade do Otelo Saraiva de Carvalho, que sai da sede do seu comando do COPCON e se apresenta ao Presidente da República. O que quer dizer que, quando Otelo Saraiva de Carvalho se apresenta em Belém, o Presidente da República, enquanto comandante-chefe, passou a ter o comando do COPCON do seu lado. E isto altera muito a capacidade de retaliação ou de exploração do sucesso - em linguagem militar - do grupo militar.
E daí que Costa Gomes, com a sua pompa e circunstância, se desloque, enquanto comandante, a um comando subordinado na Amadora. E esta é a imagem que é passada: de um Presidente que comanda e que tem aquela gente subordinada, o que não lhes permite depois desenvolver o que se julga que seria o plano posterior, que estava preparado e que vai ter que ser feito mais tarde. A limpeza e o saneamento das Forças Armadas, da função pública e da comunicação social. Tudo isto vai ter de ser feito mais lenta e suavemente.
Era esse o resto do plano? Não, não há aí uma intervenção da extrema-direita? Não haveria a tentação também da extrema-direita de chegar ao poder?
O 25 de Novembro tem várias componentes. Tem esta componente mais institucional ligada ao Melo Antunes e ao Grupo dos Nove, tem uma outra componente ligada à Associação de Comandos e ao Regimento de Comandos, que funciona à parte, e tem uma outra componente clandestina que está ligado ao Alpoim Calvão, ao ELP e ao MDLP. Estes grupos vão depois de ter eles próprios que se harmonizar. Daí que, hoje, o grupo que está a promover celebração do 25 de Novembro, seja os herdeiros do ELP e da fação do Regimento.
Havia aquelas companhias que tinham ficado fora e depois voltaram, os convocados?
Essas unidades são criadas por contratados, portanto, são militares que estavam na disponibilidade. E é lhes oferecido um contrato para regressar às Forças Armadas e fazer aquele trabalho. O que é também estranhíssimo. Aliás, para quem quiser ler o preâmbulo do decreto-lei da convocatória, que é justificado pela necessidade de tropas experientes regressarem para manterem ordem no país. Ora, as tropas experientes eram tropas que estavam fora do serviço militar há seis/sete anos. Estavam gordos e destreinados. Quando? Quer o 25 de Abril, quer todo o processo político, quer as melhores tropas - eu estive nos comandos com tropas de linha e de conscrição -, quer os paraquedistas - que também eram de conscrição - eram as melhores tropas que existiam e cumpriam as nossas ordens. Cumpriam as missões com toda a eficácia e, portanto, não era necessário contratar ninguém que estava fora do serviço militar há cinco, seis ou sete anos, como era o caso.
Voltando ao discurso do Melo Antunes, é nessa noite que ele integra o PCP na vida democrática portuguesa. Isso é um acordo que já vem de trás? Havia negociações com o PCP?
Não vejo a relação do PCP neste processo com cumplicidades nem com traições. Vejo como uma atuação dentro de um pensamento estratégico muito elaborado e muito consistente. E era conveniente para todos. Isto é, o regime português tinha de ter o mesmo modelo dos outros regimes europeus. Havia partidos comunistas em França, na Itália, na Alemanha não existiam, que eram proibidos, e havia fundamentalmente a necessidade de integrar o Partido Comunista espanhol no futuro. E tudo isto faz sentido e todos os acordos do Melo Antunes, aliás, o figurino de regime que o Melo Antunes apresenta na noite a seguir, ao 25 de Novembro, inclui esta arquitetura. Está previsto e tinha sido todo ele negociado. O que é normal. Por cima desta casa em que estamos aqui mora a pessoa que foi negociar com Álvaro Cunhal e falar quer com o Otelo quer com o Melo Antunes: é o Doutor Silva Graça, que era um dos membros do Partido Comunista. Essas conversas existiam e era isto que se pretendia.
Mais: a grande questão do processo revolucionário português é o movimento popular, porque a questão da luta entre o Partido Socialista e o Partido Comunista é uma luta clássica de partidos pelo domínio do aparelho de Estado. E era só isto que eles pretendiam dominar mais ou menos. A partir do momento em que o regime está aberto e prevê que estes partidos existam e possam disputar o aparelho de Estado. Está tudo bem. O que está péssimo é o movimento popular das cooperativas, de associações,
E a narrativa oficial, aqui para os crentes, esquece muito isto: os três D’s da Revolução não têm nada de revolucionário. A democracia chega a Portugal com 30 anos de atraso, ou seja, a democracia representativa era aquela que tinha sido estabelecida na Europa a seguir à Segunda Guerra Mundial. Assim como o desenvolvimento. O desenvolvimento europeu faz-se a seguir à Segunda Guerra Mundial e a descolonização também. Portanto, os três D’s não têm nada de revolucionário. O que tem de revolucionário é quando o Otelo abre a revolução ao povo. É no momento em que ele diz ao Salgueiro Maia, que estava ali no Largo do Carro. E o maior. Enquanto militar e um profissional de elevadíssima craveira. 'Olha que eu tenho aqui a pior situação, que é ter soldados, tropa, armas tudo misturado com civis, pá, o que é que eu faço?' E o Otelo diz: 'É pá, a Revolução e para o povo' e, portanto, quando o povo entra na revolução, é que se altera tudo. Tudo isto passa a ser uma revolução.
É aí que o Golpe de Estado passa a ser uma Revolução. E porque no 25 de Novembro porque é que ele opta por recuar? No fundo, por ir para casa?
O Otelo, em primeiro lugar, era uma pessoa muito inteligente. E era, por outro lado, uma pessoa muito sensata e, por outro lado, ainda alguém que tinha, até pela sua experiência militar, a noção de que o pior que pode acontecer numa sociedade é uma guerra civil. E daí que quando ele percebe, e ele percebe porque os oficiais que estavam com ele, também perceberam... Nós tínhamos estas informações. O COPCON tinha informações.
Nós sabíamos o que é que os embaixadores pensavam, de uma forma geral, sabíamos o que é que os americanos andavam a fazer, sabíamos o que é que a NATO pensava do processo político. E nós sabíamos que do outro lado havia uma fação que não hesitaria em lançar o país numa guerra civil. E sabíamos que os Estados Unidos tinham colocado quantidades significativas de armamento à disposição desses grupos – curiosamente essas armas nunca apareceram -, mas o que nós sabíamos é que tinha havido transferências de dinheiro para pagar a mercenários, que tinha havido transferências e fornecimentos de armamento. Mais, ainda nós sabíamos que havia uma rede clandestina que vinha do tempo ainda do Estado Novo, a Aginter Press, e que estava associada à rede de gladio e que estavam dispostos a causar uma guerra civil, provocando pequenas explosões caóticas ao longo do país, o que, aliás, eles ensaiaram fazer com o ELP e o MDLP no Norte de Portugal.
Portanto, o Otelo sabe que, no 25 de Novembro, qualquer ação que ele tome iria provocar uma reação desproporcionada. É por isso que ele não autoriza e desmobiliza os fuzileiros e é por isso que ele não autoriza e é veemente na recusa da distribuição de armas aos civis pelo forte de Almada.
O Otelo recua, não sai.. Mas é outra saída que é apresentada como um dos argumentos para a manobra militar. A saída dos paraquedistas da base de Tancos. Isso foi uma desculpa? Foram foi uma provocação?
Isso é uma mistificação e é uma mistificação. Nós, como militares, conhecemos as técnicas de lançar uma falsa notícia para provocar uma reação. A grande questão que há com os paraquedistas é que o chefe de Estado-Maior da Força Aérea faz essa provocação em termos administrativos. À margem da lei e contra a lei, determina administrativamente que os sargentos paraquedistas, que são do Quadro Permanente da Força Aérea, sejam transferidos para o Exército, sem falar com o chefe de Estado do Exército. E mais ainda, qualquer transferência deste tipo tem de ser autorizada pelo Conselho de Chefes de Estado Maior e não foi. Portanto, a primeira irregularidade é a do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea. A passagem dos sarjantos paraquedistas para o Exército.
A segunda irregularidade é o chamado corte administrativo a todas as tropas. Isto é, o não pagamento da alimentação, não fornecimento da alimentação. Não proporciona as condições de um quartel seu. E isto é outra ilegalidade.
E, por fim, a ilegalidade mais grave, aquela que é criminosa e que deveria ter merecido a ida desse Chefe de Estado-Maior a tribunal militar: é que ele altera o dispositivo militar português sem autorização, nem do chefe de Estado-Maior General, que era o general Costa Gomes, nem do Conselho Superior de Defesa Nacional. Ele coloca todas as aeronaves, todos os meios militares aéreos numa base da NATO. Altera todo o dispositivo, esvazia todo o dispositivo militar, coloca em causa a segurança nacional. Tudo isto para fazer um golpe por conta própria.
Todo este rosário de irregularidades e crimes são cobertos com a pergunta: “mas, afinal, quem é que mandou os paraquedistas?” Não! Quem provocou os paraquedistas foi quem correu com eles das suas bases. Foi o chefe de Estado-Maior quando os transfere para o Exército. E o grave da questão é quando um chefe de Estado-Maior altera o dispositivo militar de uma nação. No momento em que ele esvazia a base, a grande base de defesa aérea portuguesa é a base de Montreal, quando ele retira todas as aeronaves de Montreal, ele desarma o Estado português. E isto é criminoso.
Mas isso também tornou a ocupação das bases inútil...
Completamente, mas o que é que o chefe de Estado-Maior pretende. Ele pretende concentrar os meios para os ter à disposição para fazer um golpe onde ele quiser. E é por isso que todo o comando da Força Aérea, o Comando Operacional da Força Aérea, está na Cortegaça. Onde está porventura aquele que é o general mais qualificado em termos operacionais, o Lemos Ferreira, que depois mais tarde será chefe de Estado-Maior da Força Aérea e chefe de Estado-Maior General.
Portanto, quando os sargentos paraquedistas vêm aqui a Monsanto, o que é que encontram? Um general e um telefone. E é contra essa grande base que os comandos enviam uma companhia com chaimites e quando lá chegam contam dois ou três polícias militares.
Depois, quando regressa a Portugal que país é que encontra? Encontrou muitas diferenças?
Encontrei algumas diferenças. Uma delas foi encontrar o meu nome em várias paredes. “Prende, mata, faz e acontece, faz isto e aquilo e aqueloutro.” E, portanto, é esse o país que eu encontro.
É também um país que eu percebo que necessita de apresentar troféus e eu tive sempre pouco jeito para troféu e nessa medida entrei na clandestinidade durante algum tempo. Depois, mais tarde, entrei em contacto com as novas autoridades explicando o que se passava. Nesse aspeto tive uma relação muito boa em termos de grande lealdade com o general Ramalho Eanes, que eu conhecia há muitos anos e com quem tinha uma relação pessoal que mantenho até hoje. E que me disse: 'É melhor tu vires aqui apresentar-te ao Estado Maior, porque senão tenho de te mandar prender.” Eu já vivia nesta casa e a minha mulher ia sair junto àquela porta e eu disse-lhe: 'Então mande depressa porque eu vou sair para beber café.' Mas ficámos assim e depois o general Eanes recebeu-me com toda a dignidade. Eu apresentei-me à paisana e ele teve a categoria também de, sendo chefe de Estado-Maior, e apesar de me receber no Estado Maior do Exército, de estar, ele também, à paisana. O que quer dizer que estávamos em igualdade de circunstância e isso são também tratamentos que nos dignificam a todos.
Por tudo isto que falámos até agora, vê motivos para comemorar o 25 de Novembro? Entende que o país tenha motivos para assinalar o dia desta forma?
Aquilo que haveria para celebrar e aquilo que eu entendo que se deve celebrar são os grandes valores da humanidade. Qual é o primeiro grande valor? Do meu ponto de vista, a Justiça. Porque não há liberdade sem Justiça. O 25 de Abril introduziu um regime de Justiça. De justiça social e de justiça de direitos individuais, um dos quais é o da liberdade. Outro dos grandes valores é o direito à palavra, à expressão, que é também do 25 de Abril. De maneira que todos os grandes direitos, aquilo que nós podemos considerar que são os direitos naturais, foram assumidos no 25 de Abril de 1974. Que direitos naturais a mais foram adquiridos no 25 de Novembro? Nenhum. A não ser o direito do mercado do lucro, da privatização da banca, ao fim e ao cabo o saque de fundos europeus. Mas isso não são direitos fundamentais. Agora os direitos fundamentais adquiridos e ganhos no 25 de Abril... não vejo que haja qualquer um outro que tenha sido uma inovação do 25 de Novembro. E desafio qualquer um dos promotores destas celebrações a indicar o que é que de novo ou o que é que de verdadeiramente excecional os portugueses tiveram direito no 25 de Novembro de 1975?