"Quem pode empurrar o Governo em ano de eleições é o povo, não é o Presidente"
O primeiro ponto da visita de Marcelo à China foi, no mínimo, muito animado. Enquanto subiam a Grande Muralha da China, Augusto Santos Silva decidiu meter-se com o Presidente e pedir-lhe que não empurre o Governo. Marcelo respondeu-lhe à altura.
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A julgar pelas sondagens mais recentes, se há adágio popular que o Governo sabe que se pode aplicar ao momento político atual é o das altas subidas, que podem resultar em descidas vertiginosas. A pensar nisso, ou talvez não, Augusto Santos Silva decidiu "picar" o Presidente da República, logo no primeiro dia de viagem à China.
Ainda a comitiva tentava recuperar o fôlego da íngreme e difícil subida à Grande Muralha da China e já Marcelo pensava na dificuldade que seria voltar para baixo: "A descida vai ser..." Augusto Santos Silva nem o deixou acabar a frase: "Sobretudo, é importante o Governo não cair, que isto da queda do Governo dá sempre azo a interpretações." A gargalhada geral foi acompanhada, pela parte do Presidente da República, com um "sim, sim, sim".
Mas Santos Silva, que estava claramente inspirado, insistiu na metáfora: "Espero que o senhor Presidente não empurre", atira o ministro a rir, enquanto Marcelo transparecia um misto de incredulidade e de jet-lag, próprio de quem acabou de aterrar vindo de outro continente. "O senhor Presidente vai à frente a proteger", insiste Santos Silva de sorriso rasgado. Marcelo ainda tenta "matar" o assunto dizendo que "o Presidente na China só pensa na China", deixa que Santos Silva aproveitou de imediato para ironizar: "Um verdadeiro ministro dos Negócios Estrangeiros, senhor Presidente". Não havia nada a fazer, Augusto Santos Silva "queria conversa" e Marcelo decidiu que não o ia deixar sem resposta.
"Quem pode empurrar o Governo é o povo, em ano de eleições, não é o Presidente", atirou Marcelo, enquanto voltava a subir a muralha e arrumava a conversa com um "estamos quase a atingir o topo".
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Um MNE "inteligente e com agudeza de espírito"
A troca de mimos políticos tinha começado lá atrás. Marcelo comentava com a comitiva que "nunca tinha sonhado tão alto na vida", o que levou Augusto Santos Silva a acrescentar, de imediato, que, ainda por cima, estava "em boa companhia. Refiro-me aos jornalistas, senhor Presidente", esclareceu logo, num tom claramente bem-disposto.
Marcelo percebeu onde o ministro queria chegar e, habituado que está a lidar com momentos como este - ou não tivesse ele a mesma apetência para tiradas do género - deixou que fossem os jornalistas a fazer a pergunta sacramental: "Acha que o Governo está a aproveitar para fazer campanha?" Era a deixa perfeita para a resposta ao ministro: "Inteligência, agudeza de espírito e sentido de oportunidade para falar do Governo português, mesmo na muralha da China", responde Marcelo, acrescentando que o Executivo "não descansa. Sempre pensei que o ministro dos Negócios Estrangeiros estava mais distante dessa realidade, mas não, até aqui o ministro não esquece a campanha eleitoral em curso".
A subida, de poucos menos de meio quilómetro à grande muralha da China - que tem mais de 21 mil em toda a sua extensão -, continuou em tom bem-disposto, apesar do cansaço evidente na cara do Presidente da República. E já que o dia era de metáforas, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou para fazer mais uma: "Nós tivemos uma característica no relacionamento com a China: é que nunca atacámos a China e a China nunca nos atacou. Ou seja, ironicamente, o nosso relacionamento com a China foi o oposto da Muralha da China."
E esse é, precisamente, um dos principais objetivos desta viagem do Presidente: derrubar as muralhas que ainda possam existir, sobretudo do ponto de vista económico, entre os dois países. Marcelo quer atrair para Portugal mais investimento chinês, que crie postos de trabalho e que seja reprodutivo, e não apenas que as empresas chinesas continuem a comprar empresas portuguesas, como tem acontecido.
Pouco preocupado com os preconceitos que ainda possam existir relativamente ao investimento chinês, Marcelo lembra que "em Portugal, como noutros países, há preconceitos em relação ao que é estranho. As pessoas têm medo do que vem de fora e não percebem que a realidade é o que é, e não volta para trás".
Para baixo, todos os Santos Silva ajudam
Se a subida à Grande Muralha da China foi repleta de metáforas, piadas e recados mais ou menos velados entre o ministro dos Negócios Estrangeiros e o Presidente da República, a descida não foi muito diferente. Marcelo, que gosta pouco de "ficar por baixo" numa troca de argumentos, decidiu, desta vez, tomar a iniciativa e meter-se com Santos Silva: "Oh senhor ministro, agora é que se pode dizer que para baixo todos os santos ajudam."
A resposta foi imediata: "Não posso dizer isso, o Estado é laico. Se não, o professor Vital Moreira faz já um post", diz o ministro, já entredentes. "Sim, mas Santos... pode ser a família Santos. Olhe, Santos Silva", continua Marcelo, que desta vez conta com a anuência do ministro: "Sim, sim, no meu caso pode dizer que está a ser ajudado pelos santos." Visivelmente satisfeito com a piada que fez, Marcelo Rebelo de Sousa acaba com a conversa e com a visita, constatando que conseguiu dar a volta ao governante,"para não haver qualquer preocupação constitucional".