Seniores de Vila Nova de Cerveira fizeram dez mil cravos para dar eco a mensagem para os jovens
Entre as memórias partilhadas com a TSF, Luís, de 80 anos, recorda que “levou uma sova do pai, porque andou cá fora na rua [no 25 de Abril] e ele não deixava”.
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Carlos, de 90 anos, ergue um dos dez mil cravos de feltro feitos pela população sénior de Vila Nova de Cerveira, até à frente do rosto. O sol vai alto e bate-lhe nos olhos. A flor de Abril, com mais do dobro do tamanho dos naturais, faz-lhe sombra. O nonagenário brinca com o esquema que arranjou para se proteger. Ao seu lado outros seniores que ajudaram a fazer os milhares de cravos para assinalar os 50 anos da Revolução, também exibem as mesmas flores. Conversam, trauteiam partes que ainda se lembram das canções que marcaram o 25 de Abril e contam histórias.
Emília cujos 78 anos de idade já não lhe permitem recordar a “Grândola, Vila Morena” com clareza, ainda tem bem viva a memória do dia da Revolução.
“Lembro-me bem, de dizerem que em Lisboa andavam para lá a prender e a fugir. Não vi, mas ouvi. Trabalhava lá num restaurante e ouvia o altifalante. Não deixavam as pessoas andar fora”, descreveu Emília, com um cravo preso entre as mãos. A seu lado, sentadas num banco público, a admirar os milhares de cravos que saíram das mãos dos mais velhos nos últimos tempos e que foram colocados nas varandas e janelas frontais da câmara de Vila Nova de Cerveira, também estão Arminda, de 84 anos, Isabel, de 89, e Maria Suzete, de 86. Todas contentes com a obra feita. Usam chapéus para proteger do sol a cabeça e os olhos. E apertam cravos entres as mãos envelhecidas.
No banco de Carlos [do cravo a fazer sombra para os olhos], está Luís, de 80 anos, que recorda que “levou uma sova do pai, porque andou cá fora na rua [no 25 de Abril] e ele não deixava”.
Ana Ilda com 95 anos, mais uma artesã das flores que simbolizam Abril, conta que fez o seu trabalho a fazer cravo de feltro “em silêncio, caladinha, porque tinha de se estar com atenção ao que se estava a fazer”. “Foi muito trabalhoso. Foi um sacrifício grande que fizemos, mas foi com muito gosto”, disse, recordando onde andava há 50 anos.
“Estava em Espanha. Tinha ido fazer as compras. Tinha tirado passaporte, ainda quando era proibido para Espanha e França, e ia sempre lá às compras. E por acaso a mercearia onde estava, tinha o rádio ligado e surge aquela notícia que a gente ficou assim, sei lá [ri-se]”, contou Ana, lembrando que não viu ninguém no caminho de regresso a Portugal. “Cheguei à porta da alfândega e não estava ninguém. Os PIDE estavam um em cada esquina, muchinhos (cabisbaixos). Implicavam com coisas que não tinham importância nenhuma. Eram mal educados, não tinham maneiras com a gente. Eram da PIDE. Tinha muita queixa deles e quando os vi assim, não tive pena nenhuma”, recorda, referindo que esses foram tempos de “alegria” com o que passava em Lisboa.
“A gente também se sentia feliz. Estávamos cá na aldeia e pouco sabia, mas a gente via aquelas pessoas tão felizes e ouvia o que eles diziam, e ia ficando feliz também”, descreve, considerando, contudo, que passado meio século daquela época, “o povo não soube gozar a liberdade”. “Tomou-se liberdade a mais. Foi a mais. Foi um bocadinho além. O mundo hoje está estragado”, afirma.
A iniciativa desenvolvida em Cerveira celebra o 50.º aniversário do 25 de Abril e além dos 10 mil cravos em feltro ostentados nas varandas dos Paços do Concelho, soma ainda mais 50 cravos espalhados pelas ruas do centro histórico. O município deu-lhe o nome de “Eco de Cravos”.
“Eles [os seniores que fizeram os cravos] querem que isto se propague no tempo e que seja partilhado com os mais jovens. É a forma deles ecoarem uma mensagem para os mais jovens”, disse a vice-presidente da Câmara de Vila Nova de Cerveira, Carla Segadães, revelando que a ideia foi inspirada “nas varandas famosas de Barcelona”. “Desafiámos todas as IPSS e a Universidade Sénior, que de imediato acolheram a ideia. Foi fantástico ver a receção que tiveram e começámos a trabalhar. Dez mil cravos foi a média que considerámos ser a necessidade e eles trabalharam imenso”, conta, referindo que o projeto foi “concluído num curto espaço de tempo”. “Os nossos seniores fizeram isto com um gosto, uma alegria e sobretudo com um sentimento de cumprir um dever para com o 25 de Abril e os seus 50 anos”, destacou ainda.
