“Temos sempre duas vidas: uma na função partidária e outra quando representamos o Estado português"
A partir para o Brasil, acabado de chegar de São Tomé, com os olhos postos nas guerras da Rússia na Ucrânia e de Israel em Gaza. E, claro, um olhar sobre as eleições americanas e as da Venezuela, no próximo domingo. Entrevista à TSF e ao DN.
Corpo do artigo
Neste momento, preocupa-o mais que o Orçamento do Estado seja chumbado ou a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos?
Sinceramente, devo dizer que nós, na vida, podemos ter várias preocupações ao mesmo tempo. Nunca temos só uma. Claro que umas, às vezes, nos preocupam mais que outras. Temos uma hierarquia, mas algumas são de natureza tão diferente que nem as comparamos. O que eu queria dizer é o seguinte: no que diz respeito à política interna de qualquer Estado e em particular de um Estado amigo, como são os Estados Unidos (EUA), o governo português não tem posição e, portanto, sinceramente será sempre uma relação Estado a Estado, qualquer que seja a administração americana. Esta relação é de tal maneira fundamental e está tão bem alicerçada e tão solidificada, tem corrido tão bem que, qualquer que seja o resultado das eleições americanas, não antecipo problemas de maior na relação bilateral entre Portugal e os Estados Unidos, pelo contrário. Teremos sempre boas relações.
Aliás, durante do mandato de 2017 / 2020 de Donald Trump não houve propriamente grandes alterações na relação bilateral com Portugal. Mas qual seria o impacto de um regresso de Donald Trump à Casa Branca nas relações transatlânticas?
Mesmo aí, se olharmos bem para os dois fios condutores da política norte americana, que tem impacto sobre nós - a Europa, o Ocidente em geral - desde o início do século XXI, desde a administração George Bush filho, Obama, Trump, Biden, o que vemos são dois pontos fundamentais: um é uma insistência enorme numa repartição equitativa da despesa militar, com a ideia de que os aliados dos EUA têm de tomar em mãos aquilo que é a proteção da sua segurança e da sua defesa, e têm de o fazer contribuindo financeiramente e aliviando o esforço dos EUA. E isto não mudou com nenhum destes presidentes. Pode mudar o estilo, pode mudar a linguagem, mas de facto, nestes 24 anos que leva o século XXI, a política norte-americana teve esta constante, aliás, a acentuar se sempre de presidente para presidente a ideia de que os Estados europeus deviam ter outro tipo de contribuição no quadro da NATO e no quadro das despesas de segurança e defesa. É uma evidência e é uma constante.
Quando diz acentuou, quer dizer que a pressão vai aumentando?
Não, estou a dizer que Biden não foi menos exigente. Tanto não foi que tem 23 Estados já acima de 2%. Alguns nos quatro por cento do PIB.
Portugal é que ainda não cumpre…
Portugal ainda não cumpre. Antecipou agora para 2029 a data que o Governo anterior tinha assumido para 2030 e adiantou um plano credível na última cimeira da NATO, em Washington. Obviamente foi conversado e negociado antes, conduzido pelo Ministério da Defesa, também aqui com o ministério dos Negócios Estrangeiros, e sempre em estreita conexão com o primeiro-ministro e o ministro das Finanças.
Mas queria dizer que há uma segunda constante, que é a viragem (dos EUA) para o indo-pacífico, isto é, a ideia de que há hoje uma polaridade nova no indo-pacífico e isto, em parte, explica porque é que os EUA, lideram a NATO e o Bloco ocidental, também têm estas exigências em termos de partilha dos custos de segurança e defesa; exactamente porque existe aqui uma nova polaridade, estão mais orientados para a relação no indo-pacífico. E isto é uma constante com todos os presidentes. Não há nenhum, sinceramente, que não tivesse dado mais atenção a esse vetor...
No mínimo, desde Barack Obama…
Penso que vem de George Bush. Mas, ao contrário do que às vezes se diz, Barack Obama foi o grande teorizador, o que não é estranho, porque ele vinha do Hawai e olhava para os EUA a partir do Pacífico. Estas coisas têm a sua influência na forma como se olha. Penso que ele compreendeu a importância da relação transatlântica um pouco mais tarde, se posso fazer aqui alguma análise do passado, quando quis fazer o acordo da Parceria para o Investimento e Comércio Transatlântico (TTIP). Biden, nesse aspeto, relativamente a todos os outros, teve realmente uma vantagem. É que era um presidente da Guerra Fria e como era um presidente que foi político ativo durante a Guerra Fria, quando se deu a invasão da Ucrânia, compreendeu muito bem que estava perante um repto, que era um repto diferente desse repto da unipolaridade ou da futura polaridade única no mundo pacífico. O que eu queria dizer com isto é que vale a pena olhar para aquilo que é realmente institucional, estrutural e para aquilo que é constante na política norte americana, e não para aquilo que são os ciclos políticos e os programas políticos. Nós temos uma relação excelente a todos os níveis, agora até a níveis insuspeitos, como os económicos. As empresas portuguesas estão presentes nos EUA como nunca estiveram. A questão do turismo, que é verdadeiramente surpreendente como de repente termos 2 milhões de americanos a visitar em Portugal.
Até a querem viver em Portugal…
E a quererem viver em Portugal. De repente há aqui, de facto, qualquer coisa que até é nova. A verdade é que as duas constantes estão lá, e portanto por isso é que digo que encaro com naturalidade e sempre respeitando, como é evidente, a decisão do eleitorado norte-americano, sobre aquela que venha a ser a nova administração. Com a desistência do presidente Biden da sua candidatura, haverá seguramente um novo presidente. Portanto, qualquer que ele seja, Portugal terá um relacionamento absolutamente institucional e que eu creio que correrá bem. Sinceramente, é a minha convicção profunda. A análise que faço destes 24 anos do século XXI, em que estas constantes que às vezes nos são agitadas como problemáticas, já estão em desenvolvimento e estão a ser, aliás, claramente assumidas pelos norte-americanos há muito tempo.
Em relação à Rússia, antevê que possa haver algum tipo de alteração na política externa dos EUA e com impacto, obviamente, também para tudo o que tem sido a política da União Europeia (UE)?
Não creio que que vá haver alterações de monta, sinceramente, não creio.
As boas relações de Donald Trump com Putin não pode ajudar a resolver a guerra na Ucrânia?
Não queria estar agora aqui a entrar em cenários que possam ter a ver com a política interna norte-americana. Mas é evidente que, tendo a Rússia violado a Carta das Nações Unidas em relação à integridade territorial da Ucrânia, isto vai estruturalmente contra os eixos fundamentais da política norte-americana. Há uma coisa que os EUA sempre respeitaram e que faz parte da sua idiossincrasia em termos de atuação internacional, que é a ideia de que não pode haver uma violação da integridade territorial, com base na simples lei da força. O grande problema, que nem sempre é entendido fora do perímetro europeu e americano, é que aceitar o precedente de que um Estado, neste caso a Federação Russa de Putin - não são os russos nem é a Rússia enquanto tal - pode mudar as fronteiras internacionais com base na lei do mais forte ou numa guerra de agressão, como está a ocorrer, levaria ao caos noutras partes do mundo. Não quero pensar o que seria se nós aceitarmos esse precedente em África, por exemplo. Uma das coisas que Portugal tem é este soft power, uma relação muito fácil, leal e de igual para igual, não apenas com os seus parceiros que falam português, mas com outros parceiros internacionais do que se chama agora o Sul Global, embora isso seja um conceito que contém realidades geopolíticas completamente diferentes umas das outras, mas se nós, por acaso, formos complacentes, contemporizadores, cedermos à ideia de que pela força se podem mudar fronteiras, isto em alguns continentes, a começar pelo africano, terá um efeito extremamente negativo.
Aliás, onde a Rússia já está com uma influência crescente...
Onde a Rússia já está muito activa, nomeadamente no Sahel, mas não só. Onde, para além disso, há conflitos. O caso do Sudão do Sul, o caso da República Democrática do Congo, por exemplo. No caso do Sudão do Sul, com consequências humanitárias catastróficas que, evidentemente nos põem em alerta. Portanto, eu chamo a atenção para que é fundamental respeitar este princípio e, era o ponto inicial, esse princípio os EUA vão sempre respeitar. E, portanto, a relação que os EUA tenham com a Federação Russa será sempre uma relação que nunca, julgo eu, vai passar esta linha vermelha que é a do respeito pela integridade territorial da Ucrânia. Portanto, não tenho uma visão apocalíptica ou catastrofista do pós-eleições americanas, qualquer que seja o seu resultado. Pelo contrário, tenho uma visão de naturalidade e normalidade institucional e é isso que o estado português defenderá sempre.
Por falar em influência russa em África, São Tomé e Príncipe assinou recentemente um acordo técnico-militar com a Rússia. O senhor ministro esteve lá na semana passada e suponho que foi tentar perceber que “vazio” é que tinha sido deixado por Portugal e perceber o que é que ainda podia ser feito...
Não, eu queria dizer o seguinte: logo quando surgiu esta questão, basta ver as minhas declarações na totalidade e não apenas aquilo que depois, com toda a legitimidade editorial, circula nos órgãos de comunicação social e nas redes. E mesmo pelas declarações do primeiro-ministro Patrice Trovoada, verá que as coisas foram postas em contexto. Do ponto de vista da nossa cooperação na área da Segurança e Defesa, nós somos os maiores cooperantes de São Tomé. Aliás, somos os maiores cooperantes em tudo, mas em particular na Segurança e Defesa. Portanto, não existe nenhum problema entre os dois Estados sobre isso. Mas é importante dizer que há, realmente, uma necessidade de nós, neste caso Portugal, mas não só, também a UE, darmos atenção a estes Estados, que são Estados que têm necessidades muito grandes, não apenas na área da Segurança e Defesa, mas em muitas outras áreas e onde às vezes um esforço e uma atenção maior da comunidade internacional pode suprir algumas vulnerabilidades.
Mas percebeu porque São Tomé sentiu esta necessidade de fazer o acordo com a Federação Russa?
Repare, todos estes países - e no caso de São Tomé isso é evidente - têm imenso material de fabrico ainda soviético, muito dele obsoleto, outro que ainda está, apesar de tudo, utilizável. Isso explica porque é que por vezes se vai ao encontro do apoio da Federação Russa, onde ainda há o material para permitir a operacionalidade do que está disponível ou, para algumas atualizações que permitem reutilizar equipamentos.
E, obviamente que a Federação Russa se mostra disponível para isso…
Também há aqui uma tentativa de marcar o terreno por parte da Federação Russa no plano internacional.
É um país estratégico, situado numa zona muito importante...
Tem um valor geopolítico enorme. E se é esse o pressuposto na pergunta que fez, eu verdadeiramente o subscrevo e subscrevo enfaticamente. Portugal, a UE e os EUA têm de fazer mais na sua cooperação. O facto de alguns Estados, quaisquer que sejam, estarem a cooperar com a Federação Russa ou com a China ou com outras potências, não deve fazer com que nós desistamos. É uma pedagogia que eu tenho feito muito, especialmente na UE, que às vezes põe algumas condicionalidades para os apoios à cooperação. Se têm outros parceiros, não é por isso que nós não devemos estar a cooperar. Pelo contrário, devemos reforçar a nossa cooperação e, portanto, isso é um ponto que, na minha óptica, é fundamental. Com São Tomé as relações são as melhores possíveis. Há uma coisa muito importante que valia a pena ter presente. São Tomé esteve na Conferência de Paz de Zurique, votou ao lado de Portugal na condenação da agressão russa da Ucrânia. Ainda recentemente, delegou em Portugal um voto importante sobre esta matéria na Assembleia Geral das Nações Unidas. Foi Portugal que votou em nome de São Tomé. Portanto, sobre esse ponto de vista, há um alinhamento que eu acho que não causa nenhum incómodo. Agora, nós temos é que aumentar a nossa cooperação. E isto não vale apenas para Portugal, vale também para a UE. Podemos ser mediadores importantes, fazer ver aos nossos parceiros da UE que, às vezes, um investimento que para a UE significa pouco, tem um efeito reprodutor e multiplicador em Estados mais pequenos, como é o caso de São Tomé, estados mais vulneráveis e com orçamentos limitados, com muitas dificuldades económicas e financeiras e onde a nossa cooperação pode ter efeitos, de facto, muito benéficos. Uma coisa que é extraordinária, deixe me dizer aqui porque não consigo deixar de dizer depois de ter estado estes dias na CPLP, é a nossa cooperação na área da Saúde. Vale a pena ver como os índices de saúde pública têm mudado graças à cooperação que temos e grande parte dela já é feita com meios tecnológicos de telemedicina, que eu vi a funcionar na prática. É realmente impressionante como se pode, de facto, fazer a diferença. Também a Escola portuguesa em São Tomé é exemplar a vários títulos. De facto, sinceramente, é um país amigo, um país irmão e que teve aqui um desafio muito grande, que foi a presidência da CPLP, que cumpriu com uma eficiência e uma capacidade de resposta que pede meças a muitos Estados com meios mais sofisticados.
Está previsto algum reforço do orçamento para a cooperação com estes países?
Sim, como se verá em breve. Sobre isso não posso adiantar muito. O nosso apoio orçamental a São Tomé será efetivo, tem sido sempre. Há ali algumas lacunas estruturais. Há um exemplo muito bom da cooperação portuguesa que já está a ser efetivado com Cabo Verde e está acordado com São Tomé, que é a transformação da dívida em investimento verde.
É um perdão da dívida?
É um perdão da dívida que depois é investido em combate às alterações climáticas. Este programa, que é inovador, foi desenvolvido por Portugal com Cabo Verde e depois logo replicado para São Tomé. Tem sido considerado exemplar em todo o lado, a começar pelas Nações Unidas. Um modo exemplar de cooperação com os Estados em desenvolvimento e que, no caso de São Tomé, queria chamar a atenção, tem de estar ligado muito às energias renováveis. Porque o problema principal de São Tomé, até do ponto de vista financeiro, segundo nos dizem as autoridades, e que depois é constatado quando estamos no terreno, é o problema de um deficit energético crónico, mas com a capacidade de produção de energias renováveis que ali existe, é possível mudar estruturalmente este défice. Não é não num ano, não em dois, não em três, mas no médio prazo. E isso mudará claramente as condições de vida em São Tomé. Portanto, apostar nesta ideia da conversão da dívida em investimentos que de uma forma ambientalmente sã deem fontes energéticas própria e autonomia energética a São Tomé, é um programa de cooperação exemplar, como está a funcionar com Cabo Verde. Esta solução, que é uma solução portuguesa, neste momento está a ser estudada e replicada por muitos outros Estados como algo exemplar.
A América Latina, além do Brasil, é uma prioridade para este governo?
Claramente. A América Latina teve sempre uma prioridade para Portugal. Tive já encontro com vários ministros da América Latina. Curiosamente, aqui em Lisboa, vários vieram visitar-me para reunir em reuniões bilaterais. Temos hoje com os vários países relações muito fortes. Chamaria a atenção para uma potência relevante para além do Brasil, que é o México, com o qual as relações são as melhores possíveis. Estamos, por exemplo, a desenvolver um programa interessante na Costa Rica. A Argentina já mostrou grande interesse em que aproximássemos os nossos laços económicos. Sabemos também que tem problemas de crises financeiras e económicas várias, mas já deu esse sinal. Com toda a América Latina temos trabalhado, estamos a trabalhar também ativamente no quadro da nossa organização ibero-americana. Talvez venhamos a ter novidades nesse plano.
O que espera das eleições na Venezuela este domingo? A UE e o senhor que tanto trabalho fez como eurodeputado pela mudança política na Venezuela, parece-me que já deixaram cair completamente Juan Guaidó…
Nós temos sempre duas vidas, não é? Os gatos têm sete e os políticos têm duas. Uma é quando estão na sua função partidária e outra quando estão numa função de representação do Estado português. Evidentemente que nessa função, aquilo que me compete dizer é desejar que o processo eleitoral decorra com toda a transparência e com toda a correção do ponto de vista das regras eleitorais de justiça e equidade. Os padrões internacionais estão mais do que definidos e depois trabalhamos com aquele que seja o governo legítimo da Venezuela.
Acredita que as eleições possam ser livres, transparentes e justas?
Não vou comentar assuntos internos, até porque, como sabe, no caso português, nós temos uma comunidade portuguesa muito relevante na Venezuela e portanto temos obviamente que manter as relações Estado a Estado. Tal como eu já referi a outros propósitos, neste caso se aplica ainda mais do que em qualquer outro. Mas o que nós vemos é uma campanha muito dinâmica e muito viva, não é? A campanha tem decorrido com diversidade e pluralidade e, sob esse ponto de vista, é um sinal animador. Lá estaremos para ver. Portugal continuará naturalmente, com as suas relações Estado a Estado, tendo como principal preocupação nas relações com a Venezuela, em primeiro lugar, a comunidade portuguesa e a comunidade lusodescendente.
