"Ter uma posição de semi neutralidade perante a guerra e a paz não faz justiça à tradição histórica de Portugal"
“Regresso à Europa: a posição internacional da democracia portuguesa” é o novo livro do investigador Carlos Gaspar. A descolonização e os movimentos africanos durante a Guerra Fria, a integração europeia após a Revolução, as divisões no país e os apoios internacionais. Entrevista na TSF
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Carlos Gaspar é assessor do Instituto de Defesa Nacional (IDN). Aliás, é no IDN que o livro é apresentado esta quinta-feira, às 18h00. É também investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), da Universidade Nova de Lisboa, é professor catedrático convidado da Universidade Autónoma, assessor do Conselho de Administração da Fundação Oriente, membro do European Council on Foreign Relations e membro da Associação Portuguesa de Ciência Política.
Carlos Gaspar, porque é que diz que o momento revolucionário português de 74-75 é uma crise típica da primeira fase da Guerra Fria, mas ao mesmo tempo uma crise da nova fase da détente (apaziguamento) dessa mesma Guerra Fria?
Muito obrigado pela oportunidade para falar deste livro. A crise de transição em Portugal, a crise revolucionária, é uma crise típica da Guerra Fria pela divisão clara que existe entre um partido ocidentalista e um partido orientalista, um partido pró-soviético e um partido pró-atlantista na disputa interna, na clivagem interna, que vai decidir o resultado final da revolução. Essa ausência de fronteiras entre a competição bipolar entre os Estados Unidos e a União Soviética, entre o campo democrático e o campo soviético e, em Portugal, entre o Partido Socialista e os seus aliados e o Partido Comunista e os seus aliados, é uma crise típica do princípio da Guerra Fria. Podíamos estar em 1945 e 1946 e 1947 em França, em Itália, na Grécia houve mesmo uma guerra civil e nesse sentido é uma crise típica da Guerra Fria pela divisão em dois campos. Mas ao mesmo tempo, é uma das primeiras crises da détente bipolar, de uma fase em que as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética são marcadas por uma alternância entre conflito e cooperação, uma vontade de concertação ao lado de uma competição na luta pelo poder num quadro mais complexo do que nos primeiros anos da Guerra Fria a seguir à Segunda Guerra Mundial. É uma crise desse período e que tem um impacto sobre as relações não apenas entre os Estados Unidos e a União Soviética, mas também entre as duas metades da Europa e as duas Alemanhas, que são todos agentes diretos na competição portuguesa para se saber se é possível construir, como no quadro da ata final de Helsínquia, uma Europa assente numa segurança indivisível entre a NATO e O Pacto de Varsóvia, entre o bloco Soviético e o campo das democracias europeias, ou se a luta continua, se há um limite para essa cooperação. A crise revolucionária portuguesa e a saída democrática da crise revolucionária portuguesa mostram que há limites para a détente na Europa. A intervenção Soviética-cubana mostra que esses limites ainda são mais carregados nas periferias, onde, afinal, a détente não existe todo nas relações entre os EUA e a União Soviética.
Concordo então com Samuel Huntington, quando situa Portugal como local onde começa a terceira vaga da democratização?
É interessante que o Samuel Huntington tenha assumido essa posição. Até ao livro do Samuel Huntington sobre a Terceira Vaga da democratização, ninguém tinha feito essa sistematização de alguma maneira. A história do século 20 na Europa é marcada por vagas sucessivas da democratização: depois da Primeira Guerra Mundial, depois da Segunda Guerra Mundial e finalmente, a partir de um golpe militar num país num pequeno país periférico da Europa. É ele que faz essa sistematização, essa visão efetivamente. Ao contrário daquilo que estava previsto, que era um cenário dominante entre os dirigentes europeus, que a democracia portuguesa seria uma consequência menor e lateral da democratização espanhola; afinal, a democratização da Península Ibérica começou em Portugal e começou de uma forma dramática que teve uma projeção europeia e internacional excepcional e foi a democratização espanhola que foi um resultado menor e lateral da democratização portuguesa. O resultado principal é essa vaga, essa inversão de tendência e uma vaga de democratização que se vai estender primeiro à América Latina com uma intervenção direta dos protagonistas da democratização ibérica, quer portugueses como Mário Soares quer espanhóis, designadamente Filipe González, e depois se vai prolongar até à Revolução Europeia de 1989 ao fim da divisão justamente da Guerra Fria e a divisão da Europa em dois campos.
O livro começa com os tempos da ditadura. Durante a ditadura, o facto de Portugal ter sido convidado para membro fundador da NATO, esteve na OECE, depois em 1960 esteve no grupo de fundadores da EFTA, que deixaria quando se tornou membro da CEE em 1986… mas a minha questão é: Salazar apregoava o “orgulhosamente sós” mas valia-se das organizações internacionais para evitar o isolamento do país?
Para Portugal para a estratégia nacional de Portugal. A inserção do país na ordem Internacional é um princípio fundamental. É um princípio anterior ao Estado novo que o Estado Novo praticou mais do que aquilo que Oliveira Salazar queria admitir e que se continuou a praticar no período da democracia portuguesa. É um princípio fundamental da estratégia nacional de Portugal desde que ela existisse; obrigava naturalmente a que Portugal fizesse um esforço para se inscrever na ordem Internacional do pós guerra, o que fez o que fez com zelo e com o empenho da nossa diplomacia. E se foi possível no caso de Portugal, foi mais difícil no caso de Espanha porque as democracias ocidentais, a começar pelos Estados Unidos, entendiam que Portugal era um regime autoritário benigno. E que finalmente, durante a guerra, pelo menos a partir de uma certa altura, tinha estado do bom lado, isto é, do lado vencedor, enquanto que o regime franquista era, ao contrário, um regime totalitário resultante da intervenção direta de tropas nazis e fascistas italianas que tinham posto Francisco Franco no poder e, portanto, estava fora da NATO, fora da EFTA e ambos os países finalmente estavam fora das Comunidades Europeias que a partir de 1960, que é quando a Inglaterra faz a sua candidatura às Comunidades Europeias, se inventa a si próprio uma condicionalidade democrática que era ao mesmo tempo óbvio, mas não estava escrito em lado nenhum e continua, aliás a não estar, mas enfim à parte as Comunidades Europeias onde Portugal estava preparado para entrar, designadamente a corrente europeísta e tecnocrata da coligação autoritária em Portugal, estava preparada para entrar nas Comunidades Europeias na sequência da decisão da Inglaterra a aderir.
E essa corrente já vem desde os finais dos anos 50, início dos anos 60, que era uma corrente mais desenvolvimentista.
É uma corrente modernizadora tecnocrática europeísta, finalmente. E que quer que Portugal continue a ser, como sempre foi, um membro leal, bem comportado da ordem Internacional e essa corrente tinha apoios fortes nos meios empresariais, na administração pública, todos aqueles que, mesmo dentro do regime autoritário, defendiam o estratégias de modernização para Portugal, de modernização económica, de modernização social e também de modernização política.
Escreve que o XX Congresso do PCUS em 1956 marca uma viragem da estratégia internacional soviética, que passa a adotar a nova política de existência pacífica e o reconhecimento de que a acumulação de armas nucleares transforma a guerra total num suicídio. Falta às elites soviéticas de hoje esse tipo de consciência, tendo em conta a frequência com que Medvedev e outros admitem o recurso a armas nucleares se considerarem que há uma ameaça à segurança nacional russa?
Julgo que não, eu acho que a estratégia nuclear soviética como a estratégia nuclear da Rússia têm ambas na sua doutrina, a intimidação nuclear; as estratégias ocidentais e doutrina ocidental não inclui a intimidação. Mas os soviéticos faziam isso em 56, justamente na crise do Suez; ameaçaram a Europa Ocidental com armas nucleares em 1973, durante a guerra do Yom Kippur de novo, houve uma ameaça velada. Nesse nesse sentido, portanto, desse ponto de vista, há uma continuidade fundamental, embora obviamente é um sinal do seu desespero a frequência com que as autoridades russas, hoje em dia, fazem ameaças nucleares, é sem precedentes.
Nessa altura, 1956 com o PCUS a defender a independência das colónias, o PCP, à imagem do PCF, passa a fazer o mesmo… e no caso português, isso foi uma completa novidade…
É uma novidade como para o Partido Comunista francês também é uma novidade. É uma viragem na linha geral do movimento comunista Internacional, como se dizia. Na altura, os partidos europeus ocidentais seguem essa orientação.
Mas também diz que no início das guerras em África, portanto, 60-61, mesmo a oposição republicana ao Estado novo está com o regime na necessidade de proteger as chamadas províncias ultramarinas...
Certamente. A posição do Partido Comunista a partir de 1956-57 é uma posição. minoritária na oposição na oposição portuguesa.
Sendo que essa oposição portuguesa é uma oposição que não está formalizada em partidos e o Partido Comunista, apesar de ilegal, clandestino, era o único partido de oposição declarada ao regime.
Sim, era um pequeno partido organizado na clandestinidade, havia depois outros agrupamentos. Durante os anos 60, os partidos maoístas a partir de 1964, um de ação revolucionária, depois a Ação Socialista Portuguesa. Sim, havia vários partidos à esquerda que estavam organizados na oposição ao regime. O Partido Comunista Português era o melhor organizado, aquele que desde o início tinha o maior apoio Internacional, pelo menos até à Ação Socialista Portuguesa se ter filiado na Internacional Socialista.
Este é um livro para mergulhar os em nomes e movimentos que nos ajudam a compreender melhor esses tempos, por exemplo, da luta contra o colonialismo. O Carlos escreve que CONCP, Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas é uma organização única na história da descolonização. Quer explicar-nos porquê?
Na história da descolonização, exatamente porque nos outros casos, nas colónias inglesas, nas colónias francesas ou holandesas, nunca houve uma coordenação entre os vários movimentos nacionalistas e, no caso português, houve praticamente desde o início, a partir do MPLA, a partir do PAIGC, a FRELIMO nem sequer existia, criou-se de certa maneira, já no quadro dessa organização, que é uma organizaçãofrequentemente subestimada, mas que marca uma especificidade da descolonização portuguesa.
E está mais próxima do bloco soviético.
Certamente.
Mas a essa linha opõe-se, por exemplo, em Angola, a FNLA de Holden Roberto, a UNITA de Jonas Savimbi.
É um efeito mimético do lado chinês em relação ao lado soviético, nessa altura estamos nos anos 60, no período da cisão sino-soviética, que tem uma projeção internacional, em Portugal entre o Partido Comunista e as várias cisões maoistas, no caso de África Austral como um todo, não apenas de Angola e Moçambique, mas também no caso da Namíbia e da África do Sul e da Rodência, há de um lado movimentos de libertação nacionalistas, pró-soviéticos e apoiados pela União Soviética e outros tantos apoiados pela China.
Antes das guerras coloniais portuguesas a primeira grande crise de descolonização africana é no Congo belga em 1960 com Patrice Lumumba, quando o país que depois foi Zaire e agora novamente República Democrática do Congo, começou o seu processo de libertação; aliás como escreve, a crise congolesa precipita o início das guerras nas colónias portuguesas e tem envolvimento das três principais potências internacionais…EUA, URSS e China.
É verdade, no princípio e no fim.
Envolvem-se, de alguma forma, no conflito no Congo belga.
Exatamente. Primeiro a URSS, mas Krutchev não vai longe no seu apoio a Lumumba, ao contrário da República Popular da China, que vai apoiar Lumumba e as forças que resultam da sua fação durante os anos 60; os Estados Unidos chegam tarde, mas dominam a revolta a revolta congolesa e acabam por prevalecer num raríssimo momento em que a política Africana é importante para os Estados Unidos e para a União Soviética. Esse interesse, essa importância, só vai voltar em 1974 com a descolonização portuguesa e a partir daí, sobretudo a partir da intervenção Soviética e cubana, vai-se manter até ao fim do apartheid na África do Sul.
Era um tempo em que as superpotências se metiam também muito nos assuntos internos de cada país, nomeadamente africanos, disputando áreas de influência. Voltámos hoje em dia a esses tempos?
Não há nenhuma grande crise africana comparável à crise do Congo, comparável à crise angolana e à descolonização na África Austral, e à transformação da África austral. Há, claro, hoje crises seríssimas e gravíssimas no Sudão, agora também no Ruanda e eternamente no Congo, mas não há nenhum caso como em 1961 ou como em 1975, em que as principais potências estivessem de espadas desembainhadas, de certa maneira, numa luta pelo poder em África.
Não temos propriamente como aconteceu no caso angolano, com milhares e milhares de cubanos, ao longo da guerra civil angolana, presentes no território. Mas temos muitos russos nalguns países africanos.
É uma intervenção inédita. Sim, mas não é a mesma coisa ter a companhia Wagner,ter mercenários, ter forças de pacificação das Nações Unidas, interesses empresariais a financiar, não é a mesma coisa do que ter, primeiro em Angola e depois na guerra entre a Etiópia e a Somália, a intervenção de tropas regulares cubanas transportadas por aviões soviéticos e com armas soviéticas, isso é era inédito na altura e continua a ser, apesar de tudo excecional.
Retrospectivamente, porque é que o Estado Novo se mostrou tão intransigente na questão colonial? Era como se as colónias ou províncias ultramarinas estivessem ligadas ao próprio destino do país, certo? Enfrentando até uma campanha contra o colonialismo português na ONU a partir de 1960…
E antes disso, o conflito com a Índia, que é gravíssimo e começa logo em 1955, e em que as autoridades portuguesas veem que não podem contar com o apoio dos seus aliados, nem dos Estados Unidos, nem a Grã-Bretanha, nem a França de uma maneira geral que têm pela frente a União Soviética e os países do que na altura se chamava o Terceiro Mundo. Há uma parte das elites portuguesas, aliás, a começar por Marcelo Caetano, Armindo Monteiro, o próprio Teotónio Pereira que percebem qual é que vai ser o resultado de uma política de intransigência e que contestam essa política de intransigência, designadamente no Conselho de Estado, no contexto da crise do Estado da Índia, mas a posição de Oliveira Salazar e da Jovem Guarda que sobe ao poder em 1961, Adriano Moreira, Franco Nogueira, Correia de Oliveira, de que é preciso lutar até ao fim, que a sobrevivência do regime está posta em causa, que a vocação universalista de Portugal está posta em causa, que a Independência de Portugal está posta em causa, para citar variantes da mesma política intransigente, embora, provavelmente a partir de meados dos anos 60, todos compreendessem que era impossível levar essa política até ao fim.
Aliás, enquanto Ministro da Defesa, Botelho Moniz já tinha advertido para o suicídio que seria a continuação da que seria uma guerra para manter as colónias.
Certamente. Do lado dos militares havia claramente essa essa posição. Daí a tentativa de golpe do candidato a Primeiro-Ministro, a Presidente do Conselho de Ministros de Botelho Moniz e de Costa Gomes e era Marcelo Caetano que justamente tinha tomado uma posição de ceticismo em relação à política de intransigência no Conselho de Estado.
E depois é quando essa Jovem Guarda emerge quando começam a ser nomeados por Salazar para o Governo, que começa a ser veiculada uma certa linha de raciocínio que que faz tenta fazer crer que o colonialismo português era como escreve missionário e humanista, ao passo que o dos outros países europeus era racista.
É a tese do Adriano Moreira, a tese aliás, que ainda hoje prevalece nas visões mais. místicas do nacionalismo português.
Vai buscar referências ao Luso-Tropicalismo de Gilberto Freyre, por exemplo.
E não só, é originária em Portugal. Tudo é diferente e somos obviamente únicos, como é típico de todas as ideologias nacionalistas, não é? Tem de haver qualquer coisa que nos distingue de toda a gente, mas não era a única posição. Havia posições pragmáticas como a do Ministro dos Negócios Estrangeiros Franco Nogueira, que julgava que entendia que valia a pena jogar o jogo internacional para, designadamente, manter as grandes colónias portuguesas, Angola e Moçambique, no quadro de uma autonomia relativa da África Austral. E essa era já uma grande política que não implicava nenhuma visão mística do nacionalismo português. Outros, como o Correia de Oliveira, pensavam que era possível balançar ao mesmo tempo europeização e africanização, que era possível integrar isso numa posição Internacional de Portugal. É Correia de Oliveira que ao mesmo tempo inventa o espaço económico português e faz a adesão de Portugal à EFTA e depois ao acordo de tarifas do GATT e, naquela conjuntura, era efetivamente possível fazer a balança entre as duas coisas. Só mais tarde é que as coisas se complicam. E também em relação à África Austral, o grande projeto de Cabora Bassa, que é um projeto de três grandes barragens em Moçambique para fornecer energia elétrica a África do Sul, à Rodésia, ao conjunto da África Austral e é um projeto que é financiado por empresas francesas e por empresas alemãs, que o continuam a financiar mesmo com o regime social democrata na República Federal da da Alemanha e também, mesmo em França, depois da saída do General de Gaulle do Eliseu e da sua substituição por Pompidou, que era mais realista e mais moderado no que dizia respeito à política Africana.
Porque é que - ou como é que - o 25 de Abril foi uma surpresa para os cientistas políticos e para o pequeno círculo - como escreve - dos especialistas estrangeiros?
Provavelmente porque os cientistas políticos, sobretudo os cientistas políticos profissionais, são excessivamente conformistas. Ontem e como hoje, de resto, não é uma novidade aqui. Há apenas aqui um caso empírico em que nós podemos constatar que isso foi assim.
É a revolução portuguesa de 74 que permite o regresso à Europa, mas o fim da ditadura e o fim do império colonial obrigam a um reposicionamento internacional do país. Álvaro Cunhal, no I Governo Provisório, torna-se o primeiro membro de um partido comunista com lugar no governo de um país membro da NATO. Como é que isso foi visto internacionalmente?
Não está no currículo dele. Não está lá. Com horror pelos países da NATO, certamente com sentimentos mistos por parte dos dirigentes soviéticos e bem assim dos dirigentes dos partidos ditos eurocomunistas, que também queriam entrar para os governos, no Partido Comunista Italiano ou o Partido Comunista Francês e um dos partidos comunistas gregos, também queriam estar sentados nos governos da NATO, mas muito rapidamente perceberam que o facto de o Partido Comunista Português ter lá chegado primeiro podia prejudicar e prejudicou a possibilidade de eles se sentarem à mesa num governo da NATO. E o Partido Comunista francês esteve numa coligação com o Partido Socialista francês, na maioria presidencial, de Miterrand mas França não era membro do aparelho militar da organização militar da NATO.
Estava só no Comité político, não é?
Exatamente.
Nesta fase incipiente da democracia portuguesa, o PS é o partido português mais europeísta?
Mário Soares é o político mais europeísta na esquerda portuguesa, há uma corrente europeísta muito forte que vem do antigo regime e que está na origem da SEDES e depois é forte, sobretudo no Partido Popular Democrático, mas à esquerda, os europeístas, no sentido de aqueles que defendem a integração de Portugal nas Comunidades Europeias são uma pequena minoria. E são uma pequena minoria também no Partido Socialista, que, no entanto, no caso do PS, essa pequena minoria inclui o Secretário-Geral Mário Soares. E isso muda tudo.
Aliás, ele faz avançar o processo de adesão mesmo contra o Conselho de muitos economistas, na altura que lhe dizia que o país não estava preparado.
Certamente, certamente. E bem esses economistas, desde Silva Lopes e Vítor Constâncio, passando por João Salgueiro, eram todos bons europeistas e sabiam que o país não estava preparado para ser membro pleno das Comunidades Europeias. Era uma coisa ser membro associado das Comunidades Europeias e outra coisa era o choque da integração europeia, portanto, a oposição dos economistas, do ponto de vista do desenvolvimento económico de Portugal, não era apenas legítimo, era inteiramente racional. Mário Soares, o que explica é que a política tem precedência sobre a economia. É o primado da política que força a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias. Para Mário Soares, isso era fundamental para consolidar a democratização. As duas coisas não eram separáveis, do seu ponto de vista. Também indispensável do ponto de vista da política da política externa, pois não era pensável que a Espanha pudesse entrar e que Portugal ficasse de fora, embora esse argumento diplomático e de boas maneiras não seja frequentemente invocado.
Como escreve no final da página 142: “Em Portugal, a instabilidade política domina a transição constitucional que, em dez anos, tem cinco eleições parlamentares, oito primeiros-ministros e onze governos…" Isto afetou muito o Regresso à Europa que, entretanto, se deu? O país, fruto dessa instabilidade, acabou por aderir em piores condições?
Não, não creio que tenha afetado muito. Podia ter afetado se a linha europeísta não tivesse prevalecido no Partido Socialista e no Partido Social Democrata - e não estava escrito que ia prevalecer -, mas como prevaleceu, com ou sem instabilidade, essa orientação estava traçada e foi mantida apesar de oposições importantes na instituição militar, do Presidente da República, dentro dos próprios partidos…
Do Presidente da República Ramalho Eanes?
Ramalho Eanes tinha a posição próxima dos economistas que entendiam que um acordo de associação era mais apropriado e também daqueles que defendiam, na altura, que devia haver um referendo sobre a integração europeia. Não é nada evidente que o resultado desse referendo tivesse sido a favor da integração europeia, estamos a falar de 1980. E, portanto, a oposição era muito considerável, mas essa orientação prevaleceu na direção social-democrata do Partido Socialista, relativamente minoritária e da direção democrata-cristã do Partido Social Democrata, que também era relativamente minoritária. De resto, os obstáculos que foi preciso vencer tinham a ver com a simultaneidade da adesão de Portugal e da Espanha e da resistência que a França opôs desde o início à entrada da Espanha. Portugal e Mário Soares foram essenciais para fazer ultrapassar essa resistência, sobretudo com o Presidente Mitterand, bem como os democratas cristãos em Itália com Giulio Andreotti, foram essenciais.
E porque era essa oposição francesa?
Por causa da competição no domínio da agricultura, que era essencial. Ainda hoje, é essencial. A França bloqueou o acordo do MERCOSUL até há semanas há semanas e ainda pode voltar à Assembleia Nacional. É uma questão absolutamente crucial e foi, de facto, uma negociação complexa em que a política prevaleceu sobre a racionalidade económica.
A dimensão europeia continua a ser a mais determinante da posição internacional do país. Mas não terão as outras dimensões, a Atlântica, a da relação com os PALOP, sido de algum modo descuradas, ao longo destes cinquenta anos de democracia?
Depende das datas. Nos primeiros anos, a relação com os Estados Unidos e com a NATO é absolutamente essencial. O Partido Socialista Mário Soares tinha uma relação excecional com os Estados Unidos resultante da transição revolucionária. O Presidente Reagan recebe Mário Soares quando ele é dirigente da oposição. Hoje em dia, o Presidente dos Estados Unidos não recebe o Presidente de Portugal, quanto mais um dirigente da oposição. Não sei se há alguém no departamento de Estado que saiba quem é o dirigente da oposição, esperemos que ainda exista. A partir de 1986, há uma europeização da política Internacional de Portugal, mas há também a institucionalização da Comunidade dos países da língua portuguesa, incluindo o Brasil, e não apenas as antigas colónias africanas e Timor-Leste mais tarde. Mas sim, efetivamente, há uma desvalorização relativa da dimensão Atlântica e da dimensão das relações com os países de língua portuguesa, podia haver um equilíbrio maior. Aliás, a maior parte dos países de língua oficial portuguesa estão à volta do Atlântico. Houve mesmo um Ministro dos Estrangeiros que nos explicou num seminário diplomático que Moçambique praticamente também era um país Atlântico. Estava ali ao virar da esquina; efetivamente devia haver um maior equilíbrio. E ele regressa ciclicamente, embora efetivamente, a força da europeização tenha prevalecido a partir da integração de Portugal e da Espanha nas Comunidades Europeias.
Gostava que me explicasse a ideia com que termina o livro, de que com o regresso da guerra à Europa, Portugal precisa de demonstrar as suas qualidades universalistas ou vocação universalista…
É nesse sentido. Portugal é um país que tem uma grande experiência internacional, tem uma grande experiência diplomática, os maus espíritos diriam mesmo que é um dos poucos países que travou guerras em todos os continentes ao longo da sua História e virar as costas à realidade e pretender ter uma posição de semi neutralidade perante as grandes questões do nosso tempo, incluindo as questões da guerra e da paz, não faz justiça a essa grande tradição histórica. Portugal não é uma potência Internacional, mas é uma potência histórica. A experiência de Portugal como um Estado independente e soberano, não é comparável, com todo o respeito, à Croácia, ao Luxemburgo, mas por vezes parece que não há uma grande diferença.
Sendo Portugal, hoje, um país absolutamente integrado no espaço europeu e na União Europeia, o que é que a si mais o preocupa na Europa que temos hoje?
A guerra. A guerra dentro da Europa. O regresso da guerra à Europa.