Violante Saramago Matos: "Hoje o voto é muito mais importante do que foi em 1975. Mas não votar também é uma escolha"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres em Portugal fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre o voto. Numa viagem entre passado e presente, Violante Saramago Matos lamenta que a população "esqueça muito rapidamente o que são nazismos e fascismos e o que é que tudo isso faz às pessoas"
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Violante Saramago Matos, escritora, bióloga e ativista, afirma sem hesitações que "hoje é muito mais importante o voto do que foi em 1975". Justifica esta crença com o argumento de que, no ano em que se realizaram as primeiras eleições livres e universais, "o ambiente social era favorável à implantação de uma democracia. Hoje não é".
"Hoje é um ataque diário, sistemático, disfarçado, mas muito eficaz à democracia. Por isso, hoje é muito mais importante o voto do que foi em 1975", sublinha.
É precisamente com este mote que expõe dois argumentos pelos quais o país deve evitar a abstenção: vinca desde logo que não votar "também é uma escolha", mas lembra que esta decisão implica não só "não participar", como até "não ter todos os direitos".
"Porque os direitos não podem estar separados dos deveres. Enquanto cidadã, tenho o direito de votar, mas eu tenho o dever de votar. Porque se eu quero que o regime de Estado do país onde eu vivo seja um Estado democrático, tenho de lutar", assinala.
Ainda que reconheça que a democracia "não é votar", mas que deste regime faça parte a votação, lamenta que o tema da abstenção só seja uma preocupação em tempo de campanha eleitoral. O combate a este fenómeno, defende, "tem de ser feito" fora deste período, para que possa ser eficaz.
"A gente previne a saúde mais facilmente do que combate a doença", ilustra, apelando para uma viragem política, em que cada cidadão comece a agir de uma "forma que envolva e chame os outros".
"Este processo tem de começar por algum lado. E estamos agora numa situação em que efetivamente temos de saber para onde queremos que o país vá, para onde queremos que a Europa vá e para onde queremos que o mundo vá", realça.
O segundo argumento é exposto após levantar o véu a uma das estratégias adotadas pelos partidos populistas: a criação do pensamento de que "os políticos são todos iguais", mas que o cidadão é sempre "honesto, franco e leal". "São muitos anos a dizer a mesma coisa. As pessoas vão-se habituando a esta lengalenga que tem apenas como objetivo afastar as pessoas da atividade política, da atividade cívica e, portanto, deixar entregue a quem sabe. E o quem sabe é o eles e o quem sabe é, normalmente, quanto mais populista, melhor", acautela.
Violante Saramago considera por isso que estas questões devem ser "discutidas de uma forma muito consistente" e avisa que o país tem de "entrar por um outro ritmo, por uma outra cadência de intervenção e de participação". O sentimento de pertença e identificação, diz, "motiva" e torna a votação "mais simples" e "natural". A urgência da ida às urnas é imperativa nos dias de hoje.
"Há necessidade de escolher e há necessidade de evitar que do ponto de vista da sociedade tudo se altere tanto que depois o voto não conte sequer, que depois o voto não valha sequer a pena. Porque na ditadura havia eleições, e havia eleições fraudulentas, e quando ninguém participa, ninguém controla a fraude, e os eleitos fazem o que querem", alerta.
A também resistente de Abril, que chegou a estar presa durante três meses na prisão de Caxias, recorda ainda como foi o dia em que o país, que viveu durante 48 anos sob o regime ditatorial de António Oliveira de Salazar, despertou para a democracia participativa: as primeiras eleições livres e universais foram "extraordinariamente concorridas". Tiveram até direito a "filas enormes, muito antes das assembleias de voto abrirem".
"Não porque as pessoas não soubessem que havia eleições antes, mas porque elas não votavam. Não eram motivados para a votação. E, de repente, acharam, entenderam e consideraram que tinham o direito de fazer uma escolha. E esta escolha é uma escolha que resulta sempre de um período de amadurecimento e de consolidação para tomar a decisão", explica.
Mas o cenário atual é outro: Violante Saramago Matos denuncia a "desagregação deste modelo de governação que é a democracia" e avisa que, por via de regra, esta falha que se cria "nunca é bem preenchida".
"E como não é bem preenchida, vamos assistindo por um lado a uma certa incompreensão do que se passou, um certo acomodar ou 'bom, paciência. E agora o que é que se vai fazer?' e, portanto, isto é rapidamente preenchido por forças, por princípios e ideologias que são populistas e que são de extrema-direita e que efetivamente estão pouco interessados num processo democrático. Falam dele, mas usam-no para o exterminar", atira.
O problema da extrema-direita, diz, afeta não só Portugal e a Europa, mas o mundo de uma forma geral: "Esquecemos muito rapidamente o que são os nazismos e o que são os fascismos e o que é que tudo isso significa e o que é que tudo isso faz às pessoas. Também em Portugal temos manifestações dessas correntes", lamenta.
Confessa, por isso, que esta é uma situação "extremamente preocupante" e lembra que "não são só as guerras de soldados e canhões que são más ou que são perigosas para o mundo".
"Há outras formas de fazer a guerra, mais sofisticada, menos evidente, menos ostensiva, até, mas, quem sabe, mais eficiente", aponta.
Mas Portugal lida agora com as consequências de um "erro geracional". Aqueles que não desbravaram as durezas do Estado Novo "não fazem ideia nenhuma do que é uma ditadura" e do que é uma sociedade que se rege por outros princípios que não os da Constituição e da Declaração Universal dos Humanos. "Não fazem ideia do que é e confundem", completa.
"A nossa geração passou, em bom português, as passas do Algarve e procurou que os filhos ficassem protegidos: agora era assim, era melhor, vivíamos melhor, víamos com mais liberdade, podíamos dizer aquilo que pensávamos, já não passávamos tanta fome, já não havia tanta repressão", refere.
A filha de José Saramago e Ilda Reis esclarece que a liberdade vai além da concretização de vontades próprias e advoga a compatibilidade do "direito com o dever".
"A liberdade não é eu fazer o que quero, porque a minha liberdade tem de ser compatível com a liberdade do outro. Estas coisas são educacionais. E é verdade que as gerações hoje acham que isto é tudo simples, mas não é", enfatiza.
É, contudo, também nas "gerações um pouco mais novas" que encontra uma caraterística que lhe desperta alguma curiosidade: nesta camada da população há quem já tenha "um bocadinho mais de consciência", imposta pelos próprios ventos atuais, que têm soprado desafios mundiais, e que provam que existem valores que, outrora sonhados e conquistados, são "postos em causa".
"[Esta consciencialização] leva tempo, mas, de uma forma geral, alimenta a revolta e alimenta o sentimento de que é preciso lutar contra", reconhece.
Violante Saramago Matos entende que Portugal vive atualmente uma "fase um pouco transitória", até porque, entre a relação causa-efeito, "há um compasso de espera".
"Vemos diretos do trabalho a serem prejudicados, vemos direitos da educação a serem prejudicados, o direito à saúde a ser prejudicado, os direitos das mulheres a serem prejudicados e direitos à liberdade a serem prejudicados, um incremento da guerra em desfavor da paz. As coisas demoram tempo à resposta. Por vezes, demoram tempo à resposta organizada, à resposta consistente. Estamos neste patamar, por isso, pode perfeitamente acontecer que, do ponto de vista eleitoral, haja aqui um acréscimo da abstenção. Mas também pode acontecer o contrário. Depende um bocadinho da forma como as pessoas forem reagindo", acrescenta.
Essa "faísca" eclodiu precisamente durante a Revolução dos Cravos. Depois de o Movimento das Forças Armadas ter apelado à população para que não saísse à rua, o povo português escolheu desobedecer. Esta postura "transforma" e deu aso a que o sonho pela liberdade pudesse voar mais alto.
"Deixou de ser uma questão puramente militar, ou entre dois grandes grupos militares — uns a favor do regime, outros contra o regime —, para passar a ser uma coisa mista em que o povo, em que as mulheres, em que os homens, e até as crianças, estiveram na rua. É esta presença popular que determina e que influencia o rumo daquele levantamento militar que estava a acontecer", recorda.
Agora, adianta, os caminhos serão outros e podem "eclodir de um dia para o outro". Ou, pelo menos, provocarem essa sensação. Sobretudo porque o acumular de tensões resulta em "revoltas que se vão fomentam um estado de espírito de contrariar o que está a acontecer".
Um dos trilhos a seguir pode mesmo passar pela tomada de consciência de que "há coisas que não podem ser feitas", como são exemplos a violência, fome e guerra.
"Temos hoje exemplos absolutamente inacreditáveis de como é que se admitem guerras como a guerra na Ucrânia ou a guerra em Gaza, ou as ameaças sobre uma série de outros países porque não seguem o modelo que, teoricamente, é o modelo que alguém quer. E isto vai rebentar. Vai haver uma nova ordem, terá de haver uma alteração significativa, caso contrário — não me agrada o que vou dizer, mas é uma realidade —, o atual poder de destruição pode implodir o mundo", conclui.
Depois de uma revolução quase sem sangue, Portugal está há 50 anos a utilizar a arma mais forte que o povo tem: o voto. A TSF convida 25 personalidades a falarem sobre a importância da participação dos eleitores. Para ouvir todos os dias na antena da TSF de manhã, à tarde e à noite, e a qualquer hora em tsf.pt