Viriato Soromenho-Marques: "Voto perdeu parte importante do seu fascínio. Mas a abstenção é a forma menos inteligente de protesto"
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres em Portugal fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre a importância da democracia participativa. O filósofo político Viriato Soromenho-Marques defende que chegou o tempo de o país refletir sobre reformas urgentes na democracia participativa
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Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático, filósofo e ambientalista, admite que "o voto perdeu uma parte importante do seu fascínio e poder", mas sublinha que a "abstenção é a forma menos inteligente e menos eficaz" de protesto, que, numa situação limite, resultaria no "colapso da democracia".
No ano em que se assinalam os 50 anos das primeiras eleições livres, Viriato Soromenho-Marques faz uma reflexão sobre o que mudou (ou não) desde então, sublinhando a necessidade de "reformas urgentes". Mas ressalva desde logo que a discussão sobre a abstenção tende a seguir um "caminho errado".
"Quando se fala em comportamentos eleitorais, e nomeadamente no aumento da abstenção, existe uma tendência para penalizar os eleitores, acusá-los de desinteresse, exortar a votação como um ato de disciplina cívica. Evidentemente, isso é uma componente importante. Mas há uma segunda componente que não é menos importante, eu diria até mais importante, que é termos a humildade de compreender que o aumento da abstenção em Portugal e em todos os países com democracias representativas tem uma relação direta com a própria crise sistémica da democracia representativa", defende.
O filósofo avisa que a culpa não pode ser atribuída de forma exclusiva aos eleitores quando os regimes políticos democráticos representativos têm falhado por várias vezes em "fazer as reformas necessárias para suscitar uma adesão mais forte".
Em 1975, refere, o "entusiasmo" da afluência às urnas, que se traduziu numa taxa de participação de 92%, "refletia a consciência que os eleitores tinham de estar a eleger para a Assembleia da República, para o Parlamento, para o poder legislativo, os melhores de entre os cidadãos portugueses". Para o fenómeno de uma taxa de abstenção tão baixa ainda irreptível contribuiu a extensão deste direito a todos aqueles que se encontrem em idade legal para o fazer, ao contrário do que acontecia durante o regime do Estado Novo, que proibia a participação das mulheres.
Considera, por isso, que na Assembleia Constituinte formada em Abril desse ano estava a "nata da sociedade portuguesa de então". O cenário atual é, contudo, diferente, registando-se a quebra de "confiança entre eleitores e eleitos".
"Hoje, a confiança dos eleitores na relação com os eleitos é muito menor, na medida em que existe a consciência de que o voto popular compete com a influência poderosa de interesses estabelecidos e que não são, de modo nenhum, transparentes. Todos sabemos hoje que nas democracias de todo o mundo o peso do setor financeiro, dos lobbies económicos é tão ou maior do que o peso do voto popular. E isso, à partida, cria uma situação não de confiança, mas de ceticismo", lamenta.
Viriato Soromenho-Marques acredita, por isso, que "o voto perdeu uma parte importante do seu fascínio porque perdeu uma parte importante do seu poder". E completa o argumento ao lamentar que neste hiato de 50 anos se tenha assistido a um "processo de transferência absolutamente gigantesca de soberania" para a União Europeia.
"[Em 1975], todas as competências soberanas, desde a defesa, a moeda, à organização do sistema económico continuavam a ser competências nacionais. Ora, a partir do momento em que nós optámos por uma integração europeia, sabemos que competências de soberania fundamentais foram transferidas para a União Europeia, desde logo a União Económica Monetária e outras tão importantes, como a defesa, que ficaram amalgamadas numa mistura que carece de esclarecimento entre a União Europeia, que legalmente não tem sequer competências nessa área, e a NATO, uma organização à qual Portugal já pertencia antes do 25 de Abril", atira.
Realçando os "limites da cidadania, que hoje são muito mais acentuados", o professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa explica que a falta de um sistema democrático representativo à escala europeia provoa um "esvaziamento" no que diz respeito ao " sentimento de uma cidadania empoderada e eficaz".
"Existem competências muito importantes da vida política e da vida comunitária que estão numa esfera que não é de democracia representativa, mas sim de esfera intergovernamental. Ou seja, a competência aqui é, essencialmente, do Conselho Europeu, ou seja, dos chefes de Estado e do Governo dos países dos Estados-membros. É claramente uma zona opaca em termos de democracia representativa", atira.
Meio século após as primeiras eleições, o filósofo político apela para que o país pare de "alimentar a ficção de que em 2025 o voto popular tem o mesmo valor do que em 1975": "Não tem", esclarece, acrescentando que o mundo precisa de "gente com espírito crítico e reformador".
"Em 1975, estávamos a sair de um processo de refundação do sistema político total, constitucional do país. Aí, o voto popular efetivamente tinha uma amplitude, uma intensidade e um poder que foi perdendo com a erosão do tempo e com justamente os próprios erros políticos que foram efetuados", argumenta.
Viriato Soromenho-Marques ressalva igualmente que reconhecer estas questões não implica "desvalorizar o papel dos eleitores e do voto", até porque o ponto de partida de qualquer reforma "passa pela manutenção, reforço e melhoria" do ato eleitoral.
Sobre aqueles que justificam a abstenção com uma tentativa de protesto contra os regimes vigentes, o professor é taxativo: "A abstenção, quando é um protesto, é a forma menos inteligente e menos eficaz. E mais, a abstenção acaba por reforçar as componentes não-democráticas das políticas públicas", alerta, apontando como alternativa o voto nulo ou em branco.
O desinteresse total, enfatiza, tem muitas vezes o efeito contrário daquele inicialmente previsto. Acaba por "reforçar componentes não democráticas das políticas e dos processos legislativos", e, numa situação "limite", Portugal assistira ao colapso da democracia e a sua transformação num "sistema de automatismo", que acabaria invariavelmente numa "espécie de ditadura burocrática ou de uma ditadura tecnocrática".
A somar a tudo isto, é preciso igualmente ter em atenção que as eleições legislativas — marcadas para 18 de maio —, autárquicas — que se realizaram entre setembro e outubro — e presidenciais reúnem um "aspeto muito curioso". O voto do cidadão pode ser diferente consoante a ocasião.
"Nós verificamos muitas vezes que o voto do mesmo cidadão é diferente nas eleições autárquicas do que o é nas eleições legislativas Porque a proximidade entre os eleitos nas autarquias e nas legislativas é diferente. Há uma proximidade maior e, portanto, o cidadão ajuíza do currículo e do comportamento", ilustra.
O cenário não é o mesmo com as presidenciais, já que a escolha que é aqui feita é "pessoal e, até, unipessoal", e o eleito faz as pontes entre "poder legislativo, poder Executivo e poder judicial". O país vota "numa pessoa que é o rosto da República".
Para mitigar estes problemas, Viriato Soromenho-Marques propõe alterar a forma como é realizada a contagem de votos, nomeadamente no que diz do Método de Hondt, por considerar que este não garante a igualdade na eficácia do ato eleitoral.
"Na verdade, praticamente só em três círculos eleitorais — que são relacionados com Lisboa, Porto e Setúbal — é que nós efetivamente temos capacidade de um número elevado de partidos obter representação. Enquanto que nos restantes círculos eleitorais existe a lógica ou do voto que não eleve, que não é útil, ou então de um voto útil que não corresponde à convicção dos eleitores", critica, destacando também o desinteresse dos grandes partidos políticos em alterar este sistema.
Indo mais longe, pede a implementação de políticas públicas que "permitam que os cidadãos possam dispor de condições subjetivas e objetivas" para contrair o voto desinformado.
"Quem tem pouco tempo para se informar e se formar não tem condições para participar de uma forma informada, útil, ativa no processo político", conclui.