Vítor Melícias é padre e foi um dos amigos mais próximos do histórico fundador do Partido Socialista. Amigo da mulher de Soares - Maria Barroso -, Melícias conheceu Mário Soares pouco depois do 25 de Abril e o tempo encarregou-se de apertar os laços entre os dois homens
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"Ele sentia que eu tinha os mesmos valores, as mesmas causas, lutava pela liberdade e pela paz." E acabou também por aderir ao combate que o chamado Grupo da Luz, de que Vítor Melícias fazia parte, levou a cabo contra a pobreza. Desse grupo faziam parte nomes como Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres e outros, então jovens de variadas orientações políticas.
Uma partilha de valores que aproximou os dois, independentemente das diferenças daquilo em que acreditavam. Vítor Melícias recorda o respeito que Soares tinha pela Igreja, pelos diferentes credos religiosos e por todos aqueles que, em seu redor, se assumiam como crentes, a começar pela mulher, Maria de Jesus Barroso.
"Era um crente não alinhado, mas respeitador de todas as religiões." Filho de João Soares, padre que viu a ordenação anulada e passou a ser um "cidadão comum", o jovem Mário acompanhava regularmente o pai, que manteve o hábito da confissão regular, no Seminário da Luz. Quando o pai morreu, cumpriu até ao fim o pedido dele de mandar rezar 500 missas em sua memória.
Um dia confessou a Vítor Melícias não ter tido a "graça, o dom" da fé, ao contrário da mulher, católica fervorosa.
Nos últimos anos de vida, Mário Soares chegou mesmo a organizar uma espécie de tertúlias, ao jantar, na sua casa, com quatro padres: além de Vítor Melícias, participavam também Vítor Feytor Pinto, Januário Torgal Ferreira e Frei Bento Domingues.
Falavam de tudo, também de religião, mas "não se tratava de uma busca de conversão, antes de mútua informação, sobretudo sobre as preocupações sociais" no Portugal de então.
E era também uma oportunidade para Soares contar "imensas histórias sobre a sua luta contra Salazar e contra o regime de então", como aquele que o levou a "enterrar no chão, numa cova, documentos importantes para a luta clandestina". Viriam a ser desenterrados mais tarde.
Este é apenas um dos episódios que o amigo guarda no baú das memórias, ao lado de tantas outras que preenchem uma amizade com décadas. Vítor Melícias sorri ao "regressar" ao Palácio de Belém, num dia em que Soares estava a chegar de um funeral... com "cera nas calças". O episódio haveria de ser recordado, vezes sem conta, entre risos, pelos dois. "Partilhei muita vida com ele."
Uma vida de partilha, de cumplicidade, com "um bom amigo", numa "amizade totalmente desinteressada", sempre baseada no respeito mútuo. Vítor Melícias sublinha que "Mário Soares era um homem fixe", que faz falta.
"Que muitos mais surgissem assim, independentemente das crenças e das opções políticas, mas que sejam homens fixes."