"A arrogância foi desafiada, as sociedades ficaram viradas de pernas para o ar"
António Costa Silva, o homem dos petróleos que defende as energias limpas, autor da visão estratégica para o plano de recuperação económica nacional. A convite da TSF, explica como viveu o ano 2020.
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Especialista em políticas energéticas, presidente da Partex, é uma das figuras do ano: "vivi este ano sob todos os constrangimentos que nós conhecemos; penso que é um ano importante porque significou uma espécie de rutura com os paradigmas que todos nós tínhamos". A crise questionou "todos esses paradigmas, desde logo a questão da saúde; os desafios da saúde têm hoje um âmbito muito mais alargado, pôs em causa o paradigma da segurança, que passou a ser a segurança da própria espécie humana que está em causa".
Para o homem escolhido pelo governo para delinear uma visão para um plano de recuperação económica a longo prazo, este foi, necessariamente, um ano vivido de forma pouco habitual: "foi um ano em condições diferentes, muito teletrabalho, muito trabalho em condições difíceis, muito trabalho digital combinado com trabalho presencial"; no fundo, uma oportunidade também para "interrogar o próprio modelo de trabalho que está a mudar e como é que vai ser configurado no futuro. E, por outro lado, perceber que a crise também exponenciou a aceleração digital". Assume que a "revolução tecnológica cria-nos desafios muito novos sobre os quais temos de refletir, para ver como é que no futuro vamos evitar repetir os erros que temos cometido".
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Considera António Costa Silva que 2020 "é sobretudo um ano de reflexão sobre a fragilidade da nossa condição e da nossa civilização, e como é que nós estamos a ser incapazes de prever estas grandes crises". Explica que não "estamos a ser capazes de antecipar os riscos, a gerir os riscos, a prevenir, a usar toda a informação que temos para usá-los em conhecimentos". Na verdade, o professor no IST pensa que a humanidade está "encurralada no fetichismo da informação, nos últimos cinco anos aumentámos em cerca de vinte vezes o volume de informação acumulada no mundo, mas claramente não estamos a conseguir transformar essa informação em conhecimento e sabedoria. E portanto, a arrogância que existia sobre a nossa posição no planeta, foi de certa maneira desafiada, e portanto, as sociedades ficaram viradas de pernas para o ar, obrigando-nos a todos a refletir muito".
2021 ainda será tempo de gerir a crise
Uma reflexão que estará para durar, até porque a crise pandémica não foi nuvem passageira, ainda está aí. 2021 ainda será um ano de gestão de crise, não será tão rapidamente que vamos encontrar soluções para os desafios que esta crise nos colocou: "Sim, sim, absolutamente. Eu penso que ela ainda dura e nenhum de nós sabe qual vai ser o futuro, que raramente obedece a previsões. Vamos ver o que se vai passar".
O homem que preside à Partex, a antiga empresa de petróleos da Fundação Calouste Gulbenkian, admite que "a crise também veio acelerar a transição energética. Nós tivemos pela primeira vez, em março deste ano, o petróleo a ser transacionado em valores negativos no mercado de futuros de Nova Iorque, tivemos um a queda impressionante da capitalização bolsista, a Exon foi removida do índice Dow Jones porque a sua capitalização bolsista desceu significativamente, e quando nós nos confrontamos com todos estes factos há também aqui uma mudança da própria ordem energética e é evidente que isso é fundamental para fazer face a todos os novos desafios, fundamentalmente ao desafio da ameaça climática".
Uma crise em múltiplas direções: "Nós olhamos para a base do icebergue e temos uma crise sanitária, mas a crise sanitária já se transformou numa crise económica e social profunda, mas se escalarmos o icebergue, estamos sentados numa crise climática que a nossa geração não viu antes e a que tem de responder", afirma.
Há o risco de, se não for alterado o modelo de desenvolvimento económico e social e "os hábitos de consumo exacerbados, se não aproveitarmos esta tendência que temos para transformar os recursos em lixo, a uma velocidade sem precedentes na história, se não fizermos isso na próxima década", na opinião do homem que outro António Costa (sem Silva) convidou para delinear uma visão estratégica para o plano de recuperação económica nacional (2020-2030), "então o futuro vai ser ainda muito mais difícil. A crise veio tornar visíveis muitas destas questões".
Joe Biden, figura do ano: "um sinal de esperança que se acendeu no mundo"
A TSF perguntou a António Costa Silva qual seria a primeira pessoa em que pensaria ao escolher a figura do ano 2020: "Penso que a grande figura é o presidente eleito dos EUA Joe Biden; é um sinal de esperança que se acendeu no mundo, pode significar o fim da política errática que os EUA estavam a fazer, política essa que também se revelou durante esta crise, portanto o America first significa, no fundo, virar as costas à ordem internacional às relações internacionais, as alianças, tudo aquilo que os dirigentes norte-americanos construíram nas últimas décadas, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, e que é fundamental para a ordem internacional".
Ao refletir sobre os desafios que Biden tem pela frente, Costa e Silva lembra que "a globalização mudou com a crise, não há uma regressão mas há um reajustamento que pode ser muito significativo e portanto espero que não prevaleçam as tendências protecionistas, que haja aqui uma combinação entre o comércio mundial e a reorganização das sociedades, a começar pela nossa, no sentido de as nossas economias serem mais resilientes, mais industrializadas e assegurarem a produção de bens e serviços vitais, mas não esquecendo que a globalização será também extremamente importante". O engenheiro nascido em Luanda espera para ver "como o presidente Joe Biden se vai posicionar relativamente a esse respeito, mas é importante encontrarmos aqui um equilíbrio para o planeta poder funcionar melhor".
Depois, há a questão da robotização e da relação entre o homem e a máquina: "significativa para a modernização industrial, permitindo ganhos de escala e de eficiência muito significativos, mas que por outro lado, também coloca desafios novos, em termos do nosso convívio com as máquinas, mas é preciso encontrar aqui uma nova forma de equilíbrio".
Uma última dimensão em forma de desafio é a competição estratégica entre os EUA e a China, "muito intensificada pela crise pandémica. As duas grandes potências foram incapazes de se encontrar para desenhar em conjunto uma resposta à pandemia. Só a UE se posicionou aí, construindo a grande plataforma de colaboração para se encontrar uma vacina e distribuí-la em conjunto pelos países que aderiram. Mas nós também precisamos, ao nível da competição estratégica, de um certo equilíbrio para evitar que o planeta entre numa zona de grande perigo e isso pode acontecer com a potência ascendente, a China a desafiar a potência dominante, os EUA. Se se quebram aqui algumas regras e se se geram aqui algumas atitudes belicistas, pode ser prejudicial para o futuro".
Costa e Silva não deixa de revelar, no entanto, algum otimismo no mandato do próximo presidente dos EUA: "eu penso que o presidente Joe Biden e a maior adesão à luta contra as alterações climáticas, a luta pela transição energética, o reforço das alianças internacionais, a ligação de novo à UE e o reforço da aliança transatlântica, pode em 2021, eventualmente, prognosticar um cenário mais apelativo e mais em linha com aquilo que pode ser o posicionamento dos EUA neste século".
Amanhã: Jorge Nuno Pinto da Costa, presidente do FC Porto, faz o Balanço do Ano em entrevista à TSF.