Norvel Maia é um líder respeitado da comunidade cigana no bairro da Ameixoeira, em Lisboa. No Dia Internacional do Cigano, avisa que a discriminação está mais forte e defende que a própria comunidade tem de mudar costumes antigos.
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Norvel Maia distingue-se no grupo de homens e mulheres que se junta perto do centro de acolhimento do Serviço Jesuíta aos Refugiados. Alto, esguio, longas barbas brancas, está vestido integralmente de preto. Entramos no centro sem cerimónias - aquela casa também é dele.
Líder respeitado, homem de paz, Norvel é chamado para pôr fim a qualquer desavença no bairro. Quando o Serviço Jesuíta quis instalar ali um centro de acolhimento, foi a ele que recorreram para fazer a integração. A abertura e a posição que tem ajudou a que o centro seja um sucesso e um exemplo de inserção na comunidade.
A conversa começa com sapos, animal considerado azarento na cultura cigana. Norvel Maia comenta os enormes animais de loiça nas entradas do centro comercial do Lumiar, em plena Lisboa. "Na porta principal, no lado esquerdo, está um. Enorme! E na saída, quem entra para o Pingo Doce, outro enorme! Meu Deus! Já não somos antigos!"
O sapo é uma superstição antiga, tal como o macaco e a cobra. Norvel não liga a essas coisas, mas ainda há quem se importe, especialmente nas comunidades mais fechadas, fora dos centros urbanos. E a superstição é usada pelos espaços comerciais para afastar os ciganos.
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Norvel assegura que a discriminação continua. "Veja bem, se forem para alugar uma casa, não vai um cigano. Mandam uma pessoa que não é cigana. Se reconhecerem que é cigano, não alugam", garante.
As coisas estão piores desde há cerca de oito anos, sem qualquer razão evidente. Esta regressão tem preocupado o líder da comunidade cigana na Ameixoeira, que até já pensou em promover um congresso, a durar uma semana, que juntasse ciganos mais velhos de todo o país para discutir o que se está a passar.
Norvel Maia garante que nunca sentiu a discriminação na pele. Músico reconhecido, tocou ao lado de Thilo Krassman, Paulo de Carvalho (ainda nos Sheiks), Pedro Osório ou Fernando Mendes. Na vida artística, sempre foi tratado com respeito. Talvez por causa das opções que fez. Norvel casou, não só pela lei cigana, mas também pelo registo, todos os filhos foram à escola e todos tiraram cursos profissionais.
Se é verdade que não sofreu discriminação, o mesmo não acontece com os filhos. "Nunca quis que fossem para a venda, mas não tiveram opção". Nos trabalhos que arranjavam, mesmo quando eram reconhecidos profissionalmente, acabam por sair por serem ciganos.
Hoje, as coisas estão diferentes. Norvel tem até uma sobrinha que se licenciou em Direito, afirma, com orgulho. E é verdade que mais crianças vão à escola, mas essa é uma realidade apenas de alguns centros urbanos. "Fora, há pouco interesse. Mantêm na mesma aquelas tradições - têm de casar com ciganos, pedem as barrigas em casamento... Então do Baixo Alentejo até ao Algarve, aquilo é por demais. Carroças pelo caminho, barracas em pano, trabalham nos campos, na apanha do tomate, andam de sol a sol, chuvas... Depois não há educação, escolaridade; no parto, nem vão ao hospital."
Costumes que, para ele, não fazem sentido. Norvel Maia acredita que o futuro da comunidade cigana passa por deixar velhos hábitos, tradições fechadas. Sim, o casamento deve continuar a ser sagrado. Mas porque é que um cigano não pode casar com um não cigano? A escola tem de ser importante e tirar um curso superior deve tornar-se uma possibilidade acessível a qualquer um. A sobrinha, que vai ser advogada, é um exemplo para a comunidade.
E o secretário de Estado das Autarquias Locais, também ele de origem cigana? - perguntamos. "Devia divulgar mais, dar o exemplo, não se recolher e esconder", envolver-se mais nesta causa.
Enquanto as coisas não mudam, Norvel vai fazendo o seu trabalho, partilhando ideias, resolvendo conflitos, semeando a paz. No dia em que foi gravada esta entrevista, um grupo aguardava pacientemente na rua que ele se despachasse. "Vou longe, aí uns 30 e tal quilómetros, pôr paz numa desavença que pode ser complicada... Tenho de ir apagar o fogo!"
No bairro da Ameixoeira, há quem queira ser como o tio Norvel quando for grande. Quase a completar 70 anos, partilha os desejos para o futuro. "A coisa mais linda do mundo, para mim, era ver os ciganos viverem todos unidos, ciganos e sem serem ciganos, com os seus empregos. Não queria vendas nenhumas! Tudo empregado. Uns com os seus cursos... Gostaria imenso que os meus netos tirassem o curso de Engenharia, de Medicina, de Direito... Para mim era maior alegria do mundo! Mas não chegarei a esse ponto..."
O retrocesso a que assiste desde há oito anos fá-lo temer o que poderá vir aí. "Eu queria assegurar isto, mas às vezes acho que é impossível."
A pensar nesse futuro do qual já não fará parte, Norvel está a preparar um dos netos para ser seu sucessor. "É um homem às direitas. É novo, tem 19 anos e acho que ele pode ser o grande sucessor. Oxalá que sim."