"A cultura portuguesa tem de se descolonizar da sua própria história"
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Não gosta de ver o mundo afastado da sociedade e garante que o colonialismo e o racismo são os grandes desafios que se colocam à cultura portuguesa. O curador João Fernandes, diretor artístico do Instituto Moreira Salles, que está há um ano no Brasil, explica à TSF como a vista desde a América do Sul o fez mudar o olhar sobre as instituições culturais europeias.
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Há um ano tornou-se diretor artístico do Instituto Moreira Salles. Que balanço faz deste primeiro ano?
Foi um ano assintomático, para utilizar uma expressão destes dias. Foi um ano de profunda emoção no Brasil. No instituto (nos seus acervos, nas suas equipas, com todas as possibilidades de investigação, trabalho, programação, pesquisa, etc,) e, depois, foi uma descoberta também de um Brasil que eu conhecia, mas que é sempre diferente a partir do momento em que se vive cá. Há várias coisas que são muito mais difíceis de apreender quando vimos cá por pouco tempo.
Este ano foi transformado pela pandemia. As instituições culturais foram obrigadas a fechar portas. Levou-nos a redimensionar e rever as formas de trabalhar, mas também a outra forma de relacionamento com os públicos, que se passa através das plataformas online. Estamos, há quatro meses, a desenvolver o Convida. É um projeto no qual já trabalhámos com mais de 120 artistas, que temos convidado a produzir conteúdos para este período da pandemia. Este é, simultaneamente, um programa e um utensílio para fazer chegar recursos a artistas que estão numa situação muito vulnerável neste momento. Estamos a fazer isto em toda a programação do instituto: na música, nas artes visuais, no cinema, na literatura e na iconografia. Temos lançado conteúdos que são também uma forma de dar visibilidade a muitos artistas dentro desse mosaico de diferenças extraordinário - um caleidoscópio muito diversificado - que o Brasil apresenta.
A diversidade foi a grande metodologia para construir este programa. Foi para nós muito importante procurar esta diversidade, para proteger e fazer chegar um apoio a quem está mais vulnerável: pessoas que vivem nas periferias, nas favelas, nas comunidades indígenas ou nos subúrbios das grande cidades. Procurámos também uma grande diversidade de raça, condição social, de género e identidade sexual. Tudo quanto, no Brasil, tem sido objeto de grandes ataques e tem vivido em situação de grande vulnerabilidade ampliada por esta situação da pandemia.
Ficou surpreendido com a dimensão do Instituto Moreira Salles?
Para mim, foi surpreendente ver o trabalho que o Instituto tem vindo a fazer com os seus acervos, protegendo muito do melhor da memória do Brasil. Mesmo, por exemplo, em relação à experiência que tive noutros contextos em que trabalhei, como o português ou o espanhol, é surpreendente o trabalho que o instituto tem feito no sentido de construir um arquivo.
Há mais de 200 acervos no Instituto Moreira Salles, onde se encontra uma grande parte da história da fotografia brasileira, onde se encontra uma parte significativa de espólios de escritores que são fundamentais na literatura brasileira, onde há uma atenção que pode ir do fotojornalismo à crónica publicada em jornais, a par de uma iconografia que vai dos desenhos de viajantes europeus do século XIX até aos cartoonistas que, nos jornais, lutaram contra a ditadura, como o Millôr Fernandes, que são muito interventivos.
Ao mesmo tempo, estou a trabalhar com o Kleber Mendonça Filho - realizador de "Bacurau", que venceu, em 2019, o prémio do júri em Cannes - na programação de cinema do instituto e de contacto com toda uma realidade extremamente viva e diversificada do cinema brasileiro, que, neste momento, está bastante ameaçada pela falta de possibilidades de produção e por situações como os perigos que ameaçam a Cinemateca brasileira. Mas, por exemplo, também temos no acervo a obra de Eduardo Coutinho, um realizador de cinema que é fundamental para compreender o papel do documentarismo brasileiro na História do cinema documental das últimas décadas.
Na música, por exemplo, temos todo o acervo do Pixinguinha. Essa diversidade, essa vastidão de interesses, é uma grande responsabilidade para cruzar com aquilo que se passa no Presente. Para mim, é muito fascinante poder fazer convergir literatura, música, artes visuais, iconografia, fotografia, tudo junto numa programação e num trabalho de construção de múltiplas identidades na instituição.
Para lá da pandemia, o Brasil não vive tempos favoráveis à arte...
O Brasil não vive tempos favoráveis às artes por não haver uma estratégia do Estado em relação às artes, não haver uma política de apoio às artes. Há instituições brasileiras que estão em grande perigo. Por exemplo, o que está a acontecer com a Cinemateca brasileira é muito triste. O país parece estar a abdicar da sua memória, até pela forma como as instituições trabalham, ou trabalharam, construindo e preservando essa mesma memória. A Cinemateca é uma instituição notável que está numa situação de fragilidade imensa, pela falta de apoio por parte do Estado. Essa situação é muito complicada.
Ao mesmo tempo, há uma extraordinária vitalidade e criatividade na forma como artistas, pessoas, organizações e associações se mobilizam para construir realidades de resistência e, ao mesmo tempo, de afirmação das suas próprias criações.
Quando aceitou ir para o Brasil, falou na necessidade de democratizar o acesso à cultura. Sente que isso está a ser feito?
O Brasil é um país que oferece um diálogo fascinante entre vários níveis e formas de criação artística e expressão cultural. Em que não é possível pensar cultura popular sem as extensões e ramificações que reinventam depois a cultura erudita. Não é possível pensar a cultura erudita sem perceber a impregnação, fortíssima, que ela tem de formas de cultura popular. Isso altera muito certas questões do que possa ser pensado como legitimação ou não legitimação das obras de arte, das criações artísticas e culturais. Nessa medida, é fascinante como há por todo o lado explosões de iniciativas e criações artísticas que surpreendem. Simultaneamente, como há uma memória da literatura, como há uma memória da música, como há uma memória de formas de expressão artística como a dança, as coisas continuam e reinventam-se.
No Brasil, o samba - para falar de uma forma de expressão cultural e artística que é conhecida universalmente - reinventa-se todos os dias. Mas o samba não é apenas aquilo que se herda, é aquilo que se faz e que se reinventa a partir do presente. Isto é muito interessante e cria condições para repensar o acesso a uma instituição cultural, mas os museus, os centros de arte, as casas que se ocupam de literatura, de música, etc, estão ainda muito condicionadas pela extraordinária desigualdade social, pelas expressões de exclusão racial e outras formas de exclusão.
O Brasil é um país de exclusões, porque é um país que foi construído pela exclusão e pelo colonialismo. Este é um confronto muito grande para um português aqui no Brasil: perceber como o ponto da História em que a história do nosso país se cruza com a história do Brasil gera tantas manifestações contraditórias. Desde uma língua que, no Brasil, tem formas de expressão incríveis até formas de miscigenação, musical e cultural, também incríveis, mas, ao mesmo tempo, com sistemas de opressão, de exclusão, que são muito cruéis e que se manifestam muito no presente.
De certa forma, o colonialismo e a escravidão ainda não terminaram. A história que aqui começou ainda tem muito para se emancipar, para se repensar. Este é um momento fascinante porque, ao mesmo tempo que é muito duro e muito cruel, é, simultaneamente, um momento que está a revelar a manifestação de muitas vozes e de muitas formas de fazer arte e de expressão artística e cultural que eu acho que vão contribuir muito para as diferenças que penso serem necessárias neste Brasil.
Encontrou um Brasil menos monolítico do que esperava?
Eu suponho que o Brasil nunca terá sido monolítico. Mas houve formas de ver o país que, sem dúvida, construíram perceções (positivas e negativas) muito estereotipadas. A diversidade extraordinária do Brasil desmente todos os estereótipos que possamos ter sobre a cultura brasileira.
O senhor já dirigiu o Museu de Serralves e foi, durante sete anos, subdiretor do Museu Rainha Sofia, em Madrid. É diferente fazer programação cultural no Brasil ou na Europa?
É muito diferente. Em nenhum lugar se pode programar independentemente do contexto no qual se trabalha, no qual se está a participar, como é óbvio. No Brasil, há questões essenciais que têm que ser tidas em linha de conta numa programação. Uma delas é a resposta à exclusão de tantas formas de identidade e de cultura, que, no Brasil, é muito importante defender. Fazem parte da História do país, fazem parte da memória, mas também do presente, e estão em grande revolução neste momento.
Algo muito interessante que está a acontecer no Brasil é um lugar de fala que é ocupado pelas culturas negras e indígenas ou pelas culturas transexuais, como nunca aconteceu no país. Isto está a acontecer de uma forma muito única, mesmo a nível universal. São formas muitos particulares, que também evidenciam uma história muito particular do Brasil. Acontece que hoje encontramos, no Brasil, cineastas indígenas, filósofos, pensadores, poetas, escritores, músicos. É possível encontrar grupos de adolescentes que fazem rap numa aldeia indígena do Xingu.
As comunidades periféricas, que nós conhecemos pelo nome de favelas, têm formas de expressão cultural através de outros usos da língua portuguesa. É, por exemplo, o que está a acontecer com aquilo que aqui se chama o slam e que é uma forma de poesia em palavra falada, tem um dinamismo incrível por todo o lado e tem construído novas vozes ao nível de outras culturas e outras lutas emancipatórias. Não é possível programar no Brasil sem ter em conta tudo isso.
Na Europa, há uma anestesia de muitos dos problemas deste planeta. No Brasil, todos os problemas do mundo estão bem visíveis quando se dá três passos na rua. Portanto, programar uma instituição cultural é também estar muito atento a tudo isto que vai acontecendo e assumir uma posição que possa fazer com que essa instituição cultural seja útil, no contexto em que opera. Há toda uma série de questões, de urgências, de premências que sinto no Brasil e não sentia na Europa da mesma maneira.
No Reina Sofia, foi muito importante para mim construir com o Manuel Borja-Villel, diretor do museu, uma programação que tinha em conta toda a relação colonial de Espanha com a América do Sul e interrogar essa história a partir do presente. Ter uma atenção muito grande a formas de expressão artística que se refugiam em contextos sociais, culturais, geográficos que tinham sido, sem dúvida, muito condicionados pela História Colonial.
Em Portugal, a esse nível, está tudo por fazer. Essa é uma agenda que eu sinto que aqui no Brasil é urgente, é importante e pode contribuir para que também fora do Brasil se possa pensar muito do que se faz em relação a essas questões.
É possível transportar essa agenda para Portugal?
Os contextos são muito diferentes, mas seria urgente que Portugal se confrontasse com muitas das questões que por aqui existem também.
Nos últimos tempos, têm-me chegado notícias de Portugal que não são boas. Há fenómenos racistas a acontecer na sociedade portuguesa. Portugal é um país que ainda não fez o luto desse trauma imenso que foi o colonialismo, é um país em que há uma grande ignorância dos portugueses em relação à sua própria história, em relação, por exemplo, à sua responsabilidade no negócio da escravatura, que construiu todo um mundo colonial e financiou o país durante séculos.
Há uma espécie de anestesia em relação à história e em relação à memória, que gera uma inconsciência grande em relação a problemas do presente e que cria uma grande surpresa quando esses problemas se manifestam. Os portugueses ficam surpreendidos quando, às vezes, descobrem que os monstros estão perto.
A distância, até física, leva-o a ver de forma diferente a programação em Portugal?
Leva, sem dúvida. Leva-me também a uma autocrítica em relação aos anos em que eu programei em Portugal. Em relação a algumas coisas que fiz e ao muito que há por fazer nas instituições portuguesas para se descolonizarem da sua própria História e para agirem de uma forma em que elas assumam a consciência dessa mesma História. As instituições culturais e o Estado português não podem estar adormecidos em relação a essas questões. Até porque elas estão muito vivas no mundo e, como se vê, até em Portugal elas não deixam de existir. Essas são necessidades que eu não sentia da mesma maneira na Europa, nem quando programei em Portugal.
É muito importante, por isso, para os portugueses saberem como é que a sua língua é utilizada e falada, como origina outras formas de expressão literária, artística, política, etc., noutros pontos do mundo. É muito importante os portugueses terem consciência dessa sua história que se cruzou com uma história do mundo e da qual hoje são muito inconscientes.
Havia muita coisa nos museus e nas instituições culturais internacionais que eu sentia que tinha de ser questionada, que tinha de ser repensada. Uma delas está a ser confrontada um pouco por todo o mundo neste momento: a questão do racismo nas instituições culturais.
Os museus vivem de uma História de pirataria, de uma História que acompanha a História Colonial e há muito a repensar na função, na atividade e na historicidade dos museus. Na forma como eles construíram os seus acervos, na forma como constroem as suas atividades, na forma como constroem as suas estruturas, as suas equipas, etc., em relação a questões como essa diversidade humana, que foi tão condicionada pela história colonial e pelo racismo. A Europa, por vezes, está muito esquecida desses problemas, dos quais foi um agente direto.
Será essa a grande urgência?
As artes criaram os seus próprios mundos, os seus próprios sistemas de legitimação, de apreciação, de reconhecimento, de expansão. Por exemplo, nas artes visuais, criou-se o mundo da arte que funcionou muitas vezes à revelia de tantas coisas que se passavam no mundo fora desse mesmo mundo da arte. É por isso muito importante repensar a relação entre uma instituição cultural e a sociedade em que ela está.
Pensar a relação entre um ponto de vista que se constrói sobre um contexto artístico e um ponto de vista que se constrói sobre a História, sobre o mundo, sobre a vida. Isso são desafios muito importantes e parece-me que é urgente discuti-los também na sociedade portuguesa.
Em Espanha, eu trabalhei muito perto do museu do Prado, onde estão as gravuras de Goya - aliás, no Reina Sofia também havia algumas -, e há duas em que ele diz o "sono da razão produz monstros". Em Portugal e na Europa, esse sono, essa inconsciência e essa falta de reflexão e de trabalho com a memória, com o passado e com tudo o que aconteceu de tão violento nesse passado, gera monstros. Gera monstros que também atacam no quotidiano e atacam no presente.
Para mim, é uma reflexão quotidiana, aqui no Brasil, como é que uma cultura que estamos habituados a ver como pacífica, como é o caso da portuguesa, gerou um país tão violento em tanta coisa como o Brasil. A violência no Brasil vem de uma história colonial da qual Portugal também fez parte.
Como tem vivido toda a situação de tensão no Brasil?
A situação está um pouco bárbara. Continua a morrer muita gente. Há uma estabilidade de que se fala no Brasil, mas uma é uma estabilidade bárbara. Há cerca de 1.000 pessoas a morrer por dia e, como o Brasil é muito grande, quando as coisas parecem começar a melhorar num Estado, começam a piorar noutro.
Depois, há uma pressão muito grande para a reabertura económica, até pela fragilidade que o país tem, mas também pela completa falta de estratégia ao nível do Estado central.
O Brasil está sem ministro da Saúde há mais de três meses. Há um militar que entende de logística, mas não entenderá muito de questões de Saúde. Há um negacionismo do Presidente. Enfim, tudo isto contribui para a confusão, obviamente.
O que acontece neste momento é que a pandemia está a afetar sobretudo os mais desprotegidos. Está a afetar sobretudo as pessoas que não têm condições para se isolar. Há muita gente a morrer nas favelas, nas comunidades indígenas. São os mais desprotegidos, aqueles que sempre sofreram no Brasil, que mais estão a sofrer com a Covid. As estatísticas são terríveis.
Há também formas de organização, de resistência, de trabalho nas comunidades, que estão a ser surpreendentes. Isso é uma realidade que tem impedido, juntamente com o facto de haver um Serviço Nacional de Saúde bem estruturado, males maiores. Apesar da subnotificação, tem havido formas de organização e entreajuda entre comunidades, que são notáveis.
