A "grande influência" do machismo na Justiça: é preciso "endurecer" penas, violação como crime público e especializar magistrados
O crime contra as mulheres é, "muitas vezes", um crime sem castigo: é consensual entre os intervenientes do Fórum TSF desta quinta-feira que "as estatísticas revelam sinais preocupantes"
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O caso dos três jovens que violaram uma menor, em Loures, e depois partilharam as imagens nas redes sociais, acendeu a discussão sobre os crimes contra as mulheres. Os suspeitos foram constituídos arguidos e saíram em liberdade, com as medidas de coação de apresentação periódica às autoridades e total proibição de contacto com a vítima. No Fórum TSF, as denúncias vão para a "grande influência" da mentalidade machista na Justiça portuguesa e os intervenientes apelam para que a "violação passe a ser crime público", para o "endurecimento" da moldura penal e para a "especialização" de magistrados e forças de segurança no que diz respeito à violência sexual.
António Garcia Pereira, advogado e um dos primeiros subscritores de uma petição contra a violência sobre as mulheres, fala numa "forma extrema de violência doméstica praticada em função do género: as mulheres são, esmagadoramente, as vítimas de homicídio em contexto de intimidade".
Os danos, alerta, vão além da própria vítima e estendem-se àqueles que lhe são mais próximos, nomeadamente os filhos. É com estes argumentos que justifica um dos pontos da petição: a criação do crime de femicídio.
Denuncia ainda uma visão predominantemente machista, que "continua a ter grande influência e peso na própria Justiça". Tal é visível na "frequência — muito criticável — da aplicação do mecanismo de suspensão da pena". Esta crença motiva ainda a defesa pelo "endurecimento da moldura penal".
O advogado recorda ainda um "tristemente célebre acórdão" proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no final do ano de 1980, em que foi justificada a "relativa benevolência" com que foram tratados dois violadores, com o "'brilhante' argumento de que [as vítimas] passeavam de calções a pedir boleia, em plena coutada do macho latino".
"Esta frase foi cirurgicamente retirada, entretanto, da publicação do acórdão. Varreu-se para debaixo do tapete aquilo que é uma barbaridade machista e estamos a falar de um acórdão de 1988, não de 1188. Depois disto, vimos o tristemente célebre acórdão subscrito pelo juiz desembargador Moura", lamenta.
Defende ainda ser "absolutamente indispensável" que a violação passe a ser um crime público. De salientar que o vídeo da menor de 16 anos violada em Loures foi amplamente visualizado nas redes sociais, sem que tenha sido apresentada qualquer queixa às autoridades por parte destas pessoas.
Mas Diana Pinto, da Plataforma Para os Direitos das Mulheres, alarga a discussão: se, por um lado, os agressores continuam a "capitalizar" com a falta de "medidas concretas" e se reforça a "urgência" de uma regulamentação eficaz para as plataformas digitais serem responsabilizadas pela disseminação e permanência de conteúdos ilegais, também é certo que a "impunidade" perante a violência contra as mulheres advém da "ausência da formação especializada dos magistrados e das forças de segurança", no que diz respeito a esta problemática.
"A implementação de equipas altamente especializadas na violência sexual é essencial para garantir investigações rigorosas, mas também julgamentos e processos judiciais que respeitem os direitos das vítimas sobreviventes. E não é isso que estamos a assistir neste caso em concreto", sublinha, lamentando que o crime contra as mulheres seja, muitas vezes, um crime sem castigo.
Dulce Rocha, procuradora e uma das fundadoras da Associação Portuguesa de Mulheres, é perentória: "A nossa legislação não tem acompanhado as necessidades para diminuir drasticamente este crime da violência doméstica." Destaca, por isso, que o sofrimento das vítimas é "agravado" quando se veem expostas nas redes sociais e assegura que o discurso de ódio que verte nas plataformas, sob um manto de anonimato, "não é uma invenção das pessoas: existe mesmo".
Já o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Paulo Lona, refere que, quando são aplicadas medidas de afastamento, "é importante que não seja o afastamento da vítima da sua casa para uma casa de proteção". Apresenta, por isso, uma medida alternativa que visa o agressor.
"É cada vez mais é importante que o afastamento seja do agressor, nem que para isso fosse necessário criar casas onde fossem colocados e sujeitos a algum tipo de tratamento psicológico, que permitisse alguma desconstrução desta violência", sugere.
"As estatísticas revelam sinais preocupantes do que se refere ao crime de violência doméstica", admite o presidente da Associação dos Juízes. Nuno Matos entende, contudo, que o quadro legal português está "ajustado" às convenções internacionais e rejeita a visão de que Portugal seja "um caso isolado".
