"A vida das pessoas não é para esquecer." O passado num abraço português e guineense
A TSF conta a história de Bademba Gagigo e de José Luis Sousa que o reencontrou mais de 40 anos depois de deixar a Guiné-Bissau
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O estranho nome ficou na memória de uma companhia militar portuguesa enviada para a Guiné-Bissau em 1969. Bademba Gagigo era um menino de 11 anos quando a Companhia de Caçadores 2571 chegou à aldeia de Pirada, no setor da região administrativa de Gabu, situada no Norte do país. Foi um dos muitos meninos que correu à estrada a saudar os militares.
“Tocámos gaita e batemos panelas e dissemos periquitos vão para o mato”, lembra, hoje já um homem de 65 anos. "Periquitos" era como os guineenses chamavam a quem chegava. A maior parte dos elementos desta companhia era natural da Madeira, mas alguns, cerca de 40, tinham saído do Continente, entre eles José Luis Sousa. A história começa em 1969, mas tem o seu desenlace mais de 40 anos depois e a ele já voltaremos.
Quando a companhia se encontrava na Guiné-Bissau, muitos dos militares apegaram-se sentimentalmente a alguns miúdos da população que cirandavam pelo quartel diariamente. Vinham trazer a roupa que as suas irmãs ou mães lavavam para os militares, faziam-lhes recados, comiam no quartel, ganharam amizade aos portugueses.
Bademba tinha particular admiração pelo cabo Dória de Sousa. “Segurou-me como se eu fosse um filho ou um irmão. Ensinou-me a escrever, pôs-me na escola e ensinou-me a falar português”, conta. Quando o cabo Dória deixou a Guiné, quis trazer consigo Bademba e desafiou-o a fazer uma mala com roupas para a viagem. Estava tudo preparado para que a criança saltasse para o camião Unimog, mas a irmã impediu-o de vir para Portugal. “Fiquei muito triste”, recorda.
Bademba só conseguiu chegar a este país 20 anos depois, em 1990. José Luis Sousa entra nesta história 22 anos depois. Em 2012, o antigo soldado, que na guerra colonial tinha as funções de operador cripto (descodificava as mensagens) estava em Faro, onde reside, num café que nem costuma frequentar. Mas as coincidências acontecem.
“Quando começo a ouvir dois africanos que se sentaram por trás de mim, e um deles dizer que era natural de Pirada. Dei um salto da cadeira“, relembra. Quem estava à frente de José Luis era o menino que em 1970 andava de calções pelo quartel português na Guiné. “Foi uma alegria muito grande, nessa noite nem consegui dormir”, recorda o guineense.
Há algum tempo que José Luis se tinha predisposto a vasculhar arquivos à procura de antigos camaradas de armas, para reunir os que conseguisse. Foi aos arquivos da RTP, contactou juntas de freguesia de todo o País, e conseguiu o contacto de muitos. O reencontro com Bademba Gagigo foi uma feliz coincidência e, nesse ano, José Sousa fez a surpresa aos outros ex-militares e apareceu com o guineense no almoço de convívio.
”Toda a gente queria ficar ao meu lado e recordar o passado”, lembra Bademba, que tem uma memória prodigiosa e se recorda de tudo como se fosse hoje. Sempre que pode, Bademba Gagigo, comparece às reuniões anuais da companhia de Caçadores 2571.
Um dos episódios recordados no encontro que marcamos para esta reportagem foi o ataque dos guerrilheiros do PAIGC sofrido pelos militares, passados apenas três meses de terem chegado à aldeia de Pirada. A população também não escapou, foi também alvo dos ataques que eram frequentes dos dois lados, da tropa portuguesa e dos rebeldes. Neste caso morreram 15 pessoas da aldeia e mais de 40 ficaram feridas. Bademba Gagigo, com 11 anos, foi uma das vítimas transportada de avião para ser tratada no hospital de Bissau. Uma bala trespassou-lhe o braço e danificou-lhe os tendões. Ainda hoje não consegue esticar três dedos da mão direita.
Essa é uma das memórias amargas do tempo de uma guerra cruel, mas tanto José Luis como Bademba Gagigo recordam outras com muita saudade. Ambos emocionam-se quando falam de certos episódios. “Nós não somos inimigos, a guerra colonial é que fez muitos estragos”, lamenta Bademba. Diz que pretende deixar um apelo ao governo português. “A vida das pessoas não é para esquecer, muitos dos que foram lá perderam um braço, a perna, a vista e outros morreram”, enfatiza. Também ele ficou com uma deficiência.
Permanecerá ligado para sempre ao destino destes soldados portugueses, até pelas marcas físicas deixadas pela bala que o atingiu. “A nossa amizade é como família”, garante. “Até sempre, a amizade com o Bademba vai continuar sempre, sempre, enquanto eu for vivo”, diz emocionado José Luis. Ainda se vê como um jovem soldado, que há mais de 50 anos conheceu, num destino bem distante, um menino de 11 anos.