A vida (in)visível dos investigadores em Portugal. Mentes científicas em precariedade
Instabilidade laboral, desvalorização da carreira e falta de financiamento. Este é o retrato da carreira de cientista em Portugal. Com o atual corte de 69% no financiamento da FCT a 117 centros de investigação classificados como Muito Bom, apenas se prevê o agravamento da precariedade existente na ciência nacional
Corpo do artigo
Pilar da evolução da humanidade, a investigação científica não tem merecido tratamento equiparado à importância que o conhecimento representa para a sociedade. A maior parte dos investigadores portugueses queixa-se da precariedade que envolve a profissão. Ainda em outubro de 2024, centenas de cientistas saíram à rua para protestarem em frente às instalações do Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), em Lisboa, contra a falta de garantias da profissão. Como defende Patrícia Santos Pedrosa, investigadora de arquitetura e de estudos de género no Centro Interdisciplinar de Estudos do Género (CIEG), da Universidade de Lisboa, “um país que não tenha na investigação e no ensino o seu pilar fundamental está sempre aquém do seu potencial”. Em Portugal, a maior parte do trabalho científico é realizado por bolseiros ou por investigadores com contrato a termo. Teresa Summavielle, investigadora na área das ciências da saúde e vice-presidente da direção do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESUP), afiança que “dois terços dos investigadores não têm qualquer possibilidade de serem contratados”. Para a sindicalista, os maiores problemas da ciência em Portugal são, sobretudo, consequência da falta de recursos: “As mentes científicas vivem num sistema, desde sempre, subfinanciado. Acenam há muitos anos com uma meta de 3% do PIB para a ciência, mas, a meu ver, nunca vamos alcançar esse objetivo.”
Ciência, em constante desvalorização
O atual corte no financiamento da FCT contribuiu ainda mais para o agravamento do contexto precário destes profissionais. O dinheiro retirado destas instituições, que corresponde a um corte de 69% no financiamento base face ao ciclo anterior, impossibilita a gestão das unidades de investigação. Trata-se de um entrave que coloca em causa o financiamento dos próximos cinco anos dos centros de investigação avaliados com "Muito Bom” e força as instituições a dispensarem investigadores. A vice-presidente da direção da SNESUP considera que “nos últimos tempos, se deu um grande passo com a revisão do estatuto de investigador, recentemente aprovado, por ter em consideração a questão da evolução salarial”. O verdadeiro problema encontra-se, no entanto, na sua aplicação. “Enquanto sindicato, a nossa expectativa era que este novo estatuto se aplicasse a todos os investigadores que são pagos com dinheiros públicos.” Nas instituições privadas sem fins lucrativos, a atribuição do estatuto a estes profissionais é facultativa e depende muito das exigências do financiamento. “Este fator opcional faz com que a maioria dos investigadores não esteja coberta pelo estatuto, o que se reflete numa falta de proteção dos direitos, deveres e condições de trabalho destes profissionais”, esclarece.
Beco sem saída
A desvalorização da carreira continua a ser um problema crítico com consequências visíveis. As melhores ofertas e condições laborais no estrangeiro provocam a fuga de investigadores qualificados. Ana Delicado, investigadora no Instituto de Ciências Sociais (ICS), da Universidade de Lisboa e autora do projeto de investigação “Mobilidade Internacional dos Investigadores Portugueses”, apontou, numa entrevista ao Observatório da Emigração, que a fuga de “cérebros qualificados” para o estrangeiro, sem garantia de regresso ao ponto de origem, é um dos desafios na concretização da ciência. “Há ganhos para a ciência portuguesa neste investimento da formação dos investigadores que depois foram para fora. Muito do crescimento que tem sido feito nas instituições de investigação deveu-se aos investigadores que foram formados lá fora e que hoje em dia têm a capacidade de formar cá dentro, em condições quase tão boas como no estrangeiro, neste sentido houve um brain gain. É muito positivo se houver circulação de cérebros, ou seja, enquanto uns entram, outros saem, e uns saem e depois voltam, é muito melhor do que ficarmos todos cá sem termos influências diferentes. Agora, é preciso que haja essa circulação de cérebros e não ser só saída de cérebros, como está a acontecer”, afirmou. Quando a emigração não está no horizonte, a instabilidade e a falta de progressão na carreira levam ao abandono da profissão. Bruno Luís Pinto de Oliveira, investigador de biomedicina, no Instituto de Medicina Molecular, no Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, considera que “a falta de condições coloca em causa a qualidade dos estudos realizados nas várias áreas”. E justifica: “As dificuldades em arranjar uma estabilidade a nível de emprego criam nas pessoas uma grande ansiedade e isso tira muito o foco no que é essencial: o fazer a ciência. Se as pessoas conseguissem ter um contrato de trabalho mais cedo, conseguiríamos, certamente, focarmo-nos mais na ciência e isso teria um melhor proveito”. Teresa Summavielle sublinha que outra das barreiras é a obtenção de vínculos laborais, que continua a ser muito competitiva. O número de concursos de contrato para doutorados é muito reduzido e nem sempre acompanha as necessidades dos investigadores ou dos respetivos centros a que pertencem. A concorrência e a escassez de recursos verificam-se com o resultado final da sexta edição do Concurso de Estímulo ao Emprego Científico (CEEC), um programa da FCT, criado com o objetivo de promover o emprego científico, que registou uma taxa de aprovação recorde com um valor de 14,6%. De um total de 2746 propostas, apenas 400 candidaturas foram aprovadas. Nas edições anteriores, este concurso oferecia contratos de seis anos, contudo, na edição de 2024, as condições foram alteradas para contratos de apenas três anos com a justificação de que estes apoios só têm a função de introduzir os profissionais na investigação científica. Outro problema crónico do sistema é a irregularidade e imprevisibilidade dos concursos, que também acentua a instabilidade laboral. “A FCT financia a ciência e deveria abrir candidaturas anuais para projetos científicos, mas o que se sabe e acontece muitas vezes é que essas candidaturas são adiadas, eventualmente, por motivos políticos, de financiamento ou de orçamento de Estado. Não conseguimos ter um financiamento regular por causa dessa falta de compromisso da FCT para a ciência através do nosso Governo”, aponta Bruno Oliveira.
O conflito entre lecionar e investigar
A conciliação entre o ensino e a investigação é, para muitos, uma junção que faz todo o sentido por serem duas atividades que se complementam e que se valorizam simultaneamente. “A atividade docente é sempre positiva. Contudo, prefiro que não seja uma docência oferecida, como acontece em muitos casos”, defende Teresa Summavielle. Há, segundo a sindicalista, “uma série de instituições que se escudam em práticas muito duvidosas. Assumem que os docentes não estão verdadeiramente presentes, não têm contabilizadas as horas de preparação das aulas nem as horas de investigação. Este tipo de práticas desvaloriza a carreira docente dos professores precários, como também coloca em causa a sua própria missão educativa”. Para as instituições, este tipo de vínculo é financeiramente vantajoso. “Contratam vários docentes sem qualquer de qualidade, sem direitos e sem regalias. Ainda assim, conseguem garantir o funcionamento das aulas, por vezes, até com maior qualidade, pois estão a contratar profissionais altamente qualificados”, afiança. Se estes especialistas realizarem investigação noutro sítio, mas estiverem a publicar e a produzir, as instituições de ensino exigem que a filiação do sítio onde estão a dar aulas apareça nos trabalhos que estão a publicar, mesmo que não lhes proporcionem condições de investigação. “Temos então uma publicação científica muito elevada a um preço muito simpático”, confirma Teresa Summavielle.
Entrar não é sinónimo de ficar
A precariedade da carreira de investigador não é um caso particular português. Atualmente, uma das fragilidades da atividade científica é que o facto de entrar na área de investigação não é uma garantia de que se consiga continuar a exercer a profissão. A instabilidade laboral deriva do facto de os investigadores só conseguirem contratos com termo, os quais são renovados de três em três anos pelo máximo de seis. “Este modelo insustentável de contratação é um dos fatores responsáveis pela precariedade, instabilidade, perda de produtividade e problemas de saúde mental. Estes contratos são bastante competitivos e a sua taxa de aprovação é normalmente abaixo dos 10%. Portanto, é muito difícil conseguir arranjar um contrato destes”, revela Teresa Summavielle, membro do SNESUP. Numa carreira em que quase nada é garantido, a procura constante por novas oportunidades torna-se uma certeza. A impossibilidade de progredir a nível profissional também tem sido um dos principais problemas. “Cada vez que começam um novo contrato - e esses são os que têm sorte porque conseguiram um novo contrato -, começam sempre na mesma posição e, portanto, estão privados de progredir”. O que significa que, no melhor cenário possível, ao fim de seis anos, volta-se à estaca zero. Os investigadores são obrigados a procurar um novo contrato, financiamento e instituição, já que a renovação com a mesma entidade não é permitida.
A familiaridade na investigação
Na profissão de investigador, os problemas de saúde mental têm uma expressão muito elevada. As causas deste ambiente de forte pressão, segundo Bruno Oliveira, advêm da “necessidade de conseguir publicar, pois sem artigos não se consegue financiamento e isso envolve stress adicional”. Por outro lado, Patrícia Pedrosa acusa “a exigência, a carga horária, a precariedade e a falta de apoios de saúde mental nas instituições”. Teresa Summavielle salienta também “o fator da precariedade, a ausência de se conseguir prever o que vai ser o futuro a nível profissional, o excesso de trabalho completamente absurdo e medo de dizer aquilo que realmente se pensa, por receio de sofrer consequências ou de ser colocado à margem”. Ainda existe um longo caminho para percorrer. Como acredita Teresa Summavielle: “Continuamos com os investigadores preocupados, porque não veem as suas expectativas de, finalmente, poderem entrar na carreira e terem uma posição estável. Apesar de, em média, essas pessoas terem mais de 40 anos, não são tratados como os outros trabalhadores. São precários eternamente”.
Apreciadora de cultura, Maria Francisca Quadrada não dispensa o contacto com o mundo da arte, em particular com a literatura, para se sentir preenchida. É como se as histórias que encontra nos livros fossem o seu lugar de refúgio. Atualmente, encontra-se a terminar o 1ºano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), convicta de que as melhores histórias habitam lugares escondidos. Cabe ao jornalista descobri-las.
