Há cem anos, no dia 11 de novembro de 1918, foi assinado o Armistício que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Portugal quis estar presente como um igual entre os vencedores e só por milagre conseguiu.
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O bigode denuncia-lhes a nacionalidade. A fileira de soldados portugueses na Primeira Guerra Mundial era inconfundível, ainda que não fossem muitos: a sua presença só foi possível graças a um desenrasque também tão tipicamente português.
Os homens que integraram o Corpo Expedicionário Português (CEP) não estavam de todo preparados para o que encontraram nas lamacentas trincheiras de França. E, no entanto, só a sua ida para a guerra foi considerada um milagre.
Em 1916, em Tancos - no mesmo local onde desaparecem armas que voltam a aparecer milagrosamente - cerca de 20 mil homens transformaram-se em soldados em três meses. Ou, pelo menos, assim fizeram parecer aos Aliados.
O chamado "milagre de Tancos" é sobretudo a "demonstração a franceses e a britânicos que, com algumas reservas e com a necessidade de mais instrução, treino e adaptação, o exército português pode ir para as trincheiras", explica o historiador Filipe Ribeiro Meneses à TSF.
"O que interessa não é a transformação do exército, ou o que realmente aconteceu em Tancos. É convencer as autoridades militares britânicas e francesas a autorizarem a partida do CEP para França. É esse o milagre."
Em 1914 a Grã-Bretanha convidou Portugal a entrar na guerra ao lado dos Aliados e o Governo luso garantiu que era capaz de mobilizar uma divisão. No entanto, quando se iniciaram os trabalhos, rapidamente se chegou à conclusão de que a missão era impossível e o convite britânico foi retirado.
Um ano depois, já com Afonso Costa no Governo, voltou a falar-se da participação portuguesa na grande guerra. Quando, a pedido dos britânicos, os navios alemães fundeados nos portos portugueses são capturados, a Alemanha declara guerra a Portugal e esta torna-se inevitável.
Por ordem do ministro da Guerra, Norton de Matos, e sob direção do general Tamagnini de Abreu, foi criada uma divisão de instrução no Polígono Militar de Tancos.
Cerca de 20 mil homens estabeleceram-se no grande acampamento montado de improviso, que ficou conhecido como cidade de Paulona (por causa das tendas feitas de pau e lona), e fizeram um "treino muito rudimentar", descreve Filipe Ribeiro Meneses.
Os chamados para a guerra, poucos voluntários e muitos sem qualquer formação militar anterior ou analfabetos, receberam entre abril e julho de 1916 alguma preparação física e tática. Fizeram marchas, treino de tiro e algumas manobras militares.
"A fasquia foi posta tão baixa que aquilo que se conseguiu fazer foi de imediato apresentado pela imprensa como um milagre", também para tentar gerar entusiasmo quanto à participação de Portugal na guerra.
Apesar de terem recebido o selo de aprovação dos observadores franceses e britânicos, que acompanharam no terreno a formação do exército, os portugueses acabaram por sair de Tancos com "pouca noção do que era uma guerra verdadeira".
Durante o treino "não se sabe ainda bem o que é a guerra das trincheiras, por isso ainda há, por exemplo, exercícios de cavalaria, que acaba por não ser usada. Todos aqueles que partem para a guerra como tropas de cavalaria têm de ser treinados posteriormente para outras armas".
Quando as tropas chegam a França voltam a receber vários meses de treino e de instrução, "agora sim a um nível mais rigoroso, num processo controlado pelo exército britânico".
A falta de preparação dos homens será mesmo "uma fonte constante de atritos, desgaste e desentendimentos entre portugueses e britânicos". Isto porque "o exército português insiste que tem de ser ele a treinar as suas forças, os britânicos dizem que devem ser eles".
Chegou-se ao compromisso possível: os ingleses formavam os formadores portugueses e estes davam depois a instrução ao resto do exército português.
Tampouco os portugueses estavam preparados para o clima. "Chegam a França em janeiro, no meio de uma onda de frio terrível, com temperaturas negativas semana após semana."
Há episódios quase caricatos, conta o historiador Filipe Ribeiro Meneses. Como o facto de a água dos radiadores dos camiões levados pelo CEP ter congelado. Um "equipamento valiosíssimo" acabou assim por ficar danificado, sem hipótese de reparação.
Dos 105 mil portugueses enviados para as duas frentes da guerra 7.770 morreram, mais de 16.600 ficaram feridos ou incapacitados e mais de 13.600 foram presos ou dados como desaparecidos.
Com 38 mil baixas, a presença portuguesa na Primeira Guerra Mundial não fica para a História em glória. O milagre foi estar lá.