"Agora é muito difícil alguém não ficar fragilizado quando toma posse" de um cargo público
Eduardo Paz Ferreira, décadas de ensino na Faculdade de Direito da Universidade clássica de Lisboa, antigo administrador na Caixa Geral de Depósitos. Acaba de publicar um "Ensaio de Finanças Públicas". Entrevista na TSF sem fugir às polémicas sobre o Tribunal de Contas.
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Além de figura de referência do mundo da advocacia, do ensino do Direito, da área fiscal e das finanças públicas, do meio financeiro, Eduardo Paz Ferreira tem vasta intervenção cívica e pensamento público e publicado sobre política externa e finanças públicas internacionais.
No livro esta quinta-feira apresentado em Lisboa, ao explicar os motivos que o levaram à publicação de um ensaio sobre finanças públicas, lamenta o "triste percurso dos últimos anos, com o empolamento da matemática e o enfraquecimento da reflexão". Há um claro "empobrecimento do debate público", salienta.
Questionado sobre se é possível mudar alguma coisa de modo substancial na forma como o país encara as finanças públicas, enquanto persistir aquilo que designa como um ensino "moldado para fazer crer na insustentável leveza do privado em confronto com o peso do público, visando este apenas coartar o voo do ágil privado", responde que "temos assistido a um ressuscitar das posições que defendem que é preciso retomar a austeridade, mas não há uma atenção especial em relação ao que é realmente preciso fazer: era preciso que houvesse um muito maior pluralismo; as vozes que se fazem ouvir na área económica, são todas muito TINA, there is no alternative".
O que é que a pandemia veio mudar? "O pensamento", responde de forma perentória. "O agente, por excelência da política de austeridade, a UE, cedeu bastante na austeridade. Vem aí um pacote de resiliência, mas dizem-me que cada regulamento que é divulgado, vai ao encontro da austeridade".
Defende um novo foco na redistribuição, bem como o debate sobre o caminho para um rendimento básico universal, reconhece a importância de um imposto extra sobre as maiores fortunas, apesar do falhanço de experiências como em França, durante a presidência de François Hollande.
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Faz sentido não haver uma harmonia fiscal entre os 27 países da União Europeia? "Totalmente de acordo, a harmonia fiscal é um pressuposto, e é completamente absurdo que ela não exista".
Este é um livro que entende as finanças públicas como cruzamento de saberes distintos, "para estudantes de direito, mas sobretudo para o público em geral", numa sociedade que carece clara e notoriamente de literacia financeira.
Não ganharia o país em transparência se os presidentes do Tribunal de Contas não estivessem sujeitos ao veredito do governo ou do primeiro-ministro no sentido de serem reconduzidos? Paz Ferreira responde perguntando "qual seria a alternativa". O jurista especialista em finanças públicas entende que entende que os juízes nomearem-se entre si para tribunais superiores, "enviar-nos-ia para formas de corporativismo e populismo muito perigosas". Enaltece a qualidade de muitos juízes, mas não deixa de dizer que "há de tudo, como em todas as profissões e alguns desses juízes podem ser conduzidos por caminhos muito maus. Eu acho que é inevitável que haja essas nomeações em relação aos tribunais superiores".
O Tribunal de Contas, diz, "é absolutamente central no controlo do dinheiro público". Paz Ferreira, na linha da Sousa Franco, defende a redução da importância da fiscalização prévia por parte do Tribunal e afirma que algumas recusas de visto do Tribunal contribuem para criar uma barreira entre os cidadãos e o próprio Tribunal (TC). Acrescenta que o TC, dispondo dos necessários poderes de controlo, "não os está a utilizar suficientemente no sentido pedagógico e de impulso que seria desejável". Um desafio para José Tavares, que conhece bem "há quase quatro décadas". Estará o novo presidente do TC fragilizado pela recente polémica sobre a não recondução do seu antecessor? Paz Ferreira põe o dedo na ferida: "é muito difícil nos dias que correm alguém não ficar fragilizado quando toma posse em qualquer lugar, há sempre alguém pronto a descobrir um escândalo, que os cabelos loiros são pintados, há sempre qualquer coisa; quem se presta ao serviço público hoje em dia são verdadeiros heróis, ganham mal, por vezes muito mal e correm este risco de exposição na praça pública que, por vezes, é excessivo", embora aceite o escrutínio dos titulares de cargos públicos pela comunicação social.
Pobreza e desigualdade é o título de um dos capítulos quase no fim do livro; afinal, estamos ou não todos no mesmo barco? "É evidente que não estamos, basta ver aquelas listas da revista Forbes". Com cerca de 44% da riqueza mundial nas mãos das 50 maiores fortunas, em 2018 mais de 20%... 21,6% da população portuguesa em risco de pobreza ou em situação de exclusão social. Algo que Eduardo Paz Ferreira não considera aceitável numa democracia do mundo desenvolvido, tornando ainda mais longínquo o objetivo como titulava um livro publicado pelo mesmo autor, há três anos: "aqui estamos verdadeiramente no choque entre aquilo que desejamos e aquilo que vemos. Nada nos últimos tempos nos fez pensar que a sociedade seja mais decente do que era". Reconhece melhorias no país em vários países, da segurança social ao salário mínimo, "mas são coisas muito pontuais que não permitem recaracterizar a sociedade como uma sociedade decente, quando temos uma percentagem muito significativo de pessoas num nível muito próximo da pobreza". Mas para o professor catedrático, "males globais implicam respostas supranacionais".