Há muitas Lisboas! O slogan é turístico e incontestável. É assim esta zona de Carnide: outra Lisboa e desconhecida. Mas não se recomenda.
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De cima do muro que acompanha a estrada da Azinhaga do Serrado até se vê o Estádio da Luz. Estamos num dos corações de Lisboa, no bairro histórico de Carnide. "Isto aqui parece Marrocos", desabafa António Pereira. Vive há 50 anos no bairro e nunca soube o que é isso do saneamento básico.
O bairro dividido
O Teatro de Carnide, onde se fazem os ensaios da marcha, é uma fronteira: as casas à esquerda, na Azinhaga das Freiras, têm esgotos, ainda que passem por baixo das casas e dos quintais; quem vive do lado direito, na Azinhaga do Serrado, nem isso.
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São umas nove casas, incluindo um prédio com cinco inquilinos, e uns vinte moradores, quase todos tão antigos como a maioria das casas. Os canos de esgoto furam as paredes traseiras e escorrem ali mesmo para o chão.
O resultado visível é uma floresta de canas viçosas que chega quase ao primeiro andar, mas há o resto. "Não se admite! Numa cidade estas", indigna-se Luís Rodrigues, no seu tom bairrista, " Isto no verão não se aguenta, cá fora com o cheiro e lá dentro com os bichos". Fala-se em melgas e mosquitos, como em ratos e cobras.
Não há esgotos mas paga-se taxa de saneamento
Amílcar Quintas é quase recém-chegado, vive aqui há dez anos, numa casa que lhe custa 350 euros por mês. "Tenho os recibos de tudo, até da taxa de saneamento. Qual saneamento? Parece que andam a gozar com a gente".
Amílcar confessa que foi com as suas próprias mãos que arrancou um sinal de sentido proibido à entrada da sua rua. Uma vingança. "Tentei tratar do dístico de residente e disseram-me que não podia ter, porque esta estrada não pertence à EMEL. E ainda me avisaram que não posso estacionar ao lado de casa, a polícia pode multar-me!"
"Não me dão dístico de residente nem me deixam estacionar"
A tal fronteira, o Teatro de Carnide, também faz outras distinções. Do lado esquerdo há sinais de trânsito, um lugar para deficientes e, claro, uma máquina de estacionamento da EMEL. Do lado de quem não tem esgotos não há nada, mas também não podem estacionar.
Justa, realmente justa, só a estrada que liga as duas ruas. Trata todos por igual. É igualmente esburacada à esquerda e à direita; igualmente semi-asfaltada, de um lado e do outro, e o resto é terra.
Junto à máquina da EMEL há um cartaz verde. Foram os moradores que o mandaram fazer e, por muitas palavras, diz mais ou menos assim: enquanto não arranjarem as ruas nem ligarem os esgotos, não venham cá pedir dinheiro para estacionarmos aqui!
Perderam esta guerra. No pino deste verão, estes moradores de Carnide estavam entre os que encheram um autocarro, fretado pela Junta de Freguesia, para levarem a mensagem por escrito e de viva voz, aos Paços do Concelho. Foi depois de arrancarem os aparelhos da EMEL, de noite, à socapa, e de serem ameaçados de cadeia por vandalismo.
Todos os dias rangem os dentes à máquina das moedas, mas lá está. Decidiram antes entregar um orçamento participativo que a Câmara Municipal ainda há de votar. Lá está a proposta de destinar 150 mil euros do orçamento camarário para fazer aqueles metros de ligação à rede de esgotos e pôr um pouco de alcatrão no caminho. Não sabem se chega. Mas afinal, diz o Luís "Lisboa não é só a Fontes Pereira de Melo e a Avenida da Liberdade, Carnide também é Lisboa".
Os chineses andam aí
O bairro está na moda, as casas novas custam uma fortuna e há cada vez mais novos moradores. Não muito longe da Carnide sem esgotos, Luís já percebeu que eles vêm aí: "Aqui há dias fui dar com um grupo de chineses, a tirar fotografias a uma casa entaipada, ali no meio da mata. Eles compram tudo, isto para eles são trocos. Se calhar não sabem é que não há esgotos". Mas quer-lhe parecer que, nessa altura, o problema se há de resolver. "Posso é já não morar cá para ver".