Anotações e papéis deixados em livros por Eduardo Lourenço vão resultar num conto
As notas e papéis que o ensaísta, filósofo e escritor deixou em milhares de livros que ofereceu à Biblioteca da Guarda vão dar origem a um conto
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Uma investigadora está a passar em revista as anotações e objetos que Eduardo Lourenço deixou em milhares de livros que ofereceu à Biblioteca da Guarda, equipamento que tem justamente o nome do ensaísta, filósofo e escritor, que faleceu no dia 1 de dezembro, aos 97 anos.
"Uma grande parte dos livros tem anotações do professor e principalmente muitos papéis dele, por exemplo bilhetes de comboio, avião, recortes de jornais. Ele muitas vezes relacionava o assunto com o livro e então cortada o jornal e meti lá dentro. Há uma série de outras papeladas que ele aproveitava para escrever qualquer coisa que via no livro, lembrava-se e então escrevia", explica o bibliotecário António Oliveira, acrescentando que esse "novo espólio" foi descoberto no processo de catalogação das obras oferecidas.
As notas e os objetos encontrados até já deram origem a duas exposições. O material está nesta altura a ser objeto de um estudo.
"É uma residência literária que está a decorrer cá dentro [Biblioteca da Guarda] e a partir desse espólio está a ser preparado um conto", adianta, sem avançar mais detalhes.
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O resultado final só deverá ver a luz dia no próximo ano, altura em que se vai descobrir mais sobre o que deixou escrito Eduardo Lourenço e o conto que essas palavras ajudaram a criar.
O ensaísta ofereceu à Guarda parte da sua biblioteca pessoal. Entregou cerca de dez mil livros, em várias doações, a primeira antes mesmo de a Biblioteca da cidade mais alta ter ganho o seu nome, em 2008.
Neste equipamento existe "um cantinho" dedicado ao filósofo e autor. Fica mesmo ao fundo do primeiro andar, num espaço algo reservado e que o bibliotecário António Oliveira descreve como "uma biblioteca dentro da biblioteca".
"Temos cerca de cinco mil livros e revistas que nos ofereceu, sendo que a totalidade do fundo oferecido é cerca do dobro. Há uma parte que está ainda em tratamento, porque estas coisas demoram a tratar tecnicamente e porque essas doações têm sido ao longo dos anos", afirma, acrescentando que a Biblioteca da Guarda tem como missão "preservar" o espólio que recebeu.
"Em todos os livros que catalogamos e que colocamos ao dispor do público temos sempre a intenção de os plastificar para os preservar, estes fazemos o mínimo de intervenção para os preservar como eles eram. Queremos que eles perdurem assim durante muitos anos", salienta.
A maioria das obras entregues por Eduardo Lourenço e pela sua mulher é de literatura e filosofia. Este material só pode ser consultado no local e não pode ser levado para casa.
"Se fosse permitida a requisição domiciliária em pouco tempo seriam danificados, sendo que é um fundo que está sempre acessível ao público, ou seja, não podendo levar para casa ele está acessível e qualquer pessoa", garante.
Segundo o bibliotecário António Oliveira, alguns investigadores até já se deslocaram de propósito à Guarda só para os consultar.
"Já tivemos investigadores que vieram aqui pedir o acesso ao fundo porque há obras que gostariam de consultar e que não havia noutros locais", revela.
Muitas das obras são raras, pelas anotações que contém, mas também pelas dedicatórias que os autores escreveram para Eduardo Lourenço. As obras têm mensagens de Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Saramago, Jorge de Sena, Manuel Alegre, entre outros vultos da literatura portuguesa, que eram amigos do ensaísta.
Centro de Estudos Ibéricos nasceu há 20 anos de um desafio do filósofo
Eduardo Lourenço está desde sempre e vai continuar ligado à Guarda, à sua cidade como eles dizia inúmeras vezes. Mesmo ao lado da biblioteca com o seu nome encontra-se o Centro de Estudos Ibéricos. O projeto nasceu há 20 anos precisamente a partir de um desafio lançado pelo premiado autor num discurso proferido nas comemorações dos 800 anos da atribuição do foral à Guarda.
"Eu penso que nesta cidade se podia imaginar qualquer coisa como um Instituto da Civilização Ibérica, onde os nossos laços comuns que só Oliveira Martins foi capaz de aprender, fossem repensados para que nós soubéssemos efetivamente quem somos e onde estamos, não tão isolados como imaginamos, mas sempre sob o olhar dos outros, para sabermos quem é o outro, com quem devemos dialogar e assim nos defender de uma maneira diferente da que foi a nossa durante séculos", declarou na altura, num texto ao qual deu o nome "Oito séculos de altiva solidão".
Eduardo Lourenço pensou e a obra nasceu. A associação transfronteiriça é composta pela Câmara e Politécnico da Guarda e pelas Universidades de Coimbra e de Salamanca. Já editou muitas obras. Também criou o prémio Eduardo Lourenço instituído em 2004 e que visa galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante nas áreas da cultura, cidadania e cooperação ibérica. O centro apoia também investigações nos dois lados da raia. No fundo, visa fomentar a cooperação transfronteiriça.
O centro tem como diretor honorífico Eduardo Lourenço. Antes mesmo de o autor ter morrido no início do mês, a instituição já tinha programada a criação de um espaço de memória na sua sede.
"É um pequeno memorial onde vamos por as peças pessoais dele, aquilo que ele nos deixou, condecorações, insígnias, diplomas, doutoramentos honoris causa, o Prémio Camões, o Prémio Pessoa", revela Alexandra Isidro, coordenadora da associação.
Eduardo Lourenço inaugura Caravana Literária
Não é pelo seu desaparecimento este ano que a Guarda se lembra do ensaísta, ele que é uma das figuras maiores do distrito. É pela sua relevância que Eduardo Lourenço vai ser o autor em destaque na primeira edição da Caravana Literária - Festa de Literatura e Pensamento da Beira Interior, que arranca no próximo ano e que surge integrada na candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura em 2027.
"Este projeto cultural surge quase como uma obrigação e num sentido de missão para que a obra de Eduardo Lourenço seja prolongada e seja também integrada em ações artísticas de outras áreas disciplinares que possam vir a ser exploradas nesta edição da Caravana Literária", afirma vice-presidente da Câmara Municipal e vereador da cultura, Vítor Amaral.
A Festa de Literatura e Pensamento da Beira Interior vai passar pela capital de distrito, mas também pela terra que viu nascer Eduardo Lourenço, S. Pedro do Rio Seco, em Almeida, entre outras localidades.