"Aos 3 anos, ouvi o que o Candé ouviu antes de ser assassinado: 'Ó preta, vai para a tua terra'"
Várias vezes premiada, a atriz portuguesa Isabél Zuaa revela à TSF que já se sentiu alvo de preconceitos, mesmo no mundo das artes, e defende que Portugal é um país racista. Mas apresenta um antídoto contra o problema.
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Isabél Zuaa cresceu a ouvir o pai dizer que o saber não ocupa lugar e que o emaranhado das palavras desconhecidas podia ser desfeito com um dedo indicador a percorrer o dicionário. O significado de racismo, no entanto, chegou-lhe de uma forma mais empírica, sem anúncios de página. E "o racismo faz mal, magoa muito". Podia ler-se, preto no branco, num contraste harmonioso, fosse Isabel a escrever. "Eu não fui ler no dicionário a palavra racismo quando era criança, mas acho que nem foi necessário. Era uma realidade que nós tínhamos. Não era só essa a realidade que nós tínhamos, e é importante dizer, para que as nossas experiências não fiquem só associadas ao racismo, ao preconceito."
Cresceu a dançar - uma "das maiores alegrias" da vida - e a cantar. "Brinquei, fui tudo o que eu quis, vesti tudo o que eu quis, comi tudo o que eu quis, e é uma bênção", conta a atriz portuguesa, em entrevista ao programa Botequim, da TSF. Queria ir jogar à bola de unhas pintadas e, com dois irmãos mais velhos, aprendeu e ensinou a ser feminista desde o berço.
Foi uma infância feliz, mas não sem sobressaltos. "Sim, aos três anos, ouvi o que o Bruno Candé ouviu antes de ser assassinado: 'Ó preta, vai para a tua terra.'" Isabél Zuaa não sufocou a dúvida entre os lábios. "Ó mãe, qual é a minha terra?" A resposta repôs a verdade: "A tua terra é aqui, filha, a tua terra é aqui."
Histórias, canções, danças, metáforas, partituras, novelas brasileiras. Na vida e nos sonhos de Isabél Zuaa, cabia tudo, um sem-fim de espaços de brincar e crescer. E ainda cabe, aos 33 anos de idade. "Eu podia ser tudo. Eu podia fazer de homem, de nova, de velha, de mulher, de bebé. Essa coisa de poder ser tudo sempre foi um fascínio para mim."
Já no liceu, deixou para trás a disciplina de Francês. Foi "uma dádiva", porque dessa forma chegou ao Chapitô, onde uma professora lhe apontou o caminho do Conservatório. "Inscrevi-me, passei e depois nunca mais parei", recorda. "Poder na minha arte falar sobre a minha avó... Isso é maravilhoso. Na minha arte poder falar sobre o meu bairro, sobre as músicas de que eu gosto..."
Isabél Zuaa é filha de mãe angolana e de pai guineense. Sofreu na pele, e da pele, o preconceito: "Pelo facto de muitas vezes não me considerarem portuguesa, mesmo tendo nascido em Lisboa, no hospital Dona Estefânia."
"Consideram-me sempre estrangeira no meu próprio país, desde as coisas mais simples do dia-a-dia, como chegar ao aeroporto e questionarem o meu passaporte", aponta a atriz. A não sentir-se perdida ajudaram "a sorte e o privilégio de ter pais completamente conscientes", que transmitiram "uma grande autoestima" à medida que ia crescendo.
O "imaginário do que é ser uma mulher portuguesa"
Hoje, a artista reconhece que a riqueza das experiências que a marcaram só acrescenta a um mundo de espetáculo muitas vezes cinzento na diversidade. "Podemos observar pela nossa televisão a falta de diversidade dos corpos e claro que para fora também não passa que há essa diversidade toda em Portugal, não só de origem africana, mas também de origem asiática, de países com os quais Portugal manteve uma relação e em que Portugal esteve. Quando a relação é inversa, acontece essa repulsa."
Em 2010, quando foi para o Brasil, "o facto de ser uma portuguesa negra causava uma estranheza", devido ao "imaginário do que é ser uma mulher portuguesa", repercutido pelas artes e cultura.
"Achei ingenuamente que no mundo das artes não iria encontrar tantas adversidades relativamente à cor da pele, porque é um mundo de seres sensíveis que trabalham com matéria sensível, com o corpo, com a mente e com o espírito." O preconceito, enraizado no mundo do espetáculo, que não está fora, mas dentro da sociedade, é evidente em várias situações, elenca a atriz. "O facto de nós chamarmos de atrizes negras faz com que a sua profissão esteja associada ao seu biótipo, à sua cor de pele, e isso não acontece com a maioria vigente. Quando vemos num anúncio 'procura-se atriz', parte-se do princípio de que é uma atriz branca. São essas as convenções que têm de ser mudadas."
Isabél Zuaa acredita que o pensamento de quem escreve, de quem encena e de quem dirige tem de começar a mudar. "Se estamos à procura de uma atriz podemos nomear características de idade, sotaques, mas, sempre que é necessária uma atriz com o meu biótipo, ele vai estar sempre especificado, ou o biótipo de não-branco vai ser sempre especificado. Porque o branco é a norma, não é?"
"Às vezes, é só a cor que de alguma forma nos une e as situações são completamente diferentes. As pessoas veem só uma mancha preta e acabamos por fazer muitas vezes personagens estereotipadas e repletas de preconceitos."
"Ser negra não é a minha profissão"
Atriz, diretora, dramaturga, cantora, performer, e "também negra". Isabél Zuaa já soma distinções, entre as quais o Prémio Guarani, em 2017, como artista revelação. Em 2020, recebeu o prémio de melhor atriz no Festival de Gramado, com o filme "Um Animal Amarelo", e, no mesmo festival, venceu o prémio de melhor atriz, com uma curta-metragem. Também recebeu um prémio de atriz secundária com o filme "Malandro de Ouro".
Apesar de já notar mais "cuidado nas chamadas para casting e nos roteiros e guiões", a artista diz que é preciso mais para neutralizar tendências de anos, décadas, séculos. A falta de representatividade é uma forma de podar sonhos, assinala a atriz. "Nós hoje comemoramos a existência de um pivot negro. Eu vou ficar feliz quando a diversidade fizer parte do nosso quotidiano. A representatividade é extremamente importante, cria imaginário. Cria convenções, cria gestos, cria pensamentos, e permite que outra criança veja que é possível. Há ali uma atriz negra e ela também pode acreditar no seu sonho. Dar a uma criança a possibilidade de sonhar..." Isabél Zuaa sente essa responsabilidade: a de representar o que as novas gerações podem também concretizar. É um papel que, como outros, lhe assenta como uma luva.
"Não quero perpetuar a ideia da mulher escravizada submissa. Não tenho problema nenhum em fazê-lo. Eu tenho um problema se for só fazer isso. Eu faço de rainha, faço de Lilith, faço de enfermeira, faço de advogada... No Brasil! Aqui em Portugal ainda estamos à espera de milagres."
"Temos de nos desconstruir"
Várias vezes, conta, Isabel educa e adota uma postura didática, em resposta a uma atitude preconceituosa. "Temos todos de fazer uma desconstrução, não só os que sofrem as opressões, mas também os opressores", afirma, sem condescendência. À TSF, a atriz explica também que, desde a formação académica, com destaque para os livros de História e os filmes, é necessário repensar o "imaginário comum sobre determinados corpos".
"Cabe-nos a nós, se quisermos mudar, primeiro identificar essas questões e depois trabalhar sobre elas, porque tendo consciência conseguimos trabalhar", sustenta. Isabél Zuaa aponta um caminho: enfrentar, para aprender, e não ter medo de olhar para as feridas. "Se nós recusamos e ficamos nessa coisa moralista de dizermos que somos boas pessoas, que para nós as pessoas são todas iguais... Na verdade, não somos todos iguais, e está tudo bem também. Não há problema em sermos diferentes. As pessoas diferentes têm é de ter oportunidades iguais."
Ainda hoje, a atriz passa pela experiência de "entrar num shopping ou entrar num restaurante ou numa farmácia e as pessoas sentirem-se constrangidas ou desconfiadas", e, admite, nem sempre é fácil. "Já tenho tanto para fazer e ainda tenho de tentar ressignificar esses gestos e esses pensamentos..."
"As pessoas têm preconceitos sobre as minhas vivências, sobre as minhas experiências e a minha existência enquanto corpo negro. As pessoas - não são todas, felizmente - veem um corpo negro e imaginam: 'come aquilo, gosta de dançar aquilo, não sabe isto'..." Há ideias preconceituosas que se vão perdendo pelo caminho, mas muitas subsistem e contribuem para uma visão asfixiadora da realidade, argumenta a atriz. "Nós somos múltiplos e diversos e temos histórias completamente fantásticas, histórias mais tristes, e a nossa vida não é só racismo, nós temos muita resiliência. A todas as questões adversas que nós temos vindo a passar, de geração em geração, nós somos completamente resilientes."
A morte "cruel" de Bruno Candé
Com a pandemia, reflete Isabél Zuaa, muitas pessoas pararam para refletir sobre o sentido da vida e sobre as "barbaridades" tantas vezes cometidas, tantas vezes replicadas, como o caso do homicídio de Bruno Candé. "Foi uma morte em praça pública, com testemunhas, com ataques racistas, como um crime de ódio. São questões e armas ainda do ultramar, é muito cruel e não dá para fingirmos que não aconteceu."
"Não é a primeira vez que acontece, mas talvez o facto de estarmos tão sensíveis e de pensarmos na vida de outra forma, de termos desacelerado e estarmos em casa..." O ator Bruno Candé morreu a 25 de julho de 2020. Isabél Zuaa não consegue deixar de fazer o paralelismo com o que aconteceu nos Estados Unidos da América, onde a população se mobilizou nas ruas em protesto pela morte de George Floyd às mãos da polícia. Foi a situação limite, vivida em todo o mundo, que desencadeou uma ponderação e uma mobilização mais amplas. A génese do problema tem raízes profundas: "Só o facto de tu existires já é uma questão para outra pessoa, e uma questão que fere a tua integridade."
Isabél Zuaa também defende que a morte de Bruno Candé forçou o mundo das artes a olhar-se por dentro. Dos concursos de miss aos protagonistas televisivos, a repetição de padrões perpetua o lugar marginal. "Vou crescendo e vou compreendendo outras questões, como na televisão o cabelo ter de ser sedoso e comprido e nas lojas de cosméticos não haver coisas para o meu tom de pele. Vamos crescendo e vamos entendendo as convenções do outro."
"O corpo da mulher negra é muitas vezes exotificado", acrescenta. "Lembro-me de ler nos livros de História 'ouro, marfim e escravos' e isso deixar-me completamente incomodada. Isto é um sequestro, as pessoas estão a falar de matérias-primas e de corpos humanos na mesma linha, e são pessoas sensíveis, do bem e da ética."
"Como é que um povo pode ser nobre se não reconhece a nobreza no outro só por ser diferente?"
Evoluir sem medo, querer aprender todos os dias, "para que as próximas gerações não cometam os mesmos erros que os nossos avós". É isto que pede Isabél Zuaa ao país. "As pessoas sentem-se ofendidas. É racista, tudo bem, Portugal é um país racista. Está em desconstrução? Sim, algumas pessoas, sim. Outras, não."
"Se não reconhecermos esse racismo estrutural, vai ser impossível combatê-lo, porque a pessoa diz: 'Eu não sou racista, eu acho que as pessoas são todas iguais.' Mas isso não traz evolução, e nós estamos a querer evoluir. Nós não estamos a culpar ninguém, estamos todos a tentar evoluir." É só isso, conclui a atriz.
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