Aos 91 anos, sonha ir à Antártida. Jorge Paiva, o "lírico" que enviou milhares de postais em defesa do ambiente
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Durante décadas, o biólogo Jorge Paiva correu mundo em busca de novas plantas e tornou-se num intransigente defensor do Ambiente. Deu palestras e enviou milhares de postais de Natal com alertas para más práticas ambientais. Aos 91 anos, sonha com uma expedição à Antártida, o único lugar do mundo onde nunca esteve.
Porque é que decidiu acabar com os postais de Natal que escrevia há 35 anos?
Bem, além de ser uma despesa enorme, porque eu envio entre 4 a 5 mil, cheguei à conclusão que a minha atividade cívica ambiental… eu fiz mais de 2.500 palestras em escolas e cheguei à conclusão que os miúdos ficam muito sensibilizados, as pessoas recebem o postal e ficam sensibilizadas, mas depois esquecem.
Quando crescem…?
Quando crescem, esquecem. E mesmo as pessoas adultas esquecem. Particularmente os miúdos esquecem, porque são muito incentivados para o consumismo, para serem integrados numa sociedade consumista, que nos consome. Devo dizer-lhe que fiz agora uma experiência: eu não costumo ver televisões, particularmente, os telejornais. E resolvi, na época festiva, ver.
Arrependeu-se….
Um autêntico bombardeamento de consumismo. Consumismo, consumismo, consumismo! Compram-se coisas que as pessoas nem sequer utilizam; e comer avantajadamente, e beber avantajadamente! E, pronto, a sociedade está assim.
É por isso que escolheu o título “ambiente e desilusão” para este último postal de Natal?
Exatamente. É uma desilusão. Porque, por exemplo, o que está a acontecer, estes incêndios nos Estados Unidos… as pessoas falam nas alterações climáticas… são, realmente, responsáveis, numa parte, por isso, mas não só. Eles têm casas de madeira! Entende-se que tenham casas de madeira no meio da floresta?! É por isso que arderam! E a mim, o que me dói, é que, neste país, Portugal, há atualmente um incentivo às pessoas a comprarem casas de madeira. Isso devia ser expressamente proibido, porque estamos em pleno aquecimento global!
Neste postal diz que foi uma “luta improfícua”; cita Camões, dizendo que, se ele foi um “valoroso lírico”, o Jorge Paiva foi um “lírico irrealista” e que o seu “desalento é enorme”. É um homem sem esperança, no que respeita ao Ambiente e a salvação do Ambiente?
Neste momento não tenho esperança nenhuma porque…. Não costumo ver e agora vi alguns políticos a falarem nas televisões e nenhum tocou nos problemas ambientais. Nenhum! Isso é inconcebível! Porque nós estamos em plena alteração climática muito grave já. E portanto, inundações como as que houve em Espanha e incêndios destes, devastadores. As pessoas já perceberam, mas não fazem absolutamente nada.!
E, porque é que acha que isso acontece? É só o consumismo?
É só consumismo, mas a propaganda se serve para isso, para as pessoas não pensarem nisto. Não terem consciência! Eu costumo dizer que a espécie humana é uma espécie inteligente. O oposto da inteligência é a burrice, mas é uma espécie estúpida. Porque está a dar cabo da gaiola, onde está metida!
Intencionalmente? De alguma forma?
Exatamente!
Como é que nasceu a ideia de alertar para o estado do ambiente, enviando postais de Natal? Já foi há muitos anos, eu sei, mas de certeza que se lembra bem.
Já foi há 35 anos. Porque sei que muitos professores dão aulas com eles. E estão em inglês, porque havia colegas meus, ingleses, que aproveitavam os temas dos postais para falarem com os alunos. Um colega meu, da Universidade de Copenhaga, dava aulas com eles, aulas de problemas ambientais.
E como é que escolhia os temas?
Era consoante o que me ocorria.
A dada altura, percebi, ali por volta anos 2010, 12, 13, por aí, que que teve vários postais dedicados à biodiversidade... Como é que este ano decide que o tema é a biodiversidade, e no próximo é outro… e anterior foi um outro. Nunca lhe faltou assunto, pelo que percebo….
A biodiversidade, porque nós, sem os outros, não vamos conseguir sobreviver. É preciso ver que , às vezes, as pessoas com com muito dinheiro, são as pessoas que pensam que o dinheiro resolve tudo. E eu costumo dizer: 'Olha, pra já, não consegues comprar a comprar a morte, vais morrer com os outros.' E eu já fui “abandonado”, sem nada, sem dinheiro. Vivi duas semanas e tal, quase 3 semanas na Amazónia. Comi o que os macacos comiam, comi peixe cru. Para demonstrar que, sem dinheiro, pode-se sobreviver. Comi, fundamentalmente, vegetais. E comi folhas, não é? Se o animal come as folhas, é uma planta… e, além disso, sou botânico e fiquei ao pé de um rio com água limpa.
Voltando ao seu último postal... a fotografia que lhe juntou é um narciso, cujo nome é “narcisus poeticus”. Isto, num postal em que cita Camões e em que se declara um lírico irrealista. Porque é que escolheu esta flor para o seu último postal? É por acaso, não?
Não. Deu-se a coincidência de eu estar a escrever um livro, que a Universidade (de Coimbra) me solicitou, sobre as plantas na obra completa de Camões, em todos os poemas de Camões. E uma das plantas que eu lá identifiquei é essa, que ele nunca viu, mas que ele cita. Por causa de um Deus que era Narciso. Deu-lhe o nome “narcisus poeticus”, porque era o Narciso que os poetas citavam nos seus poemas. É um Narciso muito comum na Europa. Nós não temos, vem até aos Pirinéus, essa fotografia é dos Pirenéus. É muito bonita.
Como é que escolhia as pessoas a quem enviar estes postais? É muita gente! Todos os anos, cerca de 5000 destinatários em todo o mundo. Enviava para quem e como é que escolhia?
Além dos ambientalistas, atletas, professores e, às vezes, pessoas comuns que pediam.
Professores, políticos...
Não, políticos nunca mando! Não vale a pena falar com os políticos. Não falo. Não. Os políticos nunca leem o que nós escrevemos.
Portanto, basicamente enviava para a comunidade escolar e universitária.
É claro, mas fundamentalmente professores desde o ensino do ensino primário ao ao universitário.
Imagino que tenha tido respostas; algumas, pelo menos…
Respondiam sempre.
Sempre?
Sempre, sempre. Alguns, agora, estão a incentivar-me a não desistir e tal. Não sei... vamos ver.
Qual foi assim a resposta que mais o marcou?
As de alguns ambientalistas. Dizem que tenho razão, que também se sentem desiludidos, recebi várias dessas. Também sentem que lutam, mas que os resultados, a percentagem de pessoas que ficam sensibilizadas e que depois atuam é mínima. A gente vê as pessoas amigas a fazerem os disparates. Aliás, eu viajo muito entre Almada e Coimbra, porque continuo a trabalhar em Coimbra. E vejo, constantemente,... as pessoas sabem que não devem fazer isso... mas os fumadores, antes de entrarem para o barco, deitam o resto do cigarro para o rio. E eu pergunto a mim mesmo, como é que um indivíduo que não se respeita a si próprio - porque um fumador não se está a respeitar a si próprio - vai respeitar o Ambiente?
Disse-me que nunca enviou para políticos, mas… nunca tentou sequer? Até para poder dizer-lhes: “Eu escrevi-lhe e não me respondeu”?
Não. Quando eles me chamam, eu falo com eles, mas eu, procurá-los, não, não faço isso. Eu falei com vários Presidentes da República sempre porque me chamaram. Mas houve um que teve uma ação preponderante ali durante mais de uma semana. Eu até lhe disse: “O senhor, nesta semana, fez mais do que nós, porque todas as televisões, durante uma semana, estiveram a falar em problemas ambientais.
Quem foi?
Foi o Dr. Mário Soares, com a Presidência Aberta do Ambiente (em 1989), em que, a certa altura, pediu-me…. “você diz que o país está ocupado com eucaliptais e tal, mas eu gostava de ver…”. Eu respondi “não o posso levar porque, muitos sítios, não se vai de automóvel”. “Então vamos de helicóptero!”. E eu fui de helicóptero com ele e com as televisões, mostrar o país, que começava a ter incêndios no verão, sucessivos. Porque uma arborização monoespecífica é sempre mais perigosa do que uma arborização com várias espécies de árvores. E, além disso, estava já a começar o aquecimento global. Já se sentia. De maneira que eu começámos a ter incêndios no Verão, aquilo a que eu chamo os “piroverões”.
O que é que mostrou a Mário Soares e o que é que ele disse?
Mostrei-lhe,de helicóptero, algumas zonas que não se vê outra coisa senão floresta, monoespecífica.
Eucalipto?
Eucalipto.
O eucalipto é, de facto, o grande culpado dos incêndios em Portugal?
É um dos grandes culpados, mas não são propriamente até as celuloses, que essas têm muitos cuidados. O problema é que as pessoas começaram a eucaliptar em sítios onde não podiam eucaliptar.
A minha dúvida é: se é o grande culpado ou se é apenas uma espécie de bode expiatório, porque já tenho ouvido opiniões tão diferentes sobre isto…
É um dos culpados. Mas, portanto, (com Mário Soares) as pessoas falaram durante uma semana sobre isso, todas as televisões, jornais e imprensa e a rádio. Mas depois... esvaiu-se tudo. E depois, acontece o seguinte: o Ministério do Ambiente é um ministério pobre. Por exemplo, o Instituto da Conservação da Natureza não pode fazer nada, porque não tem capacidade, pessoal para trabalhar e estão transformados em administrativos. Para darem pareceres.
O que é que podia travar essa extinção global anunciada, de que já falou?
Era preciso que, quando os governantes mundiais das nações se reúnem - e já se reúnem há 50 anos nas COP… ainda agora vai haver uma...
…ainda agora houve uma….
...quando chegam a uma COP, se olham para trás e veem que não cumpriram aquilo que tinham legislado….
São inúteis essas reuniões?
Saem dali e não fazem absolutamente nada.
Não servem para nada?
Não têm servido para nada, absolutamente para nada. Mas, inclusivamente, há um dirigente político, o Secretário-Geral (da ONU), António Guterres… Nós ouvimos o Senhor Presidente da República e o Primeiro – Ministro, nas mensagens de Ano Novo e de Natal… Guterres foi, desses dirigentes todos, o único que falou em problemas ambientais e no risco que a espécie humana está a correr. Para nada, porque não consegue resolver nada.
A voz dele também não é escutada?
Não é escutada e, inclusivamente, ele está numa organização que não é democrática. Basta ver o veto. Cessa a organização.
Mas ele tem feito aquilo que lhe compete?
Tem feito o que lhe compete, tem alertado constantemente. Mas não tem tido resultados. Vai ser um desiludido quando sair. Como eu.
Alguma vez lhe mandou um postal?
Não, nunca mandei.
Porquê?
Mandei-lhe uma vez um e-mail, mas acerca de um outro ambientalista. Nem sequer resposta tive, mas já já esperava isso. Por que os políticos não leem nada. Eles têm os assessores que não lhes deixam chegar ao conhecimento. Têm mais que fazer do que estar a aturar ambientalistas.
Em 1990, no postal desse ano, que era o primeiro, escreveu: “Se os nossos governantes continuarem teimosamente a não querer ver o que está a acontecer, caminharemos rapidamente para um amplo deserto montanhoso de pedras”, referindo-se a Portugal e não apenas. Isto podia ter sido escrito hoje.
Exato, exato. E eu tenho um postal posterior a isso que mostra uma fotografia que eu tirei numa montanha portuguesa. As montanhas portuguesas estiveram todas cobertas de floresta até ao topo com a espécie humana cá. Quando D. Afonso Henriques tornou isto independente, a Serra da Estrela, estava coberta de floresta até ao topo. E fomos derrubando e não fomos plantando, não é? Tenho uma fotografia desse postal, em que eu estou no topo de uma montanha que esteve coberta de floresta, mas que nem sequer um arbusto tem hoje. Estamos a transformar o país, as nossas montanhas do Norte, em desertos de pedra e, portanto, nem solo têm para segurar a água das chuvas. Cada vez há-de ser pior, com enxurradas piores, que não temos solo para absorver.
Mas há alguma coisa que possa travar esta extinção?
Era arborizar com velocidade e não estamos a fazer isso. Mas isso, com governos que só pensam nos problemas económicos, não é viável. Não é viável para um governo gastar dinheiro tanto dinheiro, mas agora já se está a arborizar. Neste momento, há um projeto que estão a arborizar a Serra do Açor, mas com várias espécies de árvores. Mas isso é preciso fazer em todo…
E faz sentido isso? É um caminho?
É um caminho, um dos caminhos é esse. Eu, inclusivamente, uma vez levei uns colegas meus da Universidade de Coimbra aos Pirenéus. E, a certa altura, disse-lhes: “ o que é que vocês têm à vossa volta? Floresta. Estamos a cerca de 3000 metros e isto está coberto de floresta. A Serra da Estrela só tem 2000 e está mais próxima do mar. Portanto, tem um clima menos agreste que isto e não tem lá árvore nenhuma no topo”. Foi demonstrado que a Serra da Estrela teve floresta até ao topo.
Nos últimos 60 anos, participou em inúmeras expedições. Se tivesse que escolher uma, que o marcou mais, qual seria?
Ah! Talvez a primeira, nos anos 60, foram 8 meses metido dentro da floresta.
Onde? Em África, não é?
E nunca usei, eu nunca usei uma arma. Praticamente, não comi carne durante 8 meses. Éramos 4, comemos conservas e vimos a caça a passar. E comíamos galinhas de vez em quando, quando passávamos por aldeias, comprávamos galinhas.
E como é que era ter pela frente leões, leopardos, animais selvagens?
Eu nunca usei uma arma. É sabermos comportar-mo-nos. As pessoas pensam nas feras, no rugido dos leões, mas não são os mais perigosos. Com quem eu mais tive problemas foi com búfalos.
Problemas, por exemplo, o que é que aconteceu?
Tive de ter muita cautela, porque, com o fogo, podia investir e investiu algumas vezes.
Teve de fugir.
Sim, mas eles não sabem a árvores. O leopardo é que sobe às árvores.
E essa primeira expedição foi especial porquê? Quer contar-me alguma coisa que lhe tenha ficado na memória?
Foi uma expedição que foi muito marcante, porque se colheu muito. Muito, muito material.
Muitas flores, muitas plantas.
24.000 exemplares de herbário. Estão distribuídos por vários. A coleção original ficou em Lisboa e estão distribuídos por outros herbários. Pelo Museu Britânico, o Kew (em Londres), Paris, Viena. Foi muito marcante, foi onde eu colhi mais material.
Tem muitas plantas com o seu nome…
São colegas que dedicam, às vezes, espécies...
Tem alguma que lhe seja mais querida?
Ah! Talvez o “Hyacinthoides paivae”, que é uma planta nossa aqui, portuguesa e espanhola. O engraçado é que uma vez fui fazer… só para ver o disparate que são estes passadiços… fui fazer os Passadiços do Paiva. E, à entrada, está uma fotografia dessa planta em ponto grande e está dedicada, não ao rio Paiva, mas a um botânico português que, por acaso, era eu. Nós temos muitos patronímicos da natureza: é o senhor Carvalho, é o senhor Pinheiro, e os senhores Paivas, da zona do rio Paiva. O meu pai era mais ou menos da zona centro, próximo de Oliveira do Hospital. E há muitos toponímicos também, tirados da natureza. O senhor Carvalho é as carvalhosas; o teixo, o senhor Teixeira.
Se fosse uma planta ou uma flor, qual é que gostaria de ser?
Não sei, não sei, talvez um narciso.
Porquê?
É uma flor muito bonita que nós temos. Temos várias espécies, algumas próximas da extinção, porque os países que usam muito a floricultura e que se ornamentam com flores, como a Holanda e como a Inglaterra, vinham cá. Antigamente não se reproduziam as plantas com a velocidade com que hoje se reproduzem e vinham cá buscar. Esses narcisos não tinham regras e quase extinguiram alguns. Agora isso já não é assim tão fácil de fazer. Além disso, agora, de um bolbo, fazem milhares. De maneira que já não há tanto esse problema.
Dessas expedições que fez, que foram muitas, nestes últimos 60 anos, há algum lugar onde não tenha ido e ainda que ainda gostasse de ir?
Há só um lugar, mas não tem plantas. Eu até tenho um colega, jovem, que vai lá todos os anos, a esse lugar, porque ele estuda o comportamento dos pinguins e eu disse-lhe… “Ó Xavier! Leve-me, pá, numa dessas expedições….”...
Antártida...
Sim, e ele disse-me: “ó pá, não há lá plantas”. E eu não tenho dinheiro para fazer expedições dessas, não é? Porque é o único continente onde não pus o pé.
Mas não há lá plantas, mas… O Jorge também é biólogo, portanto….
Não há, não há. Mas há nos arredores… antes de lá chegar, aquelas ilhas todas, têm plantas até muito engraçadas...
Mas se o desafiassem iria? Ainda se sente com forças para ir?
Por uma coisa dessas ia, por uma coisa dessas ia!
Para outras, não…?
Agora já não vale a pena, não é? Sabe que... estar acampado numa floresta tropical de chuva… Floresta em latim é “pluvia”; chuva é “pluvia”. É a “pluvissilva”. Está sempre a chover. É escusado levar agasalhos, não vale a pena, está sempre a chover.
Como se sobrevive numa circunstância dessas? Nós, que somos tão urbanos...
Porque é preciso ver que não é uma chuva tão fria como a nossa. A nossa é de inverno.
Mas entranha-se, é água!
Uma vez, eu fiz formação a professores fora de Portugal. Levava-os a ver ecossistemas que não existem cá, que é para eles ficarem com uma ideia de que há uma diversidade de ecossistemas brutal. Depois, pediam muito para irmos à Amazónia. Para mostrar a Amazónia, sem muita influência antrópica, era preciso fazer quase 1000 km a pé. Mas podia levá-los, porque a pluvissilva equatorial, existe à volta de todo o Equador, do globo todo. E, portanto, há em África, florestas iguaizinhas, simplesmente as espécies não são as mesmas, mas às vezes as famílias das plantas são as mesmas. Há na Ásia. Portanto, em toda a volta do Equador. E eu resolvi levá-los a um sítio onde ainda há floresta tipo amazónica, floresta equatorial, ainda não muito destruída pela espécie humana. Porque aí há montanhas, há floresta desse tipo. Até 1400 metros, os portugueses derrubaram um bocadinho, para plantarem o cacau e o café, particularmente o cacau. Mas depois, dos 1400 até aos 2000 metros, é muito difícil lá chegar. E então eu levei-os e, nesse dia, foram até aos 1400 metros, porque, a partir dali, viam perfeitamente fetos arbóreos, begónias, lianas e essas coisas todas. E, portanto, podia-se lá ir, desde que começássemos a caminhada de manhã cedo e voltar. Sugeri que levassem gabardinas, se quisessem, senão iriam ficar todos molhados. Não quiseram acreditar.
E ficaram.
Pois! Foi chuva do princípio ao fim. Sempre a chover
Alguma vez teve medo, nessas expedições?
Não propriamente medo, mas receio que, realmente, o animal pudesse… Foi numa serra no noroeste de Moçambique. Eu estava a colher (flores e plantas), estava afastado dos meus colegas. Ouvi um barulho muito grande. Mas não havia animal nenhum, porque nessas florestas não se vê a um metro… a floresta é muito densa. E depois é que vi que era um elefante que andava por ali. Felizmente ele estava do lado contrário, com vento favorável, ele não deu por mim. Depois eu afastei-me.
Mas, uma vez, também na África Oriental, nessa expedição, não havia ainda telemóveis e nós levámos um apito destes dos árbitros, para sabermos onde estávamos uns e outros. Éramos três e depois tínhamos sempre pessoal da região. E, a certa altura, com um binóculo, vimos, num vale, que uma palmeira devia estar com flor e fruto, do outro lado do vale. Resolvi descer e, se eu apitar quando lá estiver, era sinal de que os outros podiam vir para colher as flores e os frutos da palmeira. E assim fiz.
Quando eles vinham já próximo de mim, eu ouvi um grande barulho. “Por onde é que vocês passaram? Caiu alguma árvore?” Não. Era um leopardo. O leopardo esteve em cima da árvore a ver-me passar. Passei por baixo dele, portanto, ele não me fez mal nenhum, porque eu nem sequer dei por ele. Mas quando viu aquela gente toda, resolveu fugir. Portanto, eu passei por baixo do leopardo sem dar por isso!
Professor, como é que alguém com a sua a vida inteira de atividade cívica em defesa do ambiente, vê movimentos como, por exemplo, a Climáximo e as suas ações?
Vou-lhe referir outro caso que a imprensa, a rádio e a televisão, muitas vezes, referem. O fundamentalismo é prejudicial sempre, em qualquer área. No futebol, na política, em qualquer área. Então…. criticam muito os fundamentalistas (que atiram tinha contra quadros nos museus, por exemplo)… eu também sou contra, mas o que me dói é que não dizem o que fazem os anti-ambientalistas, aqueles que não gostam daquilo que fazem os ambientalistas! Alguém disse que, em 2023, foram assassinados entre 17 a 20 ambientalistas em todo o globo? Isso são os que se contam, são os que se conhecem. Isto é muito mais grave do que atirar tintas e ninguém refere!
Professor... aos 91 anos, continua a trabalhar.
Continuo, continuo. Agora estou a ver se acabo esse livro. O Camões era uma mente brilhante e de uma cultura vastíssima. E é preciso conhecer a obra completa dele e saber o que ele consultou. É preciso ver que ele não tinha computadores. Tinha muito poucos livros, tinha era manuscritos, era brutal e devia ter uma memória também brilhantíssima. Ele demorou 15 anos a escrever “Os Lusíadas”.
Mas, ainda agora, esqueci-me de lhe dizer que o maior risco nessas expedições, são as doenças tropicais. Eu apanhei várias vezes malária, aliás, já propus a um colega mais jovem, escrevermos um livro, um pequeno livro, com os biólogos. Estou a falar em botânicos e zoólogos que morreram em expedições com doenças tropicais e com acidentes.
Teve várias vezes malária...
Tive malária umas 3 vezes. Ainda não havia guerra colonial, quando isso me aconteceu. Fui a uma exposição tropical e vim e comecei a urinar sangue. Fui ao hospital em Coimbra. “O que é que será que, o que não será?”. Na altura, não se via nada. Depois até fui para a oncologia a ver se havia alguma coisa, mas nada. E aquilo desapareceu. Hoje sei o que é que tive. Foi uma infeção por um parasita que me entrou no corpo. Entrou pelos pés. Eu tinha estado num pântano, a colher plantas, e fui com umas botas de maneira a não me molhar até à cintura. A certa altura, ouvi um barulho e tive receio que fosse um jacaré. Virei-me de repente e entrou-me água. Portanto, esse parasita entrou e está cá ainda no meu rim. Está aqui. Aqui há tempos, um médico disse-me “você tem aqui um quistos no rim”. Pois tenho e sei o que é, está enquistado. Aquilo desapareceu porque enquistou, não me comeu o rim todo.
Sentiu a sua vida em risco nessa altura…?
Sei que, às vezes, nos trópicos, esse se quistos podem originar cancros, mas hei de morrer de alguma coisa. Portanto, é isso… as doenças tropicais são um maior risco do que os animais selvagens.