"Aparente apatia" dos portugueses pode transformar-se numa "revolta eloquente"

Gonçalo Villaverde / Global Imagens
Estão a aumentar no Facebook as convocatórias para as pessoas saírem à rua. Soromenho Marques acredita que, se nada de estrutural for feito, a paciência dos portugueses vai acabar.
Viriato Soromenho Marques olha para um país "em estado de choque".
"É típico nas situações de estados de choque que a primeira reação seja, aparentemente, de apatia, porque ainda estamos a avaliar as perdas e não sabemos ainda quantas pessoas perderam a vida".
Em Espanha, ao contrário do que aconteceu em Portugal, milhares de pessoas saíram às ruas por causa dos quatro mortos da Galiza. O professor de filosofia social e política considera que a situação, apesar de tudo, é diferente.
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"Mais de 500 ignições no mesmo dia e as rotas de disseminação do fogo da forma brutal, não poupando nem sequer áreas florestais bem ordenadas, é de facto muito chocante".
Em Portugal, diz Soromenho Marques, as pessoas ainda estão a tomar consciência daquilo que aconteceu. E o que é que aconteceu? Antes de mais, há que distinguir duas "tragédias diferentes".
"A de 17 de junho, em Pedrógão, foi, como o inquérito aparentemente confirma, o exemplo de um Estado que funcionou mal. No caso de 15 de outubro, (e a comunicação social tem tido um papel extraordinário no sentido de nos levar as vítimas a nossa casa) o que nós verificámos é que o Estado nem sequer estava lá".
Há uma "diferença" entre um Estado ineficaz e um Estado que se retirou do local.
"Quando o Estado não aparece onde é preciso, a pergunta fundamental é "porque é que isto aconteceu?". Uma pergunta que gostaria de fazer - na conferência de imprensa com o primeiro-ministro penso que ninguém a fez - é por que razão, depois de três meses tão violentos e com previsões meteorológicas para outubro tão quentes, o dispositivo máximo, o dispositivo Charlie foi desconectado? Por que razão deixamos de ter 48 meios aéreos para ter 18 meios aéreos? 30 aviões que foram deixados de fora!".
Fica a pergunta de Viriato Soromenho Marques, que diz há muito tempo que o Estado se tem retirado destas questões.
"O Estado, neste momento, gere apenas 2% da área florestal portuguesa, deixou o mercado funcionar (na floresta tem sido o caos) e privatizou os meios de combate - desde o SIRESP aos meios aéreos - transformou isso num meio de negócio para privados".
O que "falhou aqui foi um modelo com mais de 20 anos", que privilegia "o combate em vez da prevenção". Uma responsabilidade, diz, que é "partilhada por sucessivos governos".
"Não é apenas do PS. É também do PSD e do CDS. Os principais partidos têm responsabilidade nesta situação. Se os nossos dirigentes políticos não quiserem que a aparente apatia dos portugueses se transforme numa revolta surda ou eloquente, será importante que a discussão sobre o que fazer seja feita numa base de perspetiva estratégica nacional e não numa base de "eu não tive culpa porque tu é que tiveste culpa" como é costume".
Vai ser preciso "reconquistar um país" que está "desertificado e despovoado".
"É preciso ter a consciência de que, depois de 15 de outubro, se não existir uma política estratégica de concertação nacional e de longo prazo, vamos ter mais despovoamento. As pessoas que foram atingidas pelos incêndios e ficaram sozinhas a tentar defender as suas vidas e as propriedades vão ter todos os estímulos para sair das zonas rurais e engrossar as grandes cidades, por uma questão de defesa da própria vida".
Viriato Soromenho Marques diz que perdemos soberania sobre o nosso território, agora é preciso mudar o sistema de ordenamento do território e de combate.
"Na minha perspetiva, temos que nacionalizar o combate. Qual é o sentido de termos meios aéreos que são contratados a empresas - algumas delas que estão a ser julgadas em Espanha por fraude - quando temos a Força Aérea que já teve no passado experiência no combate aos incêndios florestais?"
Há uma nova visão que tem que ser baseada no interesse público, sublinha o professor especialista em ambiente. Falta a difícil tarefa de fazer com que os partidos se ponham de acordo no Parlamento, em função desse interesse público.
"Eu apostaria que provavelmente vai ser muito difícil".
Voltamos ao exemplo de Espanha, onde o modelo se inverteu, criando uma unidade militar de emergências. Viriato Soromenho Marques considera que "pelo caminho em que estamos, vamos continuar a ter estas tragédias e a paciência dos portugueses vai extinguir-se".
"Mostra no fundo até a distância que há no debate político em Lisboa e a realidade do país que não está confinado a algumas centenas de metros quadrados onde o poder político mora".
Os políticos em Lisboa esquecem-se do resto do país?
"Seguramente. Não estou com uma conversa regionalista até porque sou habitante da Grande Lisboa mas penso que muitas das pessoas que estão neste momento a sarar as suas feridas e a contar os prejuízos devem pensar exatamente isso".
O professor de filosofia social e política diz que há uma "discussão lisboeta" sobre os cortes na despesa do Estado "infundada e pouco esclarecida".