No Hospital do Gato entram membros de grandes famílias de humanos e felinos, gatos mal tratados e pessoas que acham que os bichos também são gente. Aqui não há coisas.
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Aqui, cão não entra. Nem qualquer outra espécie, além de felinos e humanos. Neste espaço ninguém tem a menor dúvida de que os gatos sentem sim senhor, a dor, o prazer, a felicidade. E os gatos portugueses hão de estar gratos por estes dias com a discussão no parlamento das pessoas.
Quem gosta de gatos, gosta muito... e às vezes de ter muitos
Ana vivia em Viana do Castelo, apaixonou-se por um lisboeta e confessa que a maior parte da bagagem que trouxe para a capital foram gatos. Seis gatos. Cada um de sua cor, dois deles cegos e uma sem rabo. Tudo bichos da rua, que deixaram uma casa grande, passaram a viver sob um teto mais estreito e com outro humano.
O que veio a ser marido da Ana, o Vítor, deixou os seus animais de estimação em casa dos pais. Eram canários e periquitos, não haveriam de dar-se bem com tantos gatos. Vítor diz que os gatos "foram uma espécie de dote de casamento." Não há sinais disso, mas em caso de divórcio não vai ser fácil decidir o destino dos bichanos. Se não for agora, um dia destes a custódia dos animais também há de ser regulada por lei.
Por hoje, o casal traz só o Matias ao hospital. "É diabético, a única diferença em relação aos humanos é que no Matias a doença é reversível." De resto, Ana diz que é tudo igual: "todos os medicamentos que toma são para humanos, até o medidor de glicemia é igual ao das pessoas diabéticas. O problema é que por serem para animais, tanto os dispositivos como os medicamentos, não têm direito a comparticipação do Estado".
Do mesmo mal queixa-se a dona de um gato com nome de peixe - chama-se Faneca. "Tem a versão felina da Doença de Crohn. A medicação é muito cara. E tem de fazer uma alimentação especial para o resto da vida. Um quilo e meio de ração para o Faneca custa-me 25 euros. Já para não falar na comida húmida, também tem de ser especial. Custa 2 euros e 70 cada latinha, só lhe dou de vez em quando", conta Nídia Silva.
"Tratar bem os animais é respeitar a sua natureza"
"Os gatos precisam mais de um arranhador do que de um berço com lençóis de cetim, como já aqui vi", diz a diretora do Hospital do Gato. Veterinária há mais de 20 anos, precisamente nos anos da troika, em 2013, Maria João Fonseca decidiu abrir um hospital só para gatos.
"O gato era o parente pobre da medicina veterinária. Hoje a tendência tende a inverter-se, mas até agora tem havido mais cães que gatos". Será o único hospital da Península Ibérica só para gatos. Além dos cuidados de saúde, tem uma biblioteca de livros sobre gatos, presta serviços como catsitting, quartos para férias (com câmaras de vídeo que permitem aos donos matar saudades), planos de saúde, dentista ou banhos e tosquias.
"Prestamos serviços de conveniência porque muita gente precisa deles, mas o nosso foco é a saúde dos gatos". Maria João estranha a atual discussão sobre o estatuto jurídico do animal e sobre a capacidade de sentirem emoções, "é idiota, sobretudo porque só agora começar a haver essa perceção. É tão óbvio para quem tem animais... ".
A diretora do Hospital do Gato acha que, ao mesmo tempo, há uma tendência contrária para humanizar os bichos e a nossa relação com eles. Afirma que é outro caminho perigoso. Tratar bem um gato não é tratá-lo como gente, é tratá-lo como um gato. É preciso conhecermos a espécie e respeitar a natureza dos animais. Tratar bem um gato não é humanizá-lo, não é arranjar-lhe um berço com lençóis de cetim, como já aqui apareceu. Um gato precisa muito mais de um arranhador do que de um berço!"
Tal como acontece nos hospitais para gente, aqui também é um bom sítio para detetar sinais de maus tratos. "Não é comum mas já aconteceu" conta Maria João, "lembro-me de um gato que apareceu várias vezes com fraturas, feitas em casa. Às tantas começámos a desconfiar. Avisámos o dono que íamos retirar-lhe a custódia do gato e ele nem protestou, aceitou bem, o que prova que tínhamos razão. Acho que o senhor até ficou aliviado. Tudo indica que não era ele o agressor, mas um dos seus filhos. É quase como os casos de violência doméstica encapotados".
"Às vezes pedem-me para fazer companhia nos velórios dos gatos"
O que faz uma psicóloga de gente num hospital só para gatos? "Faço intervenção com os donos, sobretudo em situações de luto e na gestão da ansiedade em casos de doença prolongada do animal", explica Ana Paula Almeida.
A psicóloga garante que há cada vez menos diferenças no acompanhamento clínico das pessoas que perderam um animal de estimação ou um ente querido. "O que mais ouço é que o gato era um membro da família. A grande diferença é que a dor pela morte de um gato raramente é compreendida pelos outros. As pessoas estranham e até ridicularizam quem sofre a morte de um bicho. Um das minhas funções é dizer-lhes que têm todo o direito a sentir-se assim".
Ana Paula também acompanha rituais fúnebres, a pedido dos donos. "Trabalhamos com funerárias só para animais. Às vezes pedem-me para fazer companhia nos velórios dos gatos". Quando o gato é eutanasiado no hospital, a psicóloga, que também tem formação como atriz, transforma-se em artesã, "faço o molde da patinha do gato, da pegada, e oferecemos ao dono como recordação. É também um símbolo de que cada gato deixa a sua marca na vida dos donos". A morte de um gato pode abrir espaço para outro, mas "nunca é substituído. Cada animal tem a sua personalidade própria, não pode ser substituído".