"As profissões não têm sexo." Mas ainda há quem estranhe uma piloto e um educador
Um homem educador de infância, uma mulher aos comandos de um avião comercial. Dois exemplos para demonstrar que "as profissões não têm sexo". Mas os pais e os passageiros ainda estranham.
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"Quem é que já ouviu rádio no carro dos pais"? A pergunta de José aos "seus meninos" abre a "lição" sobre as notícias na rádio. Já todos ouviram e quase todos se lembram de alguma, daquelas que, nos últimos tempos, mexeu com a vida de toda a gente.
"Uma vez, aqui, em Portugal, estávamos sem gasolina", arrisca um. E logo a seguir, diz outro: "o castelo explodiu.... na cidade"! "Qual cidade, lembras-te? Era Paris?", ajuda o educador. A greve dos combustíveis ou o incêndio em Notre Dame deixaram imagens naquelas pequenas cabecinhas. Mas há outros temas que não lhes dizem grande coisa.
Nenhum ouviu "notícias do Governo, nem do primeiro-ministro", e poucos sabem do Presidente da República. "Eu já ouvi, mas não me lembro", murmura-se a medo, ao fundo da mesa.
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São meninos e meninas dos três aos seis anos, as crianças com que José Bagulho trabalha no Jardim de Infância de um agrupamento de escolas públicas, em Porto Salvo, concelho de Oeiras.
José está nesta escola desde 2017, mas já trabalha com crianças há mais de três décadas.
Formou-se em Educação de Infância numa altura em que era raro encontrar um homem nesta profissão. Ainda é, mas menos. Em 1988, quando começou, o curso dele não fazia parte da lista dos que davam direito a pedir adiamento na tropa. Começou num colégio privado, onde esteve durante 25 anos. Com a crise, em 2013, o colégio fechou, e José entrou para a escola pública.
Hoje, como há 30 anos, os pais estranhavam deixar os filhos aos cuidados de um educador homem. José não dramatiza, mas reconhece alguma estranheza, logo no primeiro encontro, na reunião que marca o início do ano letivo.
"Eles estranham muito, a princípio. Estão à espera de ver uma Margarida, uma Antónia... e aparece-lhes um Zé. Mais velho, gordo, totalmente o contrário do que estavam à espera". É uma espécie de choque entre a expectativa e a realidade. Mas, com o passar do tempo, lá se convencem. "Ao fim de pouco tempo, percebem que sou tão bom profissional como uma mulher".
Constantemente à prova
Já lá diz o ditado: "primeiro, estranha-se; depois entranha-se", até porque, lá em casa, o que o Zé diz é que conta. "Se eu digo que não se deitam papéis no caixote do lixo e se devem pôr no caixote azul, aquilo é lei! Ninguém, lá em casa, pode pôr papéis fora do caixote azul.... porque o Zé diz"!
No final do ano, regra geral, os pais confessam algum receio inicial, mas, também contam histórias que demonstram a boa relação entre os filhos e o educador. Outro exemplo comum é a comida.
Na creche, comem tudo. Em casa, nem por isso. É preciso algum "aparato" para resolver a questão. "Muitas vezes, as mães vão ao supermercado e... vês estas ervilhas? São iguais às que o Zé disse!" E eles lá comem as ervilhas.
José Bagulho, pai e educador de infância, não se considera discriminado, nem pelos pais, nem pelas companheiras de profissão. Mas confessa que se sente constantemente à prova. "Tenho de provar que sou tão bom como elas. Aos pais e às minhas colegas também. Sem dúvida nenhuma".
E isso sente-se até na avaliação de desempenho a que estão sujeitos os professores do ensino público. "A avaliadora confessou-me... estou com expectativas muito elevadas em relação a si, porque já tenho trinta e tal anos de carreira, e nunca avaliei um educador de infância. Não faço ideia de como é o seu trabalho". Aliviado, José acabou por "passar no teste", até porque faz questão de encarar essa "prova constante" como um permanente desafio, numa profissão "muito criativa, em que não há um dia igual a outro".
Ser piloto "não foi um sonho de menina"
Joana Guerreiro é piloto da TAP há 12 anos e comandante de Airbus A-320 desde junho de 2018. Começou como assistente de bordo e, passados poucos meses, surgiu a oportunidade de passar da cabine para o cockpit. Tirou o "brevet" e descobriu o fascínio pelos aviões.
Ao contrário de muitos colegas, pilotar "não foi um sonho de menina", mas sempre se sentiu fascinada por quase todas as máquinas. "De pequenina, sempre me chamara maria-rapaz". Gostava de "carros, motos, até corri nos karts".
Joana garante que nunca se sentiu discriminada na aviação. Quando entrou, em 2006, havia quinze mulheres piloto na TAP. Agora, são 60 e 10 já são comandantes. Coisa diferente é a estranheza que muitos passageiros ainda demonstram, quando descobrem que vão voar com uma comandante mulher. "Estranham quando entram no avião, mas, normalmente, quando o voo acaba, há sempre uma palavra amiga ou um sorriso, o que é gratificante, obviamente".
Aos comandos, a comandante Joana Guerreiro já fez viagens pequenas, médias, longas, mas admite que é "fã das mais curtas". Acabada de chegar de Londres, afirma que "duas horas e meia é o ideal. O divertido é precisamente o descolar e o aterrar. Descolar e estar 10 horas a olhar em frente, tira o glamour da função. Além disso, o longo curso voa muito de noite. E agora, mãe de dois filhos, é complicado para a vida familiar. E para a saúde mental também".
"As profissões não têm sexo"
Joana Guerreiro e José Bagulho são as caras de uma campanha com que a CITE, a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, pretende assinalar o 1.º de Maio. O lema é "O futuro é entusiasmante. As profissões são para as pessoas. O equilíbrio entre mulheres e homens é essencial em todos os domínios da vida". O objetivo da campanha é demonstrar que "as profissões não têm sexo".