A antiga lixeira de Maceda, em Ovar, está sob ameaça devido ao avanço do mar, expondo fragilidades estruturais e um vazio institucional na gestão de resíduos. Entre alertas técnicos, críticas políticas e discursos contraditórios, cresce o receio de uma crise ambiental com efeitos nos ecossistemas e na saúde pública.
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O anterior secretário de Estado do Ambiente, Emídio Sousa, reconhece a gravidade da erosão costeira “particularmente evidente no troço da costa de Ovar” e admite que “há um risco de poder chegar à antiga lixeira em Maceda”. Considera que “estamos perante, talvez, um dos maiores dramas que pode acontecer na nossa vida”, não só pela proximidade do mar ao aterro, mas pelo colapso iminente do sistema de deposição de resíduos no norte do país. O governante, que transitou para a secretaria de Estado das Comunidades no atual Executivo, afirma que a lixeira de Maceda não está a ser monitorizada porque “julga que não há essa necessidade”. Uma posição que colide com a inquietação sentida pelo autarca local, que vê a falta de dados e de transparência sobre o estado do aterro como um fator agravante do risco. Miguel Silva, presidente da Junta de Freguesia de Maceda, confirma que a ERSUC assumiu a responsabilidade de monitorizar o aterro durante 20 anos. No entanto, diz nunca ter tido acesso a qualquer relatório: “Ou está tudo bem ou então, por omissão, ninguém sabe”, afirma o autarca. Também Fernando Camelo Almeida, ex-deputado municipal do CDS-PP, lançou em 2024 uma carta aberta ao Ministério do Ambiente e da Energia, acusando o Governo de “falta de compromisso” relativamente à erosão costeira em Ovar. Aponta responsabilidades à Agência Portuguesa do Ambiente (APA), afirmando que “em Maceda não estão a fazer rigorosamente nada”. As críticas agravam-se com a acusação de que o aterro está contaminado, devido à ausência de triagem de resíduos, o que, segundo Camelo Almeida, exige “prioridade máxima em interferir já no aterro” antes que o mar o atinja. Noutro plano, António Bebiano, vereador do Ambiente, e Manuel Jardim, chefe de divisão do Ambiente e Qualidade de Vida da Câmara de Ovar, procuram relativizar o problema. Classificam-no como “potencial”, argumentando que “é mais preocupante o avanço do mar do que, concretamente, a lixeira”. Acreditam que as entidades competentes “não deixarão chegar a um ponto de rutura” e defendem que a solução “será sempre a nível nacional”. Esta confiança, no entanto, contrasta com a frustração de outros intervenientes, que apontam a falta de respostas concretas por parte de entidades como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) como parte do problema.
As preocupações ganham substância com os dados científicos. Carlos Coelho, professor de Engenharia Civil da Universidade de Aveiro, lembra que “as taxas de recuo da linha de costa chegaram a ser, nesta zona, das mais gravosas da Europa”. O maior risco, explica, é “a contaminação por infiltração”, ou seja, “o mar chegar pelo subsolo”. O investigador alerta ainda que os materiais geossintéticos usados para selar a lixeira “ao longo do tempo degradam-se e começa a haver fugas”. Fátima Lopes, diretora do Departamento de Ambiente da Universidade de Ambiente, acrescenta que o solo mole e as poças castanhas visíveis no local se devem à “existência de decomposição de matéria orgânica decorrente dos resíduos florestais” e não necessariamente de resíduos enterrados. A professora sublinha: o processo acelerado de erosão pode provocar o colapso estrutural do aterro. As análises científicas complementam-se com documentos esquecidos ou ignorados. O estudo de Elsa Cristina Ramalho, designado “Diagnóstico e recuperação ambiental da zona envolvente da lixeira de Maceda (Ovar)”, já confirmava, nos anos 90, a “contaminação no aquífero semi-cativo”, o que motivou a selagem em 1998. Este processo foi realizado sem qualquer sistema de tratamento de lixiviados, como se evidencia no artigo “A tendência da linha de costa entre as praias de Maceda e S. Jacinto”, da autoria de Paulo Silva, da Universidade de Aveiro, facto que acentua o risco de contaminação dos aquíferos subterrâneos. O estudo regista ainda que empresas como a Toyota, Philips e Volvo realizaram descargas no local entre 1990 e 1998, contribuindo para o passivo ambiental. As análises científicas são reforçadas por estudos esquecidos ou ignorados. Já nos anos 90, o trabalho de Elsa Cristina Ramalho, “Diagnóstico e recuperação ambiental da zona envolvente da lixeira de Maceda (Ovar)”, confirmava a “contaminação no aquífero semi-cativo”, o que levou à selagem da lixeira em 1998. Contudo, o processo foi feito sem qualquer sistema de tratamento de lixiviados, como denuncia Paulo Silva, também da Universidade de Aveiro, no artigo “A tendência da linha de costa entre as praias de Maceda e S. Jacinto”. O mesmo estudo regista ainda que empresas como a Toyota, Philips e Volvo realizaram descargas no local entre 1990 e 1998, contribuindo para o passivo ambiental. Apesar dos alertas de investigadores e autarcas, o silêncio das autoridades competentes permanece ensurdecedor. O ICNF não respondeu ao pedido de esclarecimentos dentro do prazo legal e o SEPNA indeferiu um requerimento sobre a situação da lixeira. Em contraste, organizações como a Zero e a Quercus têm divulgado ao longo dos anos informação sobre a degradação ambiental na zona, denunciando a perigosidade do local. A ausência de respostas e a descoordenação entre organismos do Estado adensam o clima de desconfiança e alimentam a perceção de que o problema está a ser sistematicamente ignorado.
Falta de ação
Do ponto de vista político, a falta de ação é denunciada por vários setores. O Bloco de Esquerda de Ovar acusa várias entidades, como APA, ICNF, Câmara Municipal de Ovar e Governo, de negligenciarem a lixeira. Descrevem-na como “um bebé que ninguém quer cuidar”, ao lembrar que nem o Plano Diretor Municipal, nem o novo Plano de Gestão Florestal do ICNF refere o aterro como risco ambiental. O Plano de Ordenamento da Orla Costeira reconhece a fragilidade geológica da região, mas não aponta Maceda como prioridade e ignora a localização da lixeira numa zona de risco de erosão nível I, presente nas “Faixas de Proteção” do Plano Diretor Municipal. Os candidatos à Câmara Municipal de Ovar expressaram a sua visão relativamente ao aterro. Lígia Pode, candidata independente pelo AGIR, denuncia omissões e inação, afirmando que a lixeira acumulou “mais de 500 mil toneladas de resíduos, incluindo materiais perigosos não tratados”. “A Comissão Europeia já instaurou processos a Portugal (…) e o município de Ovar foi multado por negligência na gestão inicial do local”, refere. A candidata defende que “o Ministério do Ambiente e a APA deveriam avançar com a remoção total dos resíduos”, mas reconhece que ainda “não existe estudo financeiro” para essa operação. Emanuel Oliveira, líder do Partido Socialista (PS) de Ovar, propõe medidas preventivas, entre as quais, a “monitorização permanente do aterro e dos riscos que representa” e “a implementação de uma efetiva proteção que impeça a degradação da barreira natural”. “É imprescindível que o Ministério do Ambiente, nomeadamente a APA e o ICNF, em colaboração com os serviços municipais” colaborem em conjunto, considera. Para o antigo secretário de Estado do Ambiente, a melhor forma de defendermos a costa do avanço do mar é com areia. “Neste momento a APA está a fazer os estudos… e aquilo que iremos tentar fazer no futuro é retirar a areia que está em alto mar através de uma draga e trazê-la para a costa para repor areia”, detalhou Emídio Sousa. Para o aterro a solução que os estudos apontam é “selar o que lá está, proteger o que lá está e deixar lá estar”. Uma solução que não vai ao encontro do entendimento da Câmara Municipal. O vereador António Bebiano diz que “se o mar chegar lá vai ter de se pegar naqueles resíduos todos e levar para outro sítio, porque não podemos ficar impávidos à espera que o mar venha e leve”. Sobre a relocalização do aterro, não soube responder. Quando questionada, a APA remeteu responsabilidades para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR-Centro), que por sua vez apresentou um relatório sobre um “Breve histórico de ações”. O estudo refere que “em 24/05/2018 foi realizada uma visita desta CCDR em conjunto com a APA, IP (ARH-Centro), tendo resultado que a Lixeira de Ovar se encontra estabilizada e renaturalizada, sem qualquer tipo de monitorização”. Um parecer assente numa visita que, segundo o próprio documento, foi limitada pela vegetação densa e não permitiu aceder ao interior da lixeira. A realidade atual contradiz esse cenário pois, o portão cedeu, não há vedação eficaz e o local está acessível ao público, o que representa um risco para a saúde pública. Ao mesmo tempo, o Plano Municipal de Emergência de Ovar não prevê qualquer cenário de risco associado ao aterro, o que entra em conflito com o PERSU 2020 — Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos — que aponta para a redução da deposição de resíduos em aterros. A linha do mar continua a avançar, à média de quatro metros por ano, como regista o estudo de Paulo Silva da Universidade de Aveiro. Se, em 2012, o mar estava a 700 metros do aterro, hoje a margem de segurança é mais curta.
Mariana Devezas, natural de Espinho, é recém-licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto. Atualmente, é editora do Jornal Universitário do Porto.
Mariana Dias é natural de Ovar e recém-licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto. Colabora com jornais locais e é editora do Jornal Universitário do Porto.
Matilde Domingues é natural de Sanguedo e recém-licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto.
Sofia Menezes Pereira é natural de Lourosa e recém-licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona - Centro Universitário do Porto. Colabora com o Jornal Universitário do Porto.



