Bons Malandros: mercearia, taberna, confessionário… um shopping do antigamente
Fica nas portas da vila, em Óbidos. A Loja do Américo, nome oficial, transformou-se há muito em Sítio dos Bons Malandros, por obra sempre com graça de Mário Zambujal. Ele e tantos outros que fizeram esta casa de amigos de um festival literário, o Fólio, que no domingo terminou mais uma edição em Óbidos.
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A Loja do Américo é mercearia, é taberna, mas também é espécie de confessionário, foi escola de bordados, delegação de banco, um shopping do antigamente. Zélia pergunta-me se preciso de alguma coisa. Respondo que estou só à espera do Luís Filipe para fazermos uma gravação. Vou folheando os jornais pousados sobre o balcão.
Com o também dono e herdeiro Luís Filipe Cajão, vamos ficar a saber porque é que este é também o Sítio dos Bons Malandros:
“É um sítio para mim especial, porque é muito da história da minha vida, da vida da minha família, que há 5 gerações está por aqui, mas é também um ponto de encontro.” Não é só uma mercearia, é “um ponto de encontro que tem a particularidade de quando entramos na mercearia antiga do século XIX, 1835, temos aqui duas cadeiras que serviam, sempre desde o início, para quem chegava se sentar, conversar um pouco, estar um pouco aqui”.
Estas mesmo, onde agora me sento com este homem, advogado de profissão, taberneiro e merceeiro nesta vocação de manter viva a identidade de um espaço que faz as delícias noturnas – e diurnas – de quem visita o Fólio, festival literário internacional, cuja edição de 2024 terminou este domingo em Óbidos.
Luís Filipe vai desfiando conhecimentos, história e memórias, ora vividas, ora contadas de pais para filhos: “A descoberta era a partir daqui. Quem chegava a Óbidos perguntava aqui o que deveria ir visitar? Os de cá que viviam em Lisboa, que estavam fora, era aqui que se combinavam encontrar. Mostrar-se e encontrar-se para ir almoçar, para ir à missa, para estar no ponto de referência."
Estamos mesmo às portas das muralhas, na entrada da vila conhecida pela Ginja, pela Vila de Natal, pelo Festival do Chocolate e pelo Fólio.
Luís Filipe revela que, “além de tudo, estas cadeiras eram também quase um confessionário. Todas as senhoras que vinham à loja vinham conversar ou com o pai, ou com a mãe sobre os seus problemas, pedir conselhos, desabafar e o que se passava aqui ficava aqui. É muito curioso, porque as conversas que todas as pessoas da vila, quando a vila tinha muitos habitantes que estavam aqui, nunca passou para casa, para conversa de jantar ou de almoço. Era um segredo, quase um confessionário. O que aqui se dizia, aqui ficava”.
E depois temos mais salas lá para dentro, pequenas, mas acolhedoras, umas atrás das outras. “Sim, a loja começa na mercearia. Depois passamos na taberna. Esta taberna tem a particularidade de ser o sítio, o primeiro lugar em Óbidos com ginja, onde a Amália e tantos outros passavam por cá. E tinha outra particularidade, que também não era usual. Normalmente as senhoras vinham à mercearia, os homens iam à taberna. Normalmente, a mercearia tinha os lugares para sentar, a taberna não tinha lugares para sentar. E esta é das poucas - ou a única que conheço -, que tem do lado do público uma porta que permite passar da mercearia para a taberna, porque as senhoras ir beber uma ginja era socialmente aceitável, ir beber um copo de vinho já não seria. E, portanto, como aqui assim havia esta particularidade, tinha esta porta e era muito usual ver senhoras na taberna e homens na mercearia.”
Igualdade de género, tanto quanto possível há quase duzentos anos. Luís Filipe orgulha-se de ter “a mais pequena livraria de Óbidos, que faz parte de uma livraria que sempre existiu na família, de livros eróticos”. E com um quarto de dormir que está mesmo ali ao lado: “Às vezes estão sentados na cama a ler e às vezes a beber o copo de ginja ou o que for, mas estão a conviver.” Depois, o espaço prolonga-se para uma pequena sala que tem uma lareira, para tornar o espaço mais confortável no inverno e depois, no final, temos uma sala com garrafas de uma coleção grande que foi ficando ao longo dos anos da família, essencialmente vinhos do Porto e Ginjas.
No fim, ou no início de variadas cumplicidades, “um pátio acolhedor e que estando no início, está também no final, porque quem chega aqui assim não tem ideia de onde está. Não há publicidade rigorosamente nenhuma. O espaço no século XIX não tinha publicidade e, portanto, mantemos com essa pureza. As telhas são originais, as paredes são caiadas, tudo está com a identidade dos móveis iniciais e muitos produtos que encontramos aqui são produtos locais. Coisas portuguesas, coisas daqui, desafios que colocámos a pessoas de cá para desenvolverem uns ímans, por exemplo, com as ginjas. O mel, os azeites tudo com esta preocupação de que temos que conhecer a ligação”.
Além de algumas coisas mais gerais, como tabaco, rebuçados, batatas e couves, já não é muito comum haver jornais à venda em mercearias. Na Loja do Américo ainda se encontram alguns, sejam regionais ou nacionais: “Este espaço desde 1870 que tem jornais à venda. E mantemo-nos, apesar dos tempos serem diferentes, mas todos os dias temos os jornais de manhã e os locais continuam a comprar jornais. É também o primeiro posto de venda de selos em desde 1899. Era, até 1975, uma delegação do Banco Pinto Magalhães do Porto, portanto, era aqui o banco também. Era quase um shopping, tinha tudo. Na última sala, tinha a sala do bacalhau, onde se cortava o bacalhau, tinha os candeeiros a petróleo, tudo isso se mantém exposto da mesma forma e com a vida própria de outros tempos, mas com a modernidade de podermos mostrá-los como era. Como é que se tirava o azeite, mantemos os ‘copos de três’, aqueles copos antigos de vidro da Marinha Grande. É de facto, um espaço que tem toda esta identidade, e que, para além de tudo e desde sempre, foi um ponto de chegada de gente e foi, para além disso, um ponto de encontro. Eu recordo-me sempre de artistas, músicos, escritores que vinham aqui assim estar, conversar algumas vezes, escrever outras vezes, ensaiar peças de teatro, tantas vivências.”
Nancy, Candy e Jessy são amigas da Califórnia. A guia turística leva-as a conhecer este que é também já um ponto turístico de Óbidos: “Único, amoroso, fantástico, e a bebida era óptima e o cão adorável.” Parecem ter saído satisfeitas. No dia anterior, após ter fechado a porta passava das 06h00, eram 09h30 e as portas abriam para receber um grupo de 120 turistas, também americanos.
Passaram pelas noites do Sítio dos Bons Malandros muitos dos autores que participaram no Fólio 2024, como o britânico Max Porter, autor de ficção que acabou de regressar da Cisjordânia, Palestina, mas que não quis aprofundar muito o tema na conversa sobre os romances de que é autor. Uma conversa de sala cheia na livraria do mercado, na rua direita, em Óbidos.
Porter fez teatro na juventude, foi vendedor de livros, depois foi editor livreiro, hoje é um romancista de sucesso no Reino Unido, embora o estatuto seja algo que lhe causa desconforto e inquietação: “O tema do festival Fólio, um dos temas que me foi dito, é o mal-estar, o desconfoé a inquietação. Eu sinto-a. Dão-me mais vinho se eu mencionar o tema, talvez, mas sinto que a inquietação é o tipo de guarda-chuva filosófico sob o qual trabalho. Sinto-me profundamente desconfortável no pedestal dos romancistas que herdei da tradição dos anos 80 no Reino Unido. McEwen, Barnes. Eles estão no pedestal. São eles que fazem subir a escada. Não se misturam com os miúdos. E isso sempre me alarmou um pouco. Por isso, sinto-me desconfortável neste papel. É por isso que faço tantas colaborações. É por isso que estou sempre a pensar, oh, posso trazer um poeta comigo? Posso trazer um violinista comigo? Também me sinto profundamente desconfortável como inglês.”
Um escritor comprometido com a sociedade mas que não quer propriamente virar comentador político: “Também faço muito trabalho fora dos romances, onde posso falar mais diretamente, por isso tenho uma peça que está na Internet para todos verem sobre o comércio de armas. Foi simplesmente um caso de uma coisa que eu sentia tão fortemente sobre o comércio de armas britânico e americano e alemão e italiano e global. Considero o comércio de armas uma aberração moral. Sem ofensa, se houver algum fabricante de armas aqui na sala. Fui convidado para ter uma plataforma. Tinha encontrado uma forma de escrever sobre o assunto que não me fazia sentir como um sermão. Senti que era uma forma de a ficção criativa chegar à verdade melhor do que se eu lesse uma lista de factos terríveis, sobre quantas pessoas morrem com as armas que fabricamos. Por isso, escrevi sobre a paternidade e a banalidade do mal e a linguagem quotidiana dos cuidados, e escrevi uma tese, realmente, de... forma sedutora. É possível para o neoliberalismo capturar as bússolas morais das pessoas, por isso pareceu-me útil e necessário, e foi com prazer que o fiz. Mas não vou começar a escrever no Guardian sobre o que penso de Keir Starmer, se ele é uma boa notícia. E… não, não é”
Na temática conflito, o ucraniano Andrei Kurkov, nome principal da literatura ucraniana contemporânea, autor de Osso de Prata e Abelhas Cinzentas, além de Diário de Uma Invasão, diz que no caso que vive e sente na pele não se deve falar de conflito, mas de guerra. Os ucranianos, muito mais do que estabilidade, o que querem é a liberdade, defender a independência do país: “Ninguém espera que a estabilidade chegue e se instale na Ucrânia, porque na história ucraniana houve muito poucos anos de vida estável. Mas a Ucrânia de hoje é muito diferente da Ucrânia de 2021-2022, porque temos cerca de 7 milhões de refugiados ucranianos no estrangeiro. E se lhes perguntarmos sobre estabilidade e liberdade, provavelmente darão uma resposta diferente. Temos cerca de 5 a 6 milhões de pessoas deslocadas internamente e depois há metade da população que ainda vive onde vivia. E sim, se em 2022 os jornalistas perguntassem aos ucranianos quantos deles estariam dispostos a sacrificar os territórios ucranianos pela paz com a Rússia, então 5% dos ucranianos estariam dispostos a fazê-lo. Hoje, após quase três anos de guerra, temos cerca de 15 a 18% de pessoas que estão preparadas para o fazer, mas a maioria não está preparada. Para a maioria dos ucranianos, a liberdade continua a ser mais importante do que a estabilidade.”
Para o colombiano Juan Gabriel Vasquez, nome grande da literatura sul-americana, será que é possível alguém estar e sentir-se em conflito com o próprio país? “Penso que viveremos nesse tipo de tensão quando se vem de um lugar como o meu, onde tivemos uma guerra que passou por várias encarnações ao longo dos anos e que foi, com mais de 60 anos, quando tentámos acabar com ela há oito anos, através dos acordos de paz. Uma negociação primeiro entre o governo do e o movimento guerrilheiro das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Desses movimentos guerrilheiros, nascidos nos anos 60 sob a égide ideológica da Revolução Cubana, um deles, o mais poderoso, o maior, foi o das FARC. O governo fez uma negociação bem sucedida com a guerrilha. Mas o presidente tinha prometido - talvez conheçam esta história - um referendo para que o povo colombiano pudesse ir às urnas e votar a favor dos acordos ou contra os acordos. Depois de uma campanha muito bem sucedida de mentiras, desinformação e distorções por parte da direita colombiana, o povo convenceu-se de que os acordos deviam ser rejeitados e o país acabou por rejeitá-los por 50.000 votos em 12 milhões”.
Numa linha temática dedicada à mulher, a escritora brasileira residente em Portugal, Tatiana Salem Levy, foi uma das participantes. Será inquietação nome de mulher?, questionou a moderadora Sofia Branco: “Eu tendo a não generalizar as coisas. Eu acho que homens e mulheres, que sejam vivos, que tenham interesse na vida e na compreensão da existência, são seres que se inquietam, não é? Para mim, pessoas que não se inquietam, são pessoas que estão mortas. Eu acho que a vida exige de nós uma inquietação, uma inquietação constante. Mas se a gente quiser falar de alguma coisa da mulher no mundo de hoje, eu diria que as mulheres estão inquietando os outros. No bom sentido, estão perturbando, estão contando muitas histórias que não eram contadas antes e que muitos homens não querem ouvir e muitas outras mulheres também não querem ouvir”.
No mesmo painel da escritora brasileira que acabou de publicar Melhor Não Contar, o Fólio 2024 recebeu alguém que, como Tatiana, viveu para contar. Scholastique Mukasonga perdeu 37 familiares diretos no genocídio do Ruanda em 1994. Só sobrou ela e um dos irmãos, mas quer salvar a memória: “Eu venho de um meio de profunda discriminação durante muito, muito tempo. Durou 34 anos e acabou em genocídio. Portanto, durante esses 34 anos, se nos conseguímos manter, foi porque as mulheres eram absolutamente - ou desenvolveram-no, uma energia para além do que é imaginável. Nunca a mulher fugiu. Ela preocupa-se, mas desenvolve os meios para combater a preocupação, tem de ser serena e dar força aos filhos, à família. Temos de ser capazes de desenvolver pontos fortes. Quando descubro que toda a minha família foi exterminada, que me encontro em frente a uma pequena folha de papel onde está listado todos os que partiram, 37 membros da minha família e mais nada. Naquele momento, encontrei-me perante duas opções. A que era imediatamente acessível, que era afundar-me na loucura, recusar assumir a responsabilidade de sobrevivente. A segunda possibilidade era encontrar uma forma de me erguer. Ao assumir esta pesada responsabilidade de sermos os sobreviventes, não havia outra solução senão escrever.” Um processo extremamente desafiante num contexto em que “não se pode falar. A primeira coisa que acontece é perder a capacidade de falar. Por isso, temos de encontrar uma forma de falar. E se tiveres a sorte de ncontrar o teu confidente? A única pessoa com quem podes falar sem ter medo, sem que ela te julgue ou te abandone? É a folha de papel em branco e a caneta, é por isso que tenho sempre a minha caneta comigo.”
O Fólio 2024 que teve centenas de canetas de gente que assinou livros, dezenas e dezenas de autores portugueses, mas também estes que ouvimos e outros internacionais, teve música de Nancy Vieira a Lina, de Luta Livre a Batida, exposições, debates, consultórios de leitura, oficinas de ilustração, tertúlias diurnas, antes de a noite cair e voltarmos ao local que não é o do crime, é o dos Bons Malandros, com Luís Filipe atrás do balcão:
Na verdade, dá um orgulho imenso ter o Mário Zambujal com o seu célebre livro Crónica dos Bons Malandros, que no primeiro festival literário, veio para cá e dizia: "Isto é o meu sítio." E foi daí que o nome ficou? “Sim, daí que fica. Ele dizia-me: mas posso trazer os meus amigos? Oh Mário está em sua casa”. A mesa de lá de baixo, a do banco corrido, era a dele. Todos os dias chegava, colocava o seu casaco e a sua mala e começava ali a ler os jornais nesse primeiro festival literário. E a loja não fazia parte de nada oficial. Um dia chegam equipas de uma das televisões e perguntam onde é que será o festival literário. E nós dizíamos: dentro da vila. E o Mário surge aqui assim, da taberna vindo de baixo e diz: "Não, não, o festival literário está a acontecer aqui. E dá-nos uma entrevista? Sim, mas a entrevista é aqui. E nessa noite decidimos, entre todos os que estavam aqui, 300 pessoas ou mais, talvez, que o nome seria assim”. Sempre com uma preocupação: “Este espaço é um espaço de amigos. Ninguém é famoso ou menos famoso. Estamos entre amigos. A beber um copo, a conversar, a estar, sempre na lógica do ponto de encontro e que, no espírito do Fólio, o que queremos sempre é que as pessoas levem a memória de uma passagem, de um lugar diferente, um lugar de amigos e de portas abertas.” À saída, nas noites que podem acabar cedo para uns e tarde para muitos, cada um deixa o que entende ser justo no porquinho mealheiro vermelho pousado sobre o balcão da taberna.
Luís Filipe guarda memórias de grandes noites. “Muitas, muitas. Sim, recordo-me de Luís Pastor, noite absolutamente fabulosas no final de fazer uns concertos na vila, a noite aqui terminava. Recordo-me de Mário Lúcio, que no final de fazer um concerto em Óbidos, teve a generosidade de vir para aqui. Nós não tínhamos conseguido ir porque aqui o espaço estava cheio de gente, e ele teve a generosidade de vir contar como é que tinha sido o espetáculo e descreveu tudo, sentou-se, começou a descrever como é que estava o público, como é que estava o palco, quando é que ele entrou, vestido de branco. E depois começou a tocar as músicas dele e a e a descrever cada uma das músicas e o porquê, acabando por fazer outro concerto, que terminou às 05h30.” Tantas vivências. O Bom Malandro Luís Filipe recorda noites com Agualusa, João Paulo Cotrim, José Pinho e a forma como ele, com a sua presença e com a sua discrição, fazia a ligação, as pontes entre as pessoas. Ou a noite em que esteve na parte da loja a trocar receitas culinárias com Mário Laginha. “Estamos em casa, estamos a conviver. Aliás, há sempre alguém que traz um petisco para durante a noite reconfortar o estômago.” Na véspera do encerramento do Fólio, há sempre uma feijoada para ir forrando o estômago. É a Susana que, desde manhã cedo, trata do assunto com esmero e sabedoria. Lamentavelmente, a reportagem da TSF teve de abandonar os Bons Malandros antes de começar a ser servida.
À porta, um dia, apareceu um senhor do Peru que Luís Filipe não conhecia e estava perdido e à procura dos Bons Malandros. “É aqui!”, disse. “Ele tinha lido uma reportagem no Peru sobre os Bons Malandros, é tão engraçado perceber isso. Ou gente que leu nos Estados Unidos do New York Times uma referência ao espaço. Nós não temos Facebook, não temos Instagram, não temos rigorosamente nada porque temos esta preocupação de manter a identidade do espaço. E o Fólio é, de facto, o momento marcante para todos nós. E depois sentir que as pessoas levam uma história que os marcou, e que os fez ao fim do dia das brilhantes e excelentes atividades que existem, conferências, concertos, leitura, lançamentos, no final de tudo isso tem aqui um espaço para descomprimir, sentirem-se no conforto de um espaço simples, uma antiga mercearia, uma antiga taberna de família que tem toda esta vivência, que não é mais do que aquilo que desde sempre em família nós recebemos.”
Reparo na fotografia por cima dos cadeirões onde nos sentamos. Este senhor Américo que está aqui em cima, é quem afinal? “Meu pai, é o pai, que teve o papel importantíssimo do desenvolvimento de loja. A loja era a loja de referência da região, primeiro lugar que tem uma fiambreira nos anos 40, uma máquina de café, os melhores tecidos, os melhores enxovais. Era aqui que tudo havia. E depois, o pai teve a particularidade de, a determinada altura, ter aprimorado o pequeno segredo de família, a relacionado com os Ginjais e com a ginja.”
Américo Cajão teve o mérito de saber resistir à pressão dos tempos. O filho explica, orgulhoso: “Na altura do final dos anos 60, a pressão dos mini-mercados; diziam-nos ‘porque é que não transforma o espaço num Minimercado, uma coisa mais moderna, pá’. E o pai dizia-lhes: isto tem 100 anos, isto é história. Este é um espaço para preservar. Hoje falamos muito de lugares com história. Na época, às vezes, não havia essa perceção, mas da parte do meu pai houve sempre esta preocupação muito clara de que este espaço fosse o legado de uma identidade local muito própria, um espaço comercial que é feito de raiz para o ser e que depois se desenvolve ao longo de pequenas salas. O pai esteve, desde sempre, ligado a isto. E a mãe também, ligada aos bordados de Óbidos que muito contribuíram para criar uma associação para que a tradição não se perdesse.”
Isto na altura em que Óbidos desponta para o turismo, nos anos cinquenta do século passado, com a Dona Maria Adelaide de Ribeirete, criadora dos Bordados de Óbidos, que morreu aos 103 anos, em 2008. O bordado, explica Luís Filipe, “não é mais do que inspiração dos tetos da Igreja Matriz para criar uma atividade para que as meninas da vila pudessem não viver exclusivamente da agricultura e tivessem o seu posto de trabalho, a sua forma de trabalhar e, no fundo, abrir isto já para o turismo”. Desde sempre recorda-se destas cadeiras e que “todos os dias vinham meninas da vila perguntar como é que se fazia bordado e a mãe explicava; aquilo que hoje se chama workshops, na altura eram praticados de uma forma muito simples, era quem sabia ensinava e ensinava para que se perpetuasse o saber, os saberes ancestrais das tradições e, no caso de Óbidos, da tradição do Bordado, que felizmente se manteria até hoje. Porque reinou sempre este espírito de partilha. E da forma que os pais entendiam que o espaço era muito mais além do espaço comercial. Era um espaço de partilha, de ensinamento de ligação de ligação às pessoas”.
Que para o ano possa ser tempo de voltar aos Bons Malandros e ao Fólio 2025. Já com data marcada, de 9 a 19 de outubro, tendo como tema âncora as fronteiras.