“Caderno de rua”, um “testamento” poético das pessoas em situação de sem-abrigo e toxicodependentes
Um livro com poemas e histórias de vida escritas por pessoas toxicodependentes e em situação de sem-abrigo é lançado esta sexta-feira, em Lisboa
Corpo do artigo
“Caderno de rua” é o título do livro que resulta de um projecto-piloto da associação Poesia p’ra Todos, que pretende “dar voz e palco à expressão livre através da palavra poética". O fundador da associação, Diogo Guerreiro, explica que as pessoas em situação de sem-abrigo foram convidadas a “partilhar poesias que já tinham, escrever poemas e [para isso] distribuímos cadernos para que elas pudessem ter um espaço onde escrever”.
No início, enfrentaram alguma “desconfiança”, admite Inês Rochato, coordenadora do projecto no terreno. “Nem todos participaram” e demorou “um longo tempo a explicar [a ideia] e ganhar a confiança” dos utentes nos espaços da associação Crescer e GAT (Grupo de Apoio à Toxicodependência) IN Mouraria, parceiros neste projecto.
Durante cerca de seis meses, foi criado um espaço de “convívio, de partilha”, no qual os sem-abrigo “cantavam, improvisavam”, faziam exercícios de escrita, poemas colectivos. “Fizemos algo bonito”, conclui Inês Rochato.
Entre os participantes que mais se destacaram, Sócrates Fidalgo dos Santos, 33 anos, recorda que chegou à associação Crescer num estado “super-degradante. Não tinha onde dormir, não tinha quase o que comer”. Sempre gostou de escrever e cantar e foi dos mais entusiastas do projecto da Poesia p’ra todos. “Isto foi estonteante, brilhante (…) uma lufada de ar fresco. Fizeram-me sentir vivo”, conta agradecido, enquanto recebe das mãos de Inês, um novo “Caderno de rua”.
Entre estes sem-abrigo, “temos grandes talentos”, garante Nuno Maneta, um dos técnicos da associação Crescer. Financiada pela câmara da Amadora, a Crescer oferece almoços, duches e uma sala de convívio para quem dorme na rua. O Espaço Impar recebe cada vez mais pessoas em situação de sem-abrigo. Diariamente, são cerca de 50 pessoas. A maioria originária de Cabo Verde, indocumentada e do sexo masculino, descreve Nuno Maneta. “Muitas vão ficando e isso é problemático (…) aliás, 90% dos utentes está, em média, há cinco e seis anos” na rua.
Por isso, o técnico social considera “muito importante” a forma como “a poesia serviu para exteriorizar alguns sentimentos, para que possam levantar a auto-estima e manter a cabeça erguida”.
Da poesia de expressão livre, nasceu o “Caderno de rua”, um livro com cerca de 160 páginas, cheio de “poemas, algumas prosas e letras de rap”, descreve Diogo Guerreiro. “Um testamento de rua”, nas palavras de Sócrates, que garante ter uma “inspiração única”. E se dúvidas houvesse, em poucos minutos, Sócrates puxa da caneta para escrever no caderno, a letra de uma música intitulada “Inspiração”.
“Pensas todo o dia que podes mudar o mundo
Tu vais conseguir como se fosses um miúdo
Porque a verdadeira essência é o que está no coração
Não aquilo que tens na tua mão.
Inspiração.”