Cama do século XVII que pertenceu à Casa Cadaval é a nova atração do Palácio Nacional de Sintra. O exemplar único em Portugal, pelas dimensões, morfologia e decoração, está em exposição a partir desta quarta-feira.
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Abrimos a porta e lá está ela. Para deixar entrar a luz afastamos as portadas e a beleza do que temos à frente salta à vista. Com quase três metros de altura, dois metros de largura, 2,5 metros de profundidade e quase 150 quilos, esta cama de madeira negra, revestida a prata, é a nova joia do Palácio Nacional de Sintra. A obra, que em tempos pertenceu à Casa Cadaval, terá sido construída em Portugal no século XVII e integra a exposição do palácio a partir desta quarta-feira. Para trás ficam meses de restauro e estudo intensivos que permitiram compreender as questões artísticas, históricas e o valor cultural e material da peça.
Joana Amaral, uma das conservadoras responsáveis pelo restauro, explica que estamos perante uma autêntica raridade. Pelas dimensões, morfologia e decoração em prata este é, de facto, um exemplar único em Portugal. Além deste, há registo de apenas outro leito com estas características em Espanha, doado pelo 7.º Duque de Aveiro à Basílica de Santa Maria de Elche. "Quando nos deparamos pela primeira vez com este objeto estava todo desmontado. Já tinha visto fotografias, tinha mais ou menos uma noção, mas outra coisa é eu estar a construir, a montar com as minhas mãos e, de repente, chegar a este objeto que é tão esplendoroso. Esse impacto foi ainda maior depois do restauro. O contraste dos materiais limpos das sujidades e das corrosões faz toda a diferença", diz Joana Amaral.
Ainda assim, chegar a este resultado não foi pera doce. Quando chegou à mão dos conservadores, a cama era um verdadeiro puzzle com 1685 peças: 412 em madeira, 760 em liga de prata, 495 em liga de cobre e 18 em liga de ferro e 2500 pregos em prata. Durante o restauro e estudo da obra, os especialistas identificaram seis espécies de madeira (com predominância para o pau preto de Moçambique), várias técnicas de douragem e montagem de elementos complexos, como os ciprestes e os ramos de flores e frutos em liga de prata.
"Situações muito existenciais da vida"
Além de eliminar a sujidade e a corrosão dos materiais, Joana Amaral explica que foi preciso corrigir a estrutura da peça: "É muito antiga, foi muitas vezes montada e desmontada, estava muito suja. A intervenção consistiu em duas fases: em 2017 desmontaram e fizemos o diagnóstico, porque só assim poderíamos perceber os problemas estruturais na madeira e no metal, e no final de 2018, e inicio de 2019, foi feito o tratamento e remontagem de todos os elementos." Chegados aqui, a conservadora confessa que o resultado foi surpreendente. "O contraste da madeira escura, da prata e dos dourados é incrível. Agora é possível admirar muito mais a exuberância da cama."
António Nunes Pereira, diretor do Palácio Nacional de Sintra, explica que este tipo de cama era usado apenas em situações especiais e não para dormir. "Eram camas onde aconteciam situações muito existenciais da vida, como nascimentos, onde se mostravam as pessoas falecidas e onde, eventualmente, era a noite de núpcias dos proprietários da casa." Diz a história que estas camas de aparato eram muito comuns em casas ducais e na Casa Real mas que, por vicissitudes do tempo, foram desaparecendo. António Nunes Pereira acrescenta que foi numa cama destas que o corpo do rei D. Afonso VI esteve em exposição naquele mesmo palácio, onde esteve preso.
Até aqui chegar esta raridade passou por várias mãos: depois de ser vendida pela Casa Cadaval 1953, pertenceu a várias coleções particulares até ser comprada pela Parques de Sintra-Monte da Lua em dezembro de 2017, num investimento de 360 mil euros. "Uma cama desta dimensão faz todo o sentido num palácio como este, com esta dimensão, que teve funções de corte e poder. A exposição desta cama é um momento muito feliz. Vai ser muito importante vê-la num dos espaços do palácio com todo o recheio à volta que pertenceria a um quarto de aparato", confessa António Nunes Pereira.