Contratação de um fotógrafo oficial da campanha, serviços de imprensa, uma imagem estudada e análise do público. Uma investigadora portuguesa conta como a campanha do general foi mesmo profissional.
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O entusiasmo vivido em torno da campanha presidencial de Humberto Delgado gerou a perceção de um movimento improvisado, mas a investigadora Joana Reis concluiu que foi profissionalizada e inovadora, com recurso ao marketing político de inspiração americana.
A investigação sobre o modelo de comunicação política da campanha de Humberto Delgado, realizada pela jornalista Joana Reis, constituiu a sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação, e foi agora adaptada à publicação em livro, pela Tinta-da-China.
"Uma campanha americana: Humberto Delgado e as Presidenciais de 1958", é apresentado na quarta-feira, no Museu da Presidência, por José Pacheco Pereira e pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e chega às livrarias na sexta-feira.
"O curioso é que esta campanha contou com imensos voluntários e essas pessoas tinham um pouco a perceção - uma das coisas que me serviram de fonte foram livros de memórias de pessoas que participaram na campanha - de que era tudo um bocadinho improvisado", contou à Lusa Joana Reis.
O peso dos voluntários na campanha foi enorme, igualmente uma característica das campanhas nos Estados Unidos da América, mas foi integrado numa "grande organização".
Tudo é previsto, a organização de comícios, escolher a dedo quem vai falar, a ideia de fazer documentários para serem emitidos no estrangeiro...
"Uma organização brutal na sede, a nível nacional, uma superestrutura no Porto - aliás, os impulsionadores estão no Porto -, e depois um trabalho ao nível distrital, concelhio, e quase de células, como no PCP, de duas ou três pessoas. Essas pessoas faziam o que podiam, a nível muito informal, mas havia uma superestrutura em Lisboa e Porto, que funcionava de forma muito profissional, com cargos atribuídos", sustentou.
Joana Reis partiu para a investigação "livre" de quaisquer perceções, nunca tinha estudado a campanha de Humberto Delgado, apenas com "a ligeira suspeita" de que, tendo o general passado pelos Estados Unidos e contactado com as campanhas de Adlai Stevenson, em 1952, e de Dwight Eisenhower, em 1956, tivesse havido alguma inspiração.
Não só esta inspiração se veio a confirmar, como "durante a investigação houve dois dados essenciais que deitaram por terra a carga de amadorismo da campanha": a contratação de um fotógrafo oficial da campanha, António Velhote, autor da célebre imagem de Humberto Delgado na praça Carlos Alberto, no Porto, e o papel de Raul Rêgo e Manuel Mendes, dos serviços de imprensa da candidatura.
Raul Rêgo tinha a "tarefa de redigir comunicados, estar em contacto com elementos da imprensa, fazendo a ponte com a imprensa de uma forma tão profissional que, às vezes, parece trabalho de uma agência de comunicação", conta Joana Reis.
A campanha era uma questão burocrática para o Estado Novo. Era uma coisa apagada, cinzenta, afastada das pessoas.
"Descobri um documento na Fundação Mário Soares de organização da campanha, em que tudo é previsto, a organização de comícios, escolher a dedo quem vai falar, a ideia de fazer documentários para serem emitidos no estrangeiro, nomeadamente no Brasil, e chegar ao ponto de contratar um fotógrafo oficial", sustenta.
A contratação do fotógrafo António Velhote - um fotojornalista do Porto que, pela sua participação na campanha seria impedido de voltar a trabalhar em jornais - é um aspeto muito enfatizado por Joana Reis. "Hoje parece uma coisa banal, mas não era compaginável com os tempos que se viviam em Portugal em 1958", sublinhou, fazendo o contraste para as campanhas dos candidatos do regime.
"Uma campanha da União Nacional pouco se distinguia do resto do ano, o corta-fitas, a propaganda. Era quase como uma campanha permanente, e este período oficial de campanha não diferia do resto do ano. A campanha era uma questão burocrática para o Estado Novo. Era uma coisa apagada, cinzenta, afastada das pessoas, em que interessava apenas cumprir o ritual", afirmou.
Foi sem dúvida uma grande inovação ver a que corações se podia falar.
A autora sublinha: "A quem é que interessava fazer campanha? A uma pessoa que estava a chamar a atenção de que as coisas não estavam bem, de que se vivia com medo".
A candidatura de Humberto Delgado vai fazê-lo tirando partido da imagem do general, cujos materiais de campanha o mostravam fardado, projetando autoridade e estabilidade, quando o regime queria fazer crer que se tratava de "um doido". "Essa imagem foi estudadíssima; depois não puderam foi utilizá-la quanto gostariam", referiu, tendo Humberto Delgado sido proibido de andar fardado.
Tal como na campanha do "herói de guerra" Eisenhower, a candidatura de Humberto Delgado recorre a uma difusão segmentada da mensagem, com material de campanha especialmente dirigido a funcionários públicos, aos jovens e às mulheres. "Foi sem dúvida uma grande inovação ver a que corações se podia falar", apontou Joana Reis.