Carvalho da Silva: "A esquerda tem tido dificuldades em responder aos problemas das pessoas"
O antigo líder da CGTP diz nesta entrevista à TSF e ao Jornal de Notícias, que a melhor maneira de lidar com os movimento inorgânicos, é torná-los orgânicos. Sobre o controlo do PCP na organização da CGTP, o antigo militante comunista diz que foi muitas vezes "ator nesse processo".
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Escreveu há dias que a concertação social está governamentalizada. Mais do que quando era líder da CGTP?
A governamentalização teve períodos, é preciso dizer…
Associados a governos específicos?
Uns mais que outros. Mas é preciso clarificar o conceito de governamentalização, porque na minha conceção o Governo deve ser um ativo municiador da concertação social. É importantíssimo levar para dentro do debate da concertação social tudo o que tem a ver com trabalho, qualificações, profissões, etc., mas também temas que são muito fortes na sociedade atual, como é o caso da habitação e outros. O problema é quando a introdução de matérias na concertação se limita a agenda de curto prazo e meramente taticismo para arranjar ali apoios. Isso é que mina a concertação social. A concertação tem outros problemas, há um enviesamento de partida que coloca os sindicatos numa situação muito frágil – a velha concessão antidemocrática de que basta uma confederação sindical assinar.
Devia haver uma mudança e correção desses enviesamentos?
O melhor período da concertação social em Portugal, na minha opinião, foi numa parte da governação de António Guterres, quando houve uma estratégia, a que chamaram de geometria variável, que levou a haver muito mais reuniões entre as confederações sindicais, entre as confederações sindicais e as patronais, etc. Hoje, os sindicatos estão muito fragilizados e esta situação da concertação não resolve. Por outro lado, não há concertação social se não houver contratação coletiva, não há concertação social se na vida do dia-a-dia das empresas e dos serviços públicos não existir um sistema de relações de trabalho estruturado e a funcionar.
Foram os parceiros sociais que provocaram essa fragilidade, que deixaram os governos ter um maior poder sobre a negociação?
É difícil dizer. Há lacunas por presença e por ausência, sem dúvida, mas se os mecanismos fossem efetivamente democráticos, se os compromissos assumidos na concertação funcionassem nos mesmos moldes em que funciona, por exemplo, todo o processo para a criação de uma lei na Assembleia da República e para o seu acompanhamento, era a dinâmica da necessidade de participação que se revelava.
O Governo deveria ceder perante as reivindicações salariais que estão a ser apresentadas por diversas classes profissionais nesta altura?
Eu partilho, também a partir de investigação que temos feito, da opinião de vários atores desta área que têm dito que os salários em Portugal, com a produção da riqueza que temos, estão 20% abaixo do que deviam ser.
Não há nenhuma diferença nessa proporção o setor público e o privado?
Ligeirissimamente mais grave em alguns subsetores da administração pública, mas, repito, ligeirissimamente. Quanto mais se cria a ilusão de que a política fiscal pode substituir a melhoria dos salários com umas migalhazitas na redução de impostos, mais se agrava o desfasamento do valor real dos salários daquilo que devia ser. Há uma outra observação: a melhoria dos salários e das condições de vida dos trabalhadores e as dinâmicas que isso gera nas empresas são um dos fatores fundamentais para a modernização das empresas.
No caso concreto da Administração Pública, a limitação orçamental não é de facto um problema?
Há um viés económico na condução das políticas, uma subordinação a um fundamentalismo da financeirização da economia. E isso mata possibilidades de resposta porque limita. Há um outro problema. Os sindicatos são estruturas de intermediação na sociedade. A não resposta aos problemas que os sindicatos apresentam tem um efeito negativo muito grande, conduz a uma disfuncionalidade da sociedade muito perigosa. Bento de Jesus Caraça, para mim o maior pensador português do século XX, em 1933, quando cheirava a aproximação da guerra, e perante a dinâmica de agitação nas forças públicas, escrevia que o tempo que se estava a viver era tempo de passagem, em que coexistiam todas as contradições. E é isso que nós vemos.
Em que se traduz essa observação?
Por exemplo, as propostas feitas pelo Governo sobre o subsídio de desemprego. Em Portugal, o valor médio de subsídio de desemprego é de 649 euros. Mas os beneficiários são colocados debaixo de suspeição. Na sociedade, em todas as áreas, os comportamentos desviantes são sempre entre 3 e 4%. Não são mais que isso. Esta maldade de utilizar comportamentos desviantes para atingir os direitos de todos é um desvario. Outro exemplo, habitação. Eu acho que a sociedade portuguesa tem dois desafios muito grandes que precisava de tomar a sério. Um é a pobreza, somos excessivamente condescendentes com a pobreza. O segundo é a situação da habitação, que não é um problema individual, é coletivo. Está a ser negado aos jovens deste país um direito fundamental, que é o acesso à habitação digna. Não podemos assistir a isto e continuar à espera que o mercado resolva. O Caraça disse que a coexistência de todas as contradições faz desse tempo de passagem uma feira de desvarios. É a isto que assistimos. E expressa-se na política.
A política é arrastada para esses desvarios?
Ou arrasta para. A política é intérprete, tem de ser sempre a primeira responsável. Por outro lado, vivemos um tempo em que faltam trabalhadores. Na escola, quando se fala de trabalho, há dois conceitos: colaborador e empreendedor. E o que é que nós precisamos, é de colaboradores? Não, é de serralheiros, eletricistas, estucadores, carpinteiros de cofragens, carpinteiros… A juventude hoje está desviada da perceção de qual é o lugar do trabalho na sua vida. Da manufatura. Do equilíbrio entre o individual e o coletivo. Tudo está apontado para o mérito e a avaliação individual.
Essa individualização é uma das explicações para a crise do sindicalismo?
Do sindicalismo e de outras instituições de intermediação na sociedade e do próprio Estado.
Admite que nesta altura, até com o surgimento de movimentos inorgânicos, é difícil olhar para o futuro do espaço sindical?
Os movimentos que surgem como inorgânicos são, muitas vezes, apresentados como alternativa à organicidade. Não, o inorgânico é a expressão da falência do funcionamento do orgânico. Em várias áreas do pensamento, estou-me a lembrar da filosofia da cultura, mas podíamos falar de outras áreas, quando se fazem observações sobre as expressões de inorganicidade, é porque se sente que a sociedade está doente, não está a funcionar na sua estruturação e há manifestações que constituem perigo para a sociedade. Passando para o sindicalismo, diria que todos os gestos, todos os atos, todos os momentos de expressão de inorganicidade que surgem na sociedade devem ser olhados com atenção e não devem ser combatidos, devem ser trabalhados no sentido de se tornarem orgânicos e com uma agenda concreta que seja percetível. Temos hoje uma sociedade mais fragmentada e atomizada. E as forças democráticas, a Esquerda em particular, tem tido dificuldades em pegar em alguns temas.
A Esquerda não tem soluções apelativas?
Aquilo a que se chama comumente a questão social, ou seja, a expressão das desigualdades, dos conflitos, das injustiças, etc., é de tal ordem que o social tem uma emergência imensa e as forças de Esquerda continuam a reconhecer e muito bem. Mas, a partir daí, é preciso trabalhar os assuntos um a um. Como é que se descasca cada um dos problemas no concreto da vida das pessoas? E a Esquerda tem tido algumas dificuldades. Por exemplo, no tema da imigração, tem tido dificuldades numa resposta muito concreta, que seja dinâmica. Tem tido também em algumas áreas que chegam ao trabalho e ao emprego.
Os sindicatos estão a ter um papel ativo no acolhimento dos trabalhadores estrangeiros?
Vão fazendo algumas coisas, mas é muito insuficiente. Um quinto da população é imigrante e o país não está preparado para essa realidade. A imigração tem sido escandalosamente utilizada, não por todas as empresas, mas na esmagadora maioria da economia portuguesa, para manutenção e aprofundamento de uma política de baixos salários. Isto é desastroso.
A tentativa de apropriação da luta das forças de segurança pelo Chega é mais um sinal de esvaziamento dos sindicatos? Como é que estes podem responder a essa apropriação?
O sindicalismo foi pulverizado a imensas organizações e essa é uma dificuldade. A outra dificuldade é a prática dos governantes se vangloriarem de que não respondem às reivindicações que os sindicatos fazem. Isso vai acumulando cargas e depois as coisas rebentam. O que o Chega está a fazer… Basta ler as experiências do que se está a passar na Europa e do que se passou no século passado. Para a instalação de um Estado autoritário, ganhar a simpatia das forças de segurança é um instrumento significativo. É preciso que os partidos democráticos não hesitem. É preciso dar atenção aos problemas dos profissionais da PSP, da GNR, da Administração Pública, do setor privado. Não é admissível hoje quaisquer atos que fechem o pluralismo. É preciso um movimento social que seja aberto, participadas. Os sindicatos têm de ajudar nisto, mas a ação política também tem de favorecer o desenvolvimento das dinâmicas na agenda social.
A recente carta de antigos dirigentes da CGTP contra a influência do PCP e por uma maior independência dentro da Central tem cabimento nesse pluralismo?
Claro que tem. O Partido Comunista Português, de que fui militante muitos anos, e onde aprendi muito, tem um chão, do ponto de vista conceptual, mas acima de tudo do ponto de vista do compromisso concreto com a sociedade, que nenhum outro partido tem, porque se liga muito a essa identidade com os trabalhadores. Lembremos que o Partido Comunista nasceu em Portugal impulsionado por sindicalistas, não é ao contrário. Na minha experiência, e devo ser sincero nisso, para mim sempre foi normal que o Partido Comunista, olhando para o movimento sindical, tivesse pretensões de ter hegemonia, de ter posições dominantes, e eu fui muitas vezes ator nesse processo. A questão não é a hegemonia, é o controlo organicista, o controlo a partir da organização e o isolamento.
Há um problema de afastamento de outras tendências dentro da CGTP?
O que se passa é um conjunto de, julgo que são seis ou sete, já não me recordo, de dirigentes sindicais que têm identificação na corrente sindical socialista não aceitam integrar a comissão executiva, porque não foi cumprido um conjunto de reivindicações que apresentavam. Não houve um afastamento, houve uma rutura face às condições apresentadas. É importante que isto seja resolvido rapidamente. Desde janeiro de 1977 até agora nunca tinha havido esta lacuna, esta ausência de socialistas. Por outro lado, há novas dinâmicas na sociedade. É preciso olhar para elas. Desejo muito que o Partido Comunista exista e dê o maior contributo possível para o desenvolvimento do sindicalismo. Mas desejo que outros também o façam. Como outras instituições, a Igreja Católica teve um papel extraordinário durante décadas na mobilização de militantes católicos para o trabalho. O trabalho não é uma ocupação qualquer e isto precisa de ser relevado na sociedade. Eu bato palmas à geração mais jovem quando está convicta de que há muito mais vida para além do trabalho. E há. Mas quanto mais estiverem conscientes disto, mais vão lutar pelo trabalho. Como não há árvores das patacas, vai ser preciso valorizar o trabalho para haver mais vida para além do trabalho.
