"Casa de horror": o que leva um lar a ser investigado
O Ministério Público está a investigar um caso de maus-tratos na Casa de São Pedro de Alverca. A denúncia foi sobre uma situação concreta, mas uma antiga fisioterapeuta e a familiar de um antigo utente asseguram que as más práticas eram comuns. A direção do lar desconhece.
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"Ele foi maltratado", assegura Maria Celeste Barata, mulher de um antigo utente do lar enquanto nos mostra, no telemóvel, as fotografias do marido. Manuel Barata viveu nove anos na Casa de São Pedro de Alverca. A família levou-o para lá depois de um AVC que lhe reduziu a mobilidade. Maria Celeste acredita que enquanto pôde visitá-lo as coisas estavam controladas, mas com a pandemia, e longe do seu olhar atento, Manuel Barata deixou de ter os cuidados de que precisava.
"Antes da pandemia eu ia lá duas vezes por dia, mas já via o que faziam a alguns a quem não ia lá a família. Então ia lá sempre para controlar e correu tudo bem, mas depois veio a pandemia e fecharam-nos a porta", conta.
Quem continuava no lar, a trabalhar, era a fisioterapeuta Marina Simões, mas o que via não lhe agradava. Pessoas isoladas, com fome, com sede e sem cuidados de higiene durante várias horas. "Eu não digo fraldas sujas, digo inundação de urina e de fezes. Naturalmente, em pessoas debilitadas e emagrecidas, se feridas não têm, têm tudo para poderem aparecer. As que já têm, têm tudo para agravar. Não havia cuidados de hidratação, de nutrição e de mudança de posição daquelas pessoas", assegura Marina Simões, que fala em lesões muitos graves e situações que, acredita, custaram algumas vidas.
Perante o que considera serem más práticas, a antiga fisioterapeuta do lar garante que, desde o final de janeiro de 2021, alertou várias vezes a direção da Casa de São Pedro de Alverca, mas os avisos de nada serviram. "Com a mudança de direção em janeiro, isto foi acontecendo e eu fui comunicando. Reação: 'Tem razão, tem razão.' E o que é que foi feito? Nada!"
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Enquanto isso, Maria Celeste Barata tentava ver o marido. Na altura, devido à pandemia, era preciso marcar. "Telefonava, a diretora técnica nunca me atendia. Era um inferno!", exclama, lamentado que, sempre que conseguia visitar o marido, tinha de ficar ao longe e ele estava sempre muito tapado. "Ele sentado, com um boné pela cabeça, com uma manta pela frente e um casaco vestido... Acha que eu conseguia ver como é que ele estava?"
O susto aconteceu quando Manuel Barata foi hospitalizado devido a uma bactéria que, assegura Maria Celeste, apanhou no lar. Por causa dessa bactéria, quando regressou à Casa de São Pedro de Alverca, Manuel Barata ficou ainda mais isolado. "Não lhe davam banho nem lhe davam de comer, nem água", e deixaram-no a antibiótico durante quatro meses, assegura, acrescentado que viu a fraqueza do marido quando ele voltou do hospital muito magro e cheio de sede.
Maria Celeste Barata nunca entendeu a razão de tanto isolamento, porque no hospital pôde estar ao pé dele e até dar-lhe um beijinho.
No lar, Marina Simões insistia nas queixas. "Eu parecia um disco riscado", conta. A gota de água foi um caso de total negligência.
Chamada por um colega, a fisioterapeuta encontrou um dos utentes das vagas da Segurança Social com um enorme hematoma num braço, nada que se conseguisse explicar tendo em conta que o senhor não tinha mobilidade. "Chamei a direção para ver, porque aí já não eram só os meus olhos, eles teriam de ver que era um caso real. Havia informação concreta, havia provas reais, havia uma pessoa, havia um nome, havia um acontecimento", revela Marina.
A fisioterapeuta conta que o utente esteve mais de dez dias sem ter sido levado ao hospital, sem fazer exames complementares e sem qualquer tipo de medicação: "Estava em sofrimento puro." Marina Simões não aguentou mais e, perante a falta de reação das chefias, decidiu apresentar queixa na PSP de Alverca.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirma que foi instaurado um inquérito que está em investigação no Ministério Público de Vila Franca de Xira.
Confrontada com as queixas, a direção da Casa de São Pedro aceitou receber a TSF.
"Desconheço"; "Não estava cá"
O edifício cor-de-rosa na Rua João Mantas, em Alverca, é imponente. Data do século XIX, tem 3500 metros quadrados, com vários quartos e áreas comuns e ainda um jardim. A mensalidade para os utentes particulares é atualmente de 1050 euros. Por cada utente da Segurança Social o lar recebe 470 euros. Há 42 anos que o edifício funciona como lar.
José Manuel Peixeiro, atual presidente, assegura que o trabalho feito na instituição é exemplar e assegura que nunca recebeu queixas, nem da fisioterapeuta, nem das famílias.
"Desconheço que ela tivesse feito queixa sobre o funcionamento da Casa de São Pedro. Isso nunca foi transmitido à direção", garante. Mas não é isso o que mostram vários e-mails a que a TSF teve acesso. E as queixas das famílias? "Esse tipo de queixas era sempre direcionado à diretora técnica ou às técnicas que acompanhavam os utentes e essas informações nunca me chegaram."
O presidente da Casa de São Pedro de Alverca conhece, no entanto, o caso de Manuel da Silva. Desvaloriza, diz que o hematoma não era nada de extraordinário. Já questionado sobre como aconteceu, remete a resposta para a atual diretora técnica que, não estando no lar na altura, conta que perguntou à antecessora e que ela lhe terá dito que suspeitam que o ferimento foi causado pela grua de transporte dos utentes sem mobilidade. À pergunta sobre se o utente esteve muitos dias em sofrimento, José Manuel Peixeiro e Marília Cardoso respondem, respetivamente: "Desconheço" e "Não estava cá".
Juntos, levam-nos a Manuel da Silva, que ainda vive no lar. Está sentado numa poltrona de pernas esticadas e bem tapado numa das salas de estar do edifício, juntamente com outros utentes. Ouve mal e praticamente não fala, como já na altura, pelo que nos conta Marina Simões.
José Manuel Peixeiro justifica as queixas da fisioterapeuta com "um mal-estar" entre ela, o diretor clínico e a diretora técnica da altura. "Eles não se entendiam e acaba por se denegrir o bom trabalho que se faz no dia a dia", afirma.
Mas quisemos saber também, junto da direção do lar, qual foi o impacto da pandemia no funcionamento da instituição. Perguntamos se houve um agravamento das escaras durante o período de maior isolamento. José Manuel Peixeiro julga que não, mas sublinha que "um presidente da direção não está a verificar estas questões sociais dos nossos utentes". Já a diretora técnica afirma que não tem termo de comparação, porque não estava na altura.
Fiscalizado sete vezes em cinco anos
Certo é que, desde que Marina Simões deixou a Casa de São Pedro de Alverca e apresentou queixa na polícia, houve alterações. Mas não por esse motivo, garante José Manuel Peixeiro: o médico foi dispensado por razões financeiras e a diretora técnica foi substituída por ter manifestado vontade de abandonar o cargo.
Além disso, houve mudanças na organização e nalguns procedimentos. Foram designadas coordenadoras-chefe (uma espécie de governantas do lar) e reforçados os cuidados com a mudança de posição dos utentes com menos mobilidade, para evitar ou minimizar o agravamento de escaras. Isso mesmo revelou o assessor da direção, António Sousa, que garante que se há alguma situação a melhorar, não será por falta dos procedimentos.
Contactado pela TSF, o Instituto da Segurança Social (ISS) revela que, ao longo dos últimos cinco anos, promoveu sete processos de fiscalização à Casa de São Pedro de Alverca por questões de organização e funcionamento. Alguns foram desencadeados pelo ISS e outros resultaram de denúncias. Sobre o processo judicial que corre no Ministério Público, e "face à natureza dos factos", o ISS considera que não se deve pronunciar.
A fisioterapeuta Marina Simões lamenta as situações a que assistiu num lar que tinha tudo para ser uma referência. "Foi uma casa com história e dedicação de muita gente que, realmente, se assistisse a este momento, ficaria extremamente desiludida por ter construído um projeto a pensar no melhor, com condições de excelência e, em 2021, quase é as antípodas da credibilidade. É quase uma casa de terror e de horror."
Já Maria Celeste lamenta que o marido tenha morrido sem dignidade dois meses depois de deixar o lar.
"O mal estava feito", acredita.
