Castigos físicos nos Comandos. Como duas mortes levam 19 militares a julgamento
Tribunal Central Criminal de Lisboa começa esta quinta-feira a julgar 19 militares acusados de 539 crimes durante o 127.º curso de Comandos, em setembro de 2016, quando morreram dois recrutas.
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Naquele dia, 4 de setembro de 2016, o país lutava contra uma onda de calor e o campo de tiro de Alcochete não era exceção. Era lá que decorria, desde madrugada, a "Prova Zero" do 127.º curso de Comandos, para testar os limites físicos e psicológicos dos recrutas. Como? Com exigentes e ininterruptos exercícios militares, alimentação racionada, privação de água e castigos físicos, como rastejar nas silvas.
Segundo a reconstituição dos factos feita pelo Ministério Público (MP), ao início da tarde começaram a surgir os primeiros sinais de exaustão. Uns atrás dos outros, os recrutas começaram a ser encaminhados para a tenda de campanha com sintomas de fadiga extrema e desidratação.
Com os termómetros nos 40º C, os exercícios continuaram até que às 16h foi dada ordem para suspender a prova. Por essa altura, 23 dos 67 recrutas do 127.º curso de Comandos recebiam assistência médica. A tenda de campanha estava atolada e os recursos médicos eram insuficientes para tamanha enchente.
Hugo Abreu e Dylan Araújo, ambos com 20 anos, eram dois dos recrutas que mais cuidados inspiravam. O primeiro acabaria por morrer ao início da noite, devido a paragem cardiorrespiratória, o segundo não resistiu a uma falência hepática, uma semana depois.
Exaustão generalizada no grupo
De acordo com o despacho de acusação do MP, que data de junho de 2017, as práticas dos instrutores, relatadas por vários recrutas, acabariam por levar a um estado de exaustão generalizada no grupo, com relatos de sede intensa, ansiedade, vómitos e desmaios.
"Os princípios e valores pelos quais se regem os arguidos revelam desrespeito pela vida, dignidade e liberdade da pessoa humana, tratando os ofendidos como pessoas descartáveis", refere o despacho assinado pela procuradora Cândida Vilar, do Departamento de investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa. O capitão médico Miguel Domingues viria mais tarde a admitir em tribunal que o ideal teria sido refrescar os recrutas, mas que o diretor e o comandante da prova recusaram "para não atrasar a instrução".
Depois de 11 arguidos terem requerido a abertura de instrução (fase facultativa que visa decidir por um juiz se o processo segue para julgamento), a juíza de instrução, Isabel Sesifredo, decidiu levar a julgamento todos os arguidos nos mesmos termos da acusação do MP. Na prática, os arguidos vão ser julgados à luz do Código de Justiça Militar, facto que as defesas queriam evitar por contemplar penas mais pesadas do que o Código Penal.
O advogado Rogério Alves explica as diferenças jurídicas para os crime de que estão acusados: "Para uma conduta que é semelhante tem, por um lado, uma pena até três anos de prisão no Código Penal, e tem no Código de Justiça Militar uma pena de prisão de dois a oito anos. Depois, se esta ofensa à integridade física, que é o crime base, for particularmente grave, a pena de prisão pode subir de dois a dez anos. Já com a mesma conduta inserida no âmbito militar falamos de penas, por exemplo, de oito a 16 anos."
Só 23 chegaram ao fim
Dois anos depois dos factos, a morte dos dois homens e o internamento de vários recrutas chega esta quinta-feira ao Tribunal Central Criminal de Lisboa. No banco dos réus estão 19 militares do Regimento de Comandos (oito oficiais do Exército, oito sargentos e três praças) acusados de 539 crimes de abuso de autoridade por ofensas à integridade física, em diferentes graus. Da lista de arguidos constam instrutores, responsáveis pela formação e pessoal médico, entre eles o diretor do 127.º curso de Comandos, tenente-coronel Mário, o capitão Rui Monteiro, comandante da Companhia de Formação, o capitão médico Miguel Domingues, responsável pela equipa sanitária, e o sargento enfermeiro João Coelho.
As famílias das vítimas já se constituíram assistentes no processo e reclamam aos arguidos 700.000 euros, no pedido de indemnização civil. Ouvido pela TSF, um dos advogados das famílias das vítimas, Miguel Santos Pereira, disse esperar que se faça justiça: "No nosso caso fazer-se justiça é o apuramento das responsabilidades daquelas que levaram a que acontecesse a morte do Dylan e as respetivas responsabilidades penais e civis decorrentes desse facto."
O 127º curso de Comandos foi um dos que mais baixas registou. Dos 67 recrutas que começaram o curso apenas 23 chegaram ao fim. No total houve 27 desistências, 11 abandonos por indicação médica, quatro casos de inaptidão técnica e duas mortes.