Governo insiste que cumpre lei, todos atiram ao Chega e nem Marcelo sai ileso. Incompatibilidades em debate na AR
Numa interpelação marcada pelo Chega, a Assembleia da República debateu as situações de alegadas incompatibilidades e conflitos de interesse que envolvem vários membros do Governo.
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O Governo garante que cumpre a lei; o Chega fala em "fraude" e o Presidente da República é acusado, por socialistas e bloquistas, de gerar confusão e um debate que não é sério, com o pedido ao Parlamento para clarificar o regime das incompatibilidades.
A Assembleia da República discutiu, esta sexta-feira, "os sucessivos casos de alegadas incompatibilidades e conflitos de interesses que envolvem vários ministros", perante um agendamento potestativo do Chega e no qual foi a ministra dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, a representar o Governo.
Foi o próprio André Ventura a abrir o debate, com críticas aos restantes partidos - em especial à direita, com ataques à Iniciativa Liberal e ao PSD -, que acusa de terem desvalorizado a questão das incompatibilidades no Governo.
"PSD e Iniciativa Liberal, não façam o jogo do Partido Socialista!", atirou Ventura.
O líder do Chega trouxe à mesa o caso dos contratos com o Estado feitos pelas empresas detidas, em parte, pelo ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, e pelo marido da ministra da Coesão, Ana Abrunhosa. Lembrou também que o ministro Manuel Pizarro era sócio-gerente de uma empresa na área da Saúde, no momento em que assumiu o cargo. Questionou também onde estão as provas de que a ministra da Ciência, Elvira Fortunato, já cessou a participação na empresa que detinha. Ventura lembrou também o caso da secretária de Estado das Pescas, alegando que existia um conflito de interesses, por o marido desta deter empresa ligada a esta área e que fez um contrato público com uma autarquia socialista, em Leiria.
Afirmando que o regime legal das incompatibilidades é "um emaranhado legislativo", André Ventura, ressalva, contudo, que as leis "são claras numa coisa": que nenhum governante com mais de 10% de uma empresa pode fazer contratos com o Estado. A isso "chama-se fraude à lei", declarou.
O presidente do Chega dirigiu-se ao PS e aos restantes partidos para perguntar se estão "dispostos a mudar a lei".
"O PS tem maioria absoluta, mas essa maioria absoluta não pode ser prepotência", afirmou André Ventura, concluindo a intervenção comparando o atual Governo a "um barco que, a cada dia que passa, vai afundando e afundando Portugal".
Para responder, por parte do Governo, tomou a palavra a ministra Ana Catarina Mendes, que começou por garantir que, nos casos que têm sido trazidos a público, "não há nenhuma violação da lei".
Para a governante, com esta iniciativa, o "Chega demonstra, mais uma vez, que a batalha não é pela transparência nem pela democracia, é um combate pela desinformação, pelo ruído e que procura corroer as instituições democráticas".
Ana Catarina Mendes lembrou o parecer emitido pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, em relação a esta questão das incompatibilidades, e que "acompanhou leitura do Governo".
"A lei em vigor mantém as soluções jurídicas à luz das quais o parecer foi emitido", frisou. "O Governo cumpre a lei."
Notando que a última lei, de 2019, foi fortemente discutida e aprovada pela Assembleia da República com "uma esmagadora maioria", Ana Catarina Mendes afirma que "as instituições funcionam mesmo".
"Alimentar um clima de suspeição sobre tudo e sobre todos, não é defender as instituições democráticas nem respeitar função do político", referiu.
O Governo repudiou, por isso, "o comportamento do Chega", sublinhando que "não abdica" de defender os princípios do Estado Democrático.
Perante a resposta de André Ventura, que classificou o discurso de Ana Catarina Mendes como "enternecedoras", a ministra afirmou não ser "enternecedora", mas uma "defensora acérrima do cumprimento da lei". "E foi isso que o Governo fez: cumprir a lei", insistiu.
"O sr. deputado é jurista, dizem até que é um bom jurista, então tem que ler os pareceres", disse a governante a André Ventura. "Não sei que mais possa fazer se não oferecer-lhe os pareceres, para que o sr. deputado não tenha tantas dúvidas", rematou.
Pela Iniciativa Liberal, Rodrigo Saraiva sublinhou o princípio de que, "num Estado de Direito, as leis são para cumprir".
Questiona, contudo, por que motivo é a Assembleia da República a pronunciar-se sobre este assunto, quando o primeiro-ministro já poderia, há três anos, ter enviado as dúvidas que foram suscitadas ao Tribunal Constitucional.
Já o deputado liberal Rui Rocha criticou o Governo por não reconhecer nenhuma das situações conhecidas, que envolveram ministros, como "casos".
"Para o PS nunca há casos, quer seja uma questão legal ou ética", rematou.
Recusando as críticas do Chega de que a Iniciativa Liberal estaria a colocar-se "ao lado do ministro Pedro Nuno Santos", Rodrigo Saraiva acusou o partido de André Ventura de ter problemas de "literacia democrática".
Também o Bloco de Esquerda sublinha que devem ser o Tribunal Constitucional e o Ministério Público a pronunciar-se sobre este tema, questionando por que razão está o Parlamento a "passar uma manhã inteira" a discuti-lo, num momento em que o país tem assuntos de outra ordem - como a pobreza estar a levar ao "roubo de produtos básicos nos supermercados" - para tratar.
O deputado bloquista Pedro Filipe Soares acusou o Presidente da República de não ter sido "sério" ao enviar uma carta ao Parlamento a pedir que clarificasse uma lei que foi muito discutida e aprovada por maioria recentemente.
"A lei existe e é para cumprir - é clara, e acreditamos nela", sublinhou, ressalvando, contudo, que pode ainda ser melhorada, e que o Bloco vai apresentar uma iniciativa neste sentido.
Pelo PAN, Inês Sousa Real, alega que há "zonas cinzentas" na lei em vigor, as quais propõe corrigir.
"Não podemos dar a transparência como algo perdido", sublinhou.
Sara Madruga da Costa, do PSD, enumerou os sucessivos casos de alegadas incompatibilidades no Governo que foram divulgados.
"A lei é claríssima e não suscita quaisquer dúvidas interpretativas, pelo menos nos casos que vêm a público. O que está em causa não é a interpretação da lei, mas a sua aplicação", insistiu.
A deputada diz que é "curioso" que uma lei que, para o PS, em 2019, era "boa", agora seja confusa.
"O Partido Socialista vai alertar a lei para adequá-la às conveniências do Governo. O PS tem maioria absoluta que confunde com poder absoluto", atirou.
Pedro Delgado Alves, do PS, disse que as intervenções do Chega "não dignificam a República" e, admitindo que a lei em vigor possa ter "insuficiências", defendeu, contudo, "que é clara" no que toca aos casos que estão em questão.
"A necessidade de interpretar uma norma" é reconhecida "em todos os tribunais", recordou, lembrando que existem mecanismos para analisar essas interpretações, tais como o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República - precisamente o órgão que se pronunciou sobre a questão das incompatibilidades e que é apresentado pelo Governo socialista.
Pedro Delgado Alves nota, contudo, que a mensagem do Presidente da República é confusa, tendo em conta o debate amplo que houve para a formulação da lei ainda recentemente e sublinho que o Parlamento não deve "legislar em cima de casos". "O Presidente não estará inteiramente correto", declarou. Pedro Delgado Alves trouxe também a palco a questão da Entidade para a Transparência, que já deveria ter saído do papel, imputando a necessidade de ação ao Tribunal Constitucional.
O deputado concluiu que o debate sobre a questão das incompatibilidades é importante, mas que não pode ser manipulado por motivos de agenda política.
Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar socialista, decidiu também intervir - depois de palavras dirigidas pela bancada do Chega contra a a ex-ministra e atual deputada Marta Temido - que o próprio Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, afirmou terem "roçado o insulto pessoal".
Para Eurico Brilhante Dias, alguns "insultos" do Chega são como que "medalhas democráticas" para o PS, mas, enquanto líder parlamentar, não pode ficar em silêncio quando é atacada uma deputada socialista - que, frisa, tem o direito de exercer o seu mandato com toda a liberdade.
Também a ministra socialista Ana Catarina Mendes saiu em defesa de Marta Temido, dizendo que o país reconhece o papel que a antiga governante teve numa fase difícil do país.
Pelo PCP, Paula Santos, defendeu que há sempre possibilidades de melhorar a legislação, mas frisou que a lei atual existe para ser cumprida.
Já o deputado comunista Bruno Dias afirma que o importante é saber quem beneficia com decisões de governantes, ressalvando que o PCP não se move com "perseguições pessoais" nem "suspeições".
Para o PCP, o regime legal em vigor tem de ser cumprido e as entidades competentes devem investigar as alegadas incompatibilidades e tirar consequências.
Lembrando o historial polémico do Chega, Rui Tavares, deputado único do Livre, declaro que, no que toca a temas como este, o Parlamento pode remetê-lo para o poder legislativo, pode legislar ou pode deixá-lo como "pasto para os populistas".
Aproximando-se do final da discussão, André Ventura afirmou que é preciso exigir responsabilidade ao Governo sobre os casos de incompatibilidades no Governo, caso contrário, "a lei da República morreu". "Corrupção nunca mais em Portugal!", rematou.
Para encerrar o debate, a ministra dos Assuntos Parlamentares pegou nas declarações de André Ventura e lembrou que quando a estratégia para o combate à corrupção foi debatida e votada na Assembleia da República, em 2021, o único deputado que faltou a essa votação foi André Ventura.
"O Governo aqui estará para cumprir a lei, para prestar esclarecimentos ao Parlamento e, todos os dias, bater-se pela democracia e pelas suas instituições", concluiu.