CEO da Sonae afirma que há ciberataques constantes às empresas. Ex-ministro Daniel Bessa lamenta "crescimento poucochinho". Economista Sérgio Rebelo dá pistas sobre oportunidades de negócio.
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Cláudia Azevedo, presidente executiva do grupo Sonae, Daniel Bessa, economista e antigo ministro da Economia, e Sérgio Rebelo, professor da Kellogg School of Management, são os entrevistados de A Vida do Dinheiro, numa edição especial gravada ao vivo no decorrer do III Encontro Fora da Caixa, que decorreu na Fundação Cupertino de Miranda, no Porto.
Nas últimas décadas, o padrão de consumo das famílias e o seu grau de exigência alteraram-se de forma radical. Como vê o futuro do retalho?
Cláudia Azevedo (CA) - Com muito otimismo. O retalho é um setor muito ligado à saúde da economia, mas o segmento alimentar é bastante resiliente e nós temos investido muito em novos formatos, seja nas lojas de conveniência - e já temos cerca de 100 Continentes Bom Dia - seja na rede de franchising e no online, onde somos claramente líderes. Esta procura de saber exatamente o que o cliente quer, fazemos muito isso na Sonae com o cartão cliente, é um cliente que está a mudar muito e nós queremos mudar com ele. Temos tido taxas de crescimento acima do mercado, portanto alguma coisa estamos a fazer bem.
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O consumo das famílias tem sido uma das grandes chaves da recuperação económica do país, mas será que não estamos a ficar satisfeitos com crescimentos que não são assim tão fortes?
Daniel Bessa (DB) - Sim, estamos demasiado satisfeitos com o crescimento poucochinho, medíocre. Acho que a sociedade portuguesa perdeu exigência de múltiplos pontos de vista. E regredimos. O consumo interno está a contribuir excessivamente para o crescimento e a economia portuguesa regressou, pela primeira vez depois de 2012, ao défice da balança comercial. Esquecemo-nos das exportações. Foi assim que se começou nos anos 1990, aos pouquinhos, até chegar ao défice da balança de transações correntes de 10% do PIB que depois permaneceu indefinidamente até ao colapso.
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Tem receio de que possamos voltar por completo ao modelo anterior? As exportações valiam 20% antes da crise, agora estão nos 40%.
DB - Eu quero que o consumo interno cresça, mas com os rendimentos da exportação. Não quero fazer a economia crescer puxada pelo consumo interno porque isso vai um dia afundá-la. E de uma forma larvar nós regressámos a isso. Por mais que eu queira, que eu precise de criar um cenário que não seja muito pessimista.
O ciclo económico mundial está numa fase de abrandamento. Na Europa, a Alemanha tem crescimentos tímidos, as tensões comerciais entre os EUA e a China também não ajudam. Será que não estamos naquele ponto da montanha-russa mesmo antes de uma queda?
Sérgio Rebelo (SR) - Os economistas não são grande coisa a dizer em que mês é que vai acontecer a recessão. Termo-nos virado para as exportações foi o caminho certo, mas torna-nos vulneráveis à procura externa. A maneira de conciliar as duas coisas é termos cuidado com a gestão da nossa dívida, que tem de ser compatível com o abrandamento das economias que são hoje nossas clientes.
A dívida está numa trajetória de queda mas lenta, tímida. Deveríamos acelerar esse processo?
SR - Quanto mais fizermos para reduzir a dívida pública, melhor, para estarmos menos dependentes destes ciclos económicos.
E como é que um grupo como a Sonae, que está presente em 74 países, está a sentir a evolução da economia mundial?
CA - Com alguma incerteza. Temos o Brexit, a guerra comercial China-EUA, a Itália em conflito com as instituições europeias, a subida dos partidos populistas... Há muita coisa a acontecer e isso causa incerteza, o que, para as empresas, nunca é bom. Os dois principais mercados da Sonae, Portugal e Espanha, estão a crescer poucochinho, como diz Daniel Bessa. Espanha mais, com 2,6% de previsão, acima da média europeia - e isso é bom. Tentamos de alguma forma misturar o risco-país com novos setores que estão a crescer mais em todo o mundo, como é o caso do movimento Health & Wellness, mas também da tecnologia e da cibersegurança.
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Que consequências específicas para economias pequenas e abertas como a portuguesa podem vir deste abrandamento?
DB - É sempre mau. Mas também é verdade - era uma das coisas que se ensinavam nos primeiros dias de um curso de economia - que quando se é muito pequeno o mercado é infinito. Pode cair o que cair, continua a ser infinito. Isto para dizer que a notícia é má, evidentemente, mas quando se tem uma quota de mercado tão pequena como a nossa é muito mais importante a competitividade e o ganho de competitividade do que uma desaceleração do crescimento do mercado. E se não for verdade continua a ser um facto que é a única forma de estar. O que é que a Cláudia disse? Isto não está famoso... mas estou a apostar nas coisas que crescem. Não está tudo a cair ao mesmo tempo.
O que podemos fazer para crescer mais e a que áreas é que devemos apontar?
SR - Isso a Cláudia sabe melhor do que eu, que é a pessoa que toma as decisões [risos]. Eu gosto de olhar para os preços e os que estão a subir muito são a educação e a saúde. Pelo menos nos EUA, porque aqui na Europa estes são setores muito dominados pelo Estado. São dois mercados em que Portugal pode ter um papel fantástico. Temos educação e saúde de boa qualidade que podemos vender ao resto do mundo. Já estamos a vender, mas muito mais podia ser feito. Eu tenho o sonho de um dia trazer a Clínica Mayo para Portugal. Com uma marca internacional como essa, num dia muda-se o país.
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Criando uma parceria?
SR - Seria preciso namorá-los e convencê-los a casar. Mas pode-se transformar o plano da exportação da saúde em Portugal de um dia para o outro, conseguindo isso. Acho que o potencial é enorme nesses dois ramos da economia.
DB - Isso para mim é um sonho de décadas. A seu tempo a Volkswagen deu uma grande volta na economia portuguesa. Hoje podia ser uma grande empresa mundial de serviços, nomeadamente na área da saúde, a dar essa volta.
O rendimento das famílias em Portugal tem crescido nos últimos anos? E tem tido reflexo no rendimento do grupo Sonae?
CA - Sim, claramente. Há mais pessoas com emprego, as taxas de juro estão muito baixas, há mais rendimento disponível e isso nota-se no crescimento das várias marcas. Tem sido bastante positivo.
As empresas portuguesas souberam adaptar-se, tanto do ponto de vista do capital como dos processos, para a era do digital?
DB - Há coisas que progrediram imenso, não só nas empresas, mas na envolvente. As condições de financiamento melhoraram imenso e há certamente muitas empresas que mudaram para melhor. Há casos de sucesso que estão à vista de toda a gente. Agora, se formos exigentes, nunca é o suficiente. E nessa área do digital, se é verdade que há muitas empresas que melhoraram e que estão plenamente adaptadas à realidade, também está à vista de todos onde a revolução está por fazer.
Mas a maioria já acordou para essa realidade?
DB - Não. Na maioria está por fazer. As análises internacionais que são feitas mostram, por exemplo, que na área comercial Portugal está muito atrasado na digitalização. Há um atraso óbvio das empresas portuguesas no domínio das vendas eletrónicas.
E qual é o efeito no emprego?
DB - Eu não sei quando vem a próxima crise de conjuntura, sei é que as grandes economias europeias, com exceção talvez de Espanha, entraram numa fase de crescimento muito muito baixo, quase à japonesa. Portugal cresce mais do que a média europeia porque as três grandes - Alemanha, França e Itália - estão realmente a caminho de um crescimento quase zero. E isso é mau. É assim por causa do mercado de trabalho que não tem flexibilidade suficiente.
CA - Na parte digital é verdade que temos algum atraso nas empresas, nomeadamente em softwares de vendas, porque é preciso uma escala mundial para o fazer bem. Mas por outro lado, em Portugal faz-se muito bom software e isso é muito positivo. Nós começámos em 2000 a investir em várias empresas de software. Na verdade, temos vários unicórnios, a Outsystems, a Farfetch, algumas [empresas] também da Sonae, em que todo o software é feito em Portugal e para o mercado mundial. Acho que temos as capacidades em Portugal para o digital ser uma coisa positiva e não negativa. Depois há a escala, mas é como diz o Daniel Bessa, a partir daqui tem 99,9999% de mercado lá fora.
SR - Em relação à transformação digital, há coisas que jogam a favor de Portugal e outras contra. A nossa flexibilidade e humildade jogam sempre a favor. Quando é preciso - e isso viu-se na crise - as pessoas mudam e a sociedade portuguesa mostrou uma unidade e uma flexibilidade que outros não tiveram. A parte que me deixa mais preocupado é que as empresas em Portugal são um bocadinho hierarquizadas e nós vemos nos Estados Unidos que as companhias onde a transformação funciona melhor são empresas com pouca hierarquia. Porque as ideias sobre como fazer isto vêm das pessoas muito jovens, que são digital natives e têm outra perspetiva. Lá na Kellogg, fazemos dois exercícios: Pedimos a uma empresa que se quer digitalizar que nos diga como o vai fazer e depois pedimos aos mais jovens que imaginem que vão competir com a sua empresa, criando outra que não existe. As pessoas que já estão a trabalhar na empresa há muitos anos querem transformar os processos analógicos de forma digital. O segundo grupo não pensa como é que as coisas se faziam, pensa como criar mais valor. São duas maneiras de pensar completamente diferentes.
A Sonae é hoje uma das maiores empresas em cibersegurança na Europa. Esta é uma área em que vão continuar a apostar ativamente? O grupo será cada vez mais tecnológico?
CA - Nós temos de apostar em tecnologia em todos os setores do grupo. Tudo tem de ter mais tecnologia. Lançámos a Sonae Investment Manager com um mandato para investir em tecnologias de retalho, de telecomunicações e cibersegurança porque achámos que percebíamos desses setores e que podia ser útil também nos nossos próprios negócios. A Sonae IM tem crescido bastante. Começámos por comprar uma empresa em Espanha e depois uma segunda, outra no Luxemburgo, e somos hoje um dos três players de topo na Europa. É um setor que está a crescer muito.
Há muito buzz político à volta da Rússia e dos Estados Unidos mas na verdade, nas empresas, todos nós já devemos ter tido vários incidentes graves. É um setor de grande crescimento no qual nós temos também competências em Portugal e em que vamos investir. Não diria que vai ser o futuro da Sonae, esse vai estar nas holdings que temos hoje, cada vez mais tecnológicas, mas é importante para a inovação. A inovação é muito core no grupo Sonae.
A Sonae já passou por algum tipo de incidente mais grave do ponto de vista da cibersegurança?
CA - Para já não, mas acho que o facto de ser líder ibérica da cibersegurança também nos dá skills. Mas os ataques são constantes. À Sonae, na banca... Nem é todos os dias, é todos os minutos. É um jogo do gato e do rato, só temos que comprar um gato bom.
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O turismo teve uma importância muito grande na evolução económica do país nos últimos anos. Devemos continuar a olhar para ele como a tábua de salvação?
SR - O turismo trouxe algo de que precisávamos, criou emprego. Mas nos últimos cinco anos, passou de 3% para 7% do PIB nacional. No mundo em geral, e tirando pequenas ilhas, o país que tem mais turismo é a Islândia, com 9% do PIB. Nós já estamos muito perto. Não quer dizer que não possamos vir a ter 10%, mas vai ser difícil continuar o crescimento que houve nos últimos cinco anos. E a mim preocupa-me. Fala-se na duplicação do número de hotéis... Temos de começar a pensar que vai haver uma altura em que a oferta vai andar à frente da procura e em que os preços vão cair. A economia precisa de se diversificar, mas não sou eu que identifico as oportunidades, são pessoas como a Cláudia que têm de ver quais são as oportunidades e os setores - e isso é sempre difícil. O turismo claramente tem um papel importante, e de facto emprega muita gente, permite vender muitos produtos que temos de qualidade excelente.
Ganha a batalha judicial contra a Carrefour, em Espanha, pelo uso da marca Continente, para quando a abertura do primeiro híper ou supermercado em Espanha? E qual o investimento num mercado como este?
CA - Esse é um processo muito antigo, havia um contencioso com o Carrefour sobre a utilização do nome Continente em Espanha e que foi ganho nesta semana. Nunca nos impediu de fazer coisas em Espanha, nunca tivemos essa...
No retalho alimentar ainda não têm nada...
CA - Mas não por causa do nome, simplesmente não queríamos fazer coisas do retalho alimentar em Espanha. E não temos esse objetivo no curto prazo. Investimos muito em Espanha, aliás nesta semana inaugurámos um edifício em que pusemos todas as empresas da Sonae num mesmo espaço, de 7 mil m2, no centro de Madrid, o que é para nós motivo de grande orgulho. Temos centros comerciais, temos empresas de cibersegurança, temos a Worten, a Salsa, temos muitas empresas em Espanha e comprámos agora a Arenal, que é uma parafarmácia tipo Well"s na Galiza, uma empresa que está a correr muitíssimo bem. No curto prazo, não estou a ver um formato alimentar nosso a ir para Espanha.
Mas se não tivessem planos, pelo menos abstratos sobre isso, nem sequer teriam lutado pelo uso da marca.
CA - Era importante ser nossa. Temos a marca própria Continente, que tantos prémios tem ganho em Portugal, e queremos vendê-la para outros mercados. Não fazia sentido a marca não ser nossa e o Carrefour não usá-la.
Assumiu a presidência executiva da Sonae há dois meses, o que se pode esperar de diferente para o grupo em termos de curto e médio prazo sob a sua liderança?
CA - Diferente não sei. No curto prazo, queremos continuar a ganhar nos mercados onde estamos, isso é muito claro. Somos muito competitivos, gostamos de inovar, gostamos de crescer, gostamos de o fazer com um retorno saudável, e isso vai continuar. Estamos aqui para ficar, criando valor económico mas também social. Era uma coisa muito importante para o meu pai, investir na cultura Sonae, em fazer as coisas bem, de forma sustentável. A sustentabilidade não nasceu há um ano na Sonae, tem 30 anos. O programa Contacto, um programa de jovens estagiários de elevado potencial que eu tive o prazer de acolher há 15 dias, tem 30 anos no grupo. Temos 100 programas Contacto, uns a começar e outros a acabar, e ficam quase todos na Sonae. E isso vai tudo continuar. O objetivo é mesmo ficar cada vez melhor e sermos uma long living company.
Em termos concretos, no futuro imediato, abertura de novas lojas, criação de emprego... O que é que está em vista?
CA - No curto prazo, continuarmos nos mercados onde estamos e a crescer. E estamos muito bem. O Continente cresceu 7%, a Worten 8%, a Sierra está a abrir centros comerciais na Colômbia. Queremos continuar a crescer e a ganhar quota de mercado de uma forma rentável e sustentável nos mercados onde estamos.
Olhando para a fórmula que dá o mote a este encontro, economia é mercado, conhecimento e cultura. Qual é o elemento mais importante desta equação?
DB - O mais estrutural de sempre é o mercado. Não há economia sem mercado. Essa coisa de que eu produzo muito bem, tenho um produto fantástico, só não vendo... isso não é produto, é um mono [risos]. Marx chamava-lhe o salto perigoso porque é o momento da verdade. Ou vale ou não vale. Agora, o tempo muda e as condições de sucesso no mercado mudam também; é irrecusável que há uma intensificação tecnológica enorme e isso é suportado por conhecimento. Há muitas maneiras de estar na economia do conhecimento, não é necessariamente conhecimento produzido por nós ou em universidades ou projetos pagos por nós. Isso é um outro campeonato, provavelmente a champions da economia do conhecimento. Mas é possível chegar lá aprendendo com os fornecedores, trabalhando melhor com os clientes. Mercado e conhecimento como um suporte novo. Acredito que a cultura também seja importante, mas não é a minha praia.
SR - A economia é o que precisamos para viver, a cultura é o que faz valer a pena viver a vida.
CA - O mercado é o palco onde tudo acontece. O conhecimento é inovação, é tecnologia. A cultura é vontade de fazer acontecer, de inovar.