A escritora argentina Claudia Piñeiro tornou-se a cara do movimento para legalizar o aborto no país. Em entrevista à TSF, explica que sentiu a responsabilidade de se envolver e defende que o "ser mulher" está a mudar.
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A Claudia tornou-se o rosto da campanha pela legalização do aborto na Argentina. Como é que se envolveu neste movimento?
Há muito tempo que me questiono sobre qual é o papel do escritor e do artista nos temas sociais. Tive a oportunidade de abrir a Feira do Livro de Buenos Aires e o meu discurso foi sobre isto: até onde devemos envolver-nos ou não com estes assuntos sociais.Não quer dizer que seja um envolvimento com um partido político, mas sim com assuntos que fazem a sociedade. E este era crucial, até porque o tenho tratado em vários romances, por exemplo, "Tua", que trata a questão do aborto, ou "Helena sabe".
Era um tema que tratava em termos literários, porque me interessa e apareceu na sociedade. Foi a oportunidade para participar, sobretudo com a força por trás do movimento feminista nos últimos anos - na Argentina, chamou-se "Ni Una Menos", noutras partes "Me Too".
Tudo isso deu um lugar e uma posição à mulher que era importante assumir.
E quando tens uma certa visibilidade e a possibilidade de seres ouvida porque te conhecem, tens uma responsabilidade também.
Quase como uma missão...
Antonio Tabucchi disse no livro "Autobiografias Alheias" que nós, os escritores, temos uma espécie de antenas muito preparadas para detetar o que se está a passar na sociedade e transformá-lo em palavras.
E às vezes, outras pessoas que não se dedicam à escrita ou ao uso do discurso e da palavra, custa-lhes mais fazer essas mesmas questões.
Nós temos essa possibilidade e considero que é um recurso que temos de oferecer à sociedade.
Por causa deste envolvimento, a Cláudia foi pressionada e censurada. Tentaram até impedi-la de fazer uma entrevista [ao escritor cubano Leonardo Padura]. Tudo por causa das posições públicas que assumiu. Estava à espera deste tipo de reações?
Não. Mas acho que é o mesmo fenómeno que está agora a acontecer no Brasil, com as eleições. Muitos brasileiros não suspeitavam que havia tantos compatriotas dispostos a votar num candidato que é homofóbico, que está contra o aborto, contra as mulheres em geral, contra os afrodescendentes...
Muitos brasileiros foram surpreendidos, tal como muitos argentinos foram surpreendidos pelas reações tão... tão reacionárias.
Porque depois do debate do aborto começaram a surgir discursos muito homofóbicos, sobretudo acerca da educação sexual que se dá nas escolas e o que se ensina sobre o género.
Que é uma disciplina tão importante como a Matemática, a Trigonometria ou a Geometria.
Apesar de toda a mobilização, o senado argentino acabou por não aprovar a legalização do aborto. O debate na Argentina mudou alguma coisa?
Sim, com certeza. Acho que as novas gerações já estão noutro lugar. Os jovens não concebem um futuro no qual não haja liberdade para escolher como viver, como viver a sexualidade, etc. É um caminho que tem de continuar a ser feito. Acredito que o aborto vai ser legal.
E aconteceu uma coisa muito interessante na Argentina a partir do debate: as pessoas puderam falar e dizer a palavra aborto. O aborto era algo proibido, não se falava disso.
E se calhar tinhas uma amiga próxima ou alguém da tua família que nunca te tinha dito que tinha feito um aborto. Por exemplo, tenho uma tia-avó de 94 anos que pela primeira vez nos disse que na juventude fez um aborto.
E fui fazer conferências com outras mulheres em vários sítios e apareciam pessoas que me abraçavam a chorar. Uma delas com 50 anos, e desde os 20, quando fez um aborto, não pôde dizer a ninguém. E carregava essa culpa com ela. Por causa de todo este debate, pôde falar nisso, apercebeu-se que não fazia sentido ter vergonha e agradeceu muito o poder falar.
Precisamos da lei; é uma questão de saúde pública. Todos os anos morrem muitas mulheres na Argentina por causa de abortos clandestinos.
A sociedade já sabe como tratar isto; sabe como acompanhar uma mulher que passou por isto, como consolá-la, abraçá-la, ajudá-la. Até agora era totalmente proibido.
"Uma Pequena Sorte" é o livro que a traz a Portugal. É o mais recente de traduzido para português, com edição da D. Quixote. Uma obra de suspense, que anda à volta de questões como a dor, a culpa, mas também a maternidade e a ideia de que é inata, que nascemos para ser mães... A ideia de mulher está a mudar?
Este livro não trata o tema do aborto, mas são diferentes faces da mesma moeda, que têm a ver com o que se esconde atrás do aborto e da proibição - a crença de que a mulher tem a obrigação de ser mãe.
Esta é a história de uma mulher que foi mãe sem pensar se queria sê-lo. Simplesmente porque o papel da mulher é ser mãe.
Precisamente, um dos temas do romance é a questão da maternidade e sobretudo sobre o desejo de não-maternidade que muitas mulheres têm. Um desejo que lhes custa assumir porque se espera de todas que sejamos mães.
As coisas estão a mudar, mas o livro fala de uma geração em que era o expectável e esta mulher, por causa de um acidente, tem de carregar com a dor e a culpa por muito tempo.
Na Argentina, tivemos o movimento pela legalização do aborto, "Ni Una Más"; nos Estados Unidos, a Marcha das Mulheres contra Trump; também o "Me Too", um movimento global. Mais recente, no Brasil, as Mulheres Unidas contra Bolsonaro. Estes movimentos mudaram a ideia do que é "ser mulher"?
Sim. Acredito que sim. Ganhámos consciência da força do movimento e daquilo que faz a união. É um grupo de mulheres. Nestes movimentos sentimos muito isso.
Na Argentina, dirigimos uma carta aos deputados e senadores para aprovarem a lei e, para isso, convocaram-se grupos de diferentes áreas.
Eu organizei com uma companheira a convocatória para as escritoras. E pensámos: 'quantas virão?' Fomos 400! Nem sabíamos que havia 400 mulheres escritoras na Argentina.
Tudo isto dá uma força incrível!
Nós usámos um lenço verde na campanha do aborto. E quando andávamos na rua, no metro, no autocarro e ao lado víamos uma rapariga com uma mochila com um lenço verde... Sentíamo-nos logo acompanhada!
Há uma certa cumplicidade entre todas as mulheres que estão a lutar pelas mesmas causas. Não é só o aborto. Esse é um dos direitos que falta às mulheres na Argentina, mas também há a questão da igualdade nas oportunidades de trabalho, no salário, no acompanhamento à família...
Há muitas outras questões pelas quais as mulheres vão continuar a lutar. Mas o aborto é tão importante que, até o conseguirmos, parece que é a única causa.
Os livros da Cláudia trazem-nos um bocadinho da Argentina, de como o país vem evoluindo. Como é que olha para a sociedade argentina de hoje?
Este é um momento muito complicado para a Argentina. Estamos com bastantes problemas económicos. Esperemos que se resolvam porque há muita gente que está a passar muito mal.
E a questão da corrupção é preciso resolver de uma vez e para sempre. Porque que é escandaloso o que estamos a assistir permanentemente. Tanto dos governos anteriores, como com algumas pessoas do governo atual. É preciso fazer uma limpeza.
Se depois seremos um país melhor... não sei. Desde criança que ouço: como é que é possível que isto aconteça?
É um momento muito complicado, mas as crises também são oportunidades. Oxalá que a Argentina saia desta crise fortalecida. Mas, entretanto, muitas pessoas estão no limite do possível. Há muita gente a viver nas ruas, muita gente sem dinheiro para comprar comida...
Por exemplo, a indústria do livro está em queda há dois anos porque se corta no que se pode.
Os livros não são comida, mas um país que lê pouco e em que a educação se ressente, tem menos possibilidades no futuro.
Olhamos para a situação na Venezuela... no Brasil... A Argentina é uma peça de uma América Latina em convulsão?
Sim, mas os movimentos são cíclicos. Se numa altura tudo estava mais do lado da Venezuela, Equador, do governo Kirchner na Argentina... agora muitos países estão a virar à direita. Mas na Europa também há a Polónia e há os Estados Unidos com Trump.
Por isso, não sei se isto é só uma questão latino-americana. O que é certo é que noutros países as instituições funcionam melhor. Vocês têm mais recursos para não serem arrasados, o que na América Latina é mais difícil. Somos países mais jovens... com menos treino nestas coisas.
Por exemplo, em Portugal têm um sistema parlamentar. Nós, na Argentina, dependemos do presidente.
Sugere-se muitas vezes que devemos passar para um sistema parlamentar, uma evolução dos países. Mas nós continuamos muito presos à figura de alguém que vai chegar... e nos vai salvar - e se não nos salva, une-nos. E isso é um problema.