Como sobreviver 56 dias sem ordenado? Três relatos de como se sobrevive sem rendimentos
Os trabalhadores do Jornal de Notícias, Diário de Notícias, O Jogo e Dinheiro Vivo receberam esta quinta-feira, os ordenados em atraso, mas a incerteza persiste. Três relatos de como se sobrevive sem rendimentos.
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Elsa Canha e o marido têm uma longa história com o Jornal de Notícias (JN). Ele foi alvo de um despedimento colectivo, em 2009, e "nunca mais arranjou emprego. Portanto, desde essa altura até agora, o meu salário é o único que entra em casa", conta Elsa, trabalhadora na área comercial do Global Media Group (GMG).
"Foi terrível (...), estes dois meses foram dramáticos", acrescenta. No Natal, só com a ajuda da família conseguiu garantir uma refeição "digna" ao filho que está emigrado e só vê uma vez por ano.
"Nunca na vida pensei tomar medicamentos para o sistema nervoso", mas a fatura da farmácia tornou-se "astronómica", porque o marido tem uma depressão crónica, desde que foi despedido, além de ter sofrido um acidente vascular cerebral (AVC).
Elsa sente que também está "muito, muito perto de uma depressão". O diagnóstico pode ser confirmado numa consulta esta sexta-feira. Apesar de ter vivido à custa de poupanças, a trabalhadora do GMG cortou nas despesas no supermercado.
"A minha alimentação está completamente desregulada. Eu como muito mais pão, porque é mais barato. Vou a marcas brancas, porque são mais baratas. Aproveito todas as promoções".
Durante os 56 dias que esteve sem ordenado, Elsa recebeu bens alimentares de amigos que também se ofereceram para lhe dar dinheiro.
"Isto mexe com as pessoas", afirma com voz embargada.
Arnaldo Martins, editor de desporto no JN, já está "zangado há muito tempo", mas agora "estão a mexer com a minha família", queixa-se revoltado. Com dois filhos, a prestação da casa, do carro, o seguro, as contas da água, luz e gás para pagar, o jornalista teve de pedir dinheiro aos pais para suportar a mensalidade da casa em dezembro. O "núcleo familiar", que inclui ainda a irmã e o sogro, ajudou nas despesas, mas Arnaldo ainda teve de recorrer ao fundo solidário criado pelo JN, para apoiar os trabalhadores com mais dificuldades.
"Não tenho vergonha de o dizer (que recorreu ao fundo), para ir ao supermercado comprar comida", até porque "não conheço jornalistas ricos".
Colaborador do JN durante 12 anos, Arnaldo Martins entrou nos quadros do jornal em 2018 e a actual crise no GMG foi a "tempestade perfeita, que não tem nada de perfeita". Ao cansaço acumulado ao longo dos anos, juntaram-se a revolta e a angústia, levando Arnaldo a pedir uma baixa médica.
"Não me sinto em condições psicológicas para trabalhar", refere, embora mais aliviado por ter recebido o ordenado no 56º dia de dezembro.
No entanto, o jornalista não quer pensar na próxima semana, quando chegar o dia 31 de Janeiro com a possibilidade de ficar outra vez sem salário. Por pagar, continuam os ordenados de novembro e dezembro dos colaboradores do GMG.
A recibos verdes, o colaborador do JN Pedro Costa admite que "tem sido muito difícil sobreviver a esta incerteza, com três filhos menores e uma renda de casa para pagar", mas agradece a ajuda do fundo solidário que permitiu à família "manter alguma estabilidade". Os 250 euros recebidos destinaram-se, sobretudo, à alimentação. Para cortar nas despesas, Pedro e a mulher trocaram o carro pelos transportes públicos, mas até os filhos mais velhos estão preocupados.
"Não consigo esconder a situação (dos filhos). De vez em quando, perguntam se já caiu (o ordenado)", quando nestas idades, não devia ser uma preocupação para eles".
Apesar de não cair dinheiro na conta, Pedro Costa quer continuar no jornalismo.
"É voluntariado, é quase pagar para trabalhar. Acho que quero dar o meu pequeníssimo contributo num jornal tão grande, para tentar que o jornal continue o melhor possível". É ainda a "paixão pelo jornalismo", mas que não chega para pagar as contas.