Como Tancos se tornou um imbróglio político? Quatro respostas para perceber o caso
À justiça o que é da justiça, à política o que é da política. O chavão é antigo, mas os planos continuam a misturar-se. E a verdade é que, se na justiça ainda há muito por explicar, na política também.
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Um caso de polícia que é também um caso político. Dois anos depois, o assalto aos paióis de Tancos continua por explicar nas suas múltiplas dimensões: militares, judiciais e políticas. A decisão do Ministério Público em acusar formalmente o ex-ministro da defesa, Azeredo Lopes, de quatro crimes, caiu que nem uma bomba na campanha eleitoral e reabriu, precisamente, a discussão das responsabilidades políticas, que a esquerda e, sobretudo o PS, pensavam estar ultrapassada. Afinal, PS, BE e PCP aprovaram juntos o relatório final da Comissão de Inquérito a Tancos que ilibava politicamente Azeredo Lopes. Mas esta discussão foi agora reaberta por Rui Rio. Como nasceu este caso, as voltas que já deu e em que ponto estamos agora, é o que respondemos a seguir.
1. Como nasceu o caso Tancos?
A 28 de junho de 2017, por volta das 16h30, foi detetado o furto de material de guerra em dois paióis dentro das instalações de Tancos, durante uma ronda. As vedações não estavam nas melhores condições, as torres de vigilância não eram utilizadas e as patrulhas de segurança, muitas vezes, não eram feitas.
No dia seguinte, o chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), através de um comunicado, tornou público o conhecimento do roubo. Sabia-se então que tinha sido roubada uma centena de granadas de mão e munições de calibre 9 milímetros.
O então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, reconheceu que o roubo de granadas e munições das instalações militares dos Paióis Nacionais de Tancos era grave e garantiu que não ficaria "nada por levantar nas averiguações".
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"Evidentemente é um facto grave, não vale a pena estar a desvalorizar esse facto. É sempre grave quando instalações militares são objeto de ação criminosa tendente ao furto justamente de material militar", para mais quando "não foi roubada uma pistola, não foram roubadas duas, foram roubadas granadas", disse Azeredo Lopes.
No fim de semana seguinte ao roubo, o PCP veio acusar o atual e anteriores governos de "reduzirem ao osso a condição militar" quando aceitaram as imposições de cortes e reuniões da União Europeia. Aqui, a falta de verbas por parte do Exército era utilizada como argumento pela primeira vez.
"Consideramos que existe uma responsabilidade clara por parte do Governo, por parte de sucessivos governos, que reduziram ao osso a condição militar, tanto no plano pessoal, dos direitos militares e da própria quantidade das Forças Armadas, esquecendo muitas vezes que, aceitando as imposições designadamente da União Europeia, dos cortes e mais cortes, de reduções e mais reduções, colocam em causa aquilo que é a missão fundamental das nossas Forças Armadas, que é serem o garante da nossa independência e soberania", sustentou Jerónimo de Sousa.
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As primeiras demissões chegam um mês depois: cinco comandantes.
"Decidi exonerar os cinco comandantes das unidades que estão ligados a estes processos", informou o Chefe do Estado-Maior do Exército, General Rovisco Duarte, à RTP.
No final de 2017, os portugueses questionavam a capacidade do Governo para proteger o país depois de, em outubro, terem ardido mais de 223 mil hectares e de esse ter sido o ano em que mais território luso ardeu na última década. Quatro vezes mais do que o habitual e provocando mais de 100 mortes.
2. O caminho até à demissão de Azeredo Lopes?
A 4 de julho de 2017, terça-feira, é aprovada por unanimidade, na reunião da comissão de Defesa Nacional, uma audição do general Rovisco Duarte, na sequência de um requerimento do PSD com o objetivo de obter esclarecimentos sobre o furto do material de guerra no concelho de Vila Nova da Barquinha.
Na sexta-feira da mesma semana, o ministro da Defesa, Azeredo Lopes, é chamado a responder no parlamento sobre o furto nos Paióis Nacionais de Tancos, quatro dias depois de o CDS-PP ter pedido a sua demissão do cargo. Já no parlamento, o ministro da Defesa defendeu que a falta de vigilância "não é justificação" e que antes da videovigilância "também havia vigilância", logo, "não é isso que vai poder justificar o que quer que seja", afirmou Azeredo Lopes.
O ambiente entre os militares ia-se deteriorando. Poucos dias depois da audição do ministro no Parlamento, o tenente-general Antunes Calçada, comandante do Pessoal, acaba por apresentar a demissão por "divergências inultrapassáveis" com Rovisco Duarte.
Em março de 2018, a revista Sábado revela que, poucas semanas após o roubo nos Paióis Militares de Tancos, a PJ e o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) puseram em marcha uma operação encoberta para tentar recuperar o armamento roubado.
Passados seis meses, os partidos começam a defender a integração da PJ Militar na Polícia Judiciária, mas avisam que não é o momento certo para esse debate e que, publicamente, o ministro da Defesa saía fragilizado deste caso.
Em outubro de 2018, a fragilidade confirma-se. Azeredo Lopes demite-se do Governo para evitar "desgaste das Forças Armadas", na sequência da polémica de Tancos e, em particular, das suspeitas de que o ministro teria conhecimento do encobrimento.
"Não podia, e digo-o de forma sentida, deixar que, no que de mim dependesse, as mesmas Forças Armadas fossem desgastadas pelo ataque político ao ministro que as tutela", referiu Azeredo Lopes na carta enviada ao primeiro-ministro, António Costa.
No mesmo dia em que Azeredo Lopes se demite, os três militares da GNR detidos pela PJ dizem querer quebrar o silêncio sobre o que aconteceu em Tancos.
Em interrogatório, o ex-chefe de gabinete do ex-ministro da Defesa garantiu que Azeredo Lopes foi avisado da encenação de Tancos. Martins Pereira contou que informou Azeredo do memorando que lhe foi entregue, há menos de um ano, por aquele que era, na altura, diretor da PJ Militar, o coronel Luís Vieira.
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É nesta altura que se começa a supor que, se o ministro da Defesa sabia, o primeiro-ministro também sabia. Paulo Mota Pinto, constitucionalista social-democrata, invoca a figura jurídica da regra da experiência para defender que dificilmente António Costa não sabia do encobrimento do roubo de Tancos.
No mesmo dia, o primeiro-ministro vem sublinhar que não sabia de nada.
"Nem através de Azeredo Lopes nem através de ninguém, não conhecia", disse António Costa aos jornalistas a 26 de outubro de 2018.
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Com o encobrimento descoberto, Marcelo Rebelo de Sousa acaba por se ver envolvido, também ele, no rol das suspeitas. Numa investigação do programa "Sexta às 9", exibida na RTP em novembro, inferia-se que o chefe de Estado teria conhecimento da alegada operação de encobrimento do material desaparecido em Tancos, uma vez que dava como certo que o antigo diretor da PJ Militar tinha feito "vários contactos com o ex-chefe da casa militar da Presidência da República".
Em resposta, o Presidente da República desmentiu contactos sobre Tancos com o ex-diretor da PJ Militar.
"O Diretor encontrava-se na visita a Tancos a 4 de julho de 2017, visita essa durante a qual o Presidente percorreu, com as entidades presentes, circunstanciadamente, a área em causa e teve uma reunião com todos os responsáveis. Não teve qualquer reunião bilateral com nenhum deles", esclareceu o Chefe de Estado.
3. Que responsabilidades apurou a Assembleia da República?
A 3 de outubro de 2018, o CDS avança com um pedido de Comissão de Inquérito a Tancos. Quinze meses depois, ainda ninguém tinha percebido o que aconteceu na altura nem o que foi feito posteriormente. Mesmo ao fim de mais de dez audições parlamentares, que chegaram ao topo da cadeia hierárquica com o Ministro da Defesa Nacional, o CDS disse "o país continua sem perceber o que o Governo não sabe - e devia saber; o que o Governo não sabe - e devia saber - porque não quis saber; bem como o que o Governo não sabe porque lhe foi ocultado".
"Cabe seguramente às autoridades judiciais descobrir quem participou no furto destas armas. Mas apurar quem falhou nas medidas de segurança, por que é que estas falharam, e as razões da gestão de todo este processo cabe primeiramente ao Exército e ao Ministro da tutela desvendar e definitivamente ao parlamento apurar", escreveram os centristas no pedido para a constituição da Comissão Parlamentar de Inquérito.
Em reação ao pedido do CDS, o PS confirmou o voto favorável ao inquérito a Tancos, mas criticou o "foguetório", entendendo a atitude como empenho dos centristas em "denegrir o Estado, contribuindo para o desprestígio das Forças Armadas".
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"O PS nunca desvalorizou o que aconteceu em Tancos, nunca deu por encerrado esse assunto e nunca se sobrepôs à investigação judicial, aguarda as suas conclusões. Entendemos que, se a Assembleia da República pretende investigar de modo paralelo o que se passou, tem o direito de o fazer. O PS não se constitui como obstáculo a que isso aconteça", disse Carlos César no final de uma reunião do grupo parlamentar socialista na Assembleia da República.
O parlamento aprovou, na generalidade, a proposta do CDS-PP. Durante as votações, os grupos parlamentares do PCP e PEV abstiveram-se enquanto as restantes bancadas parlamentares votaram a favor da proposta dos centristas.
A 22 de novembro, a Comissão de Inquérito de Tancos arrancou em ambiente de tensão entre o CDS e a esquerda, com os centristas a acusarem os três partidos, através do deputado Telmo Correia, de, "no limite", estarem a pôr "entraves e dificuldades" ao inquérito por defenderem a devolução dos documentos enviados pela Procuradoria-Geral da República.
Isto porque dia 19, na segunda-feira anterior, PS, PCP e BE exigiram que toda a documentação enviada pela PGR sobre o furto de Tancos, em segredo de justiça, fosse devolvida e não transferida para a Comissão de Inquérito.
Um ano e meio depois do assalto a Tancos, em dezembro do ano passado, eram detidos os primeiros suspeitos. A operação Húbris II resultava na detenção de oito suspeitos do roubo, estando em causa alegados crimes de "associação criminosa, furto, detenção e tráfico de armas, terrorismo internacional e tráfico de estupefacientes", de acordo com um comunicado da PGR.
Cerca de 48 horas depois era detido o nono suspeito, que ficou em prisão preventiva, indiciado por terrorismo.
No início deste ano, em fevereiro, o Ministério Público pediu ao tribunal mais seis meses para terminar a investigação ao caso Tancos, devido à especial complexidade do processo das armas.
4. Como o caso Tancos explodiu em plena campanha eleitoral?
O caso Tancos chega à campanha das legislativas com Marcelo Rebelo de Sousa a reagir a uma notícia que o envolvia no caso do roubo das armas do paiol militar.
A TVI noticiou, esta terça-feira, que o major da PJ-Militar, Vasco Brazão, se referiu numa escuta telefónica ao Presidente da República como o "papagaio-mor do reino" que, segundo ele, sabia tudo. O Presidente da República reiterou, nesse mesmo dia, nunca ter sido informado, por qualquer meio, sobre o alegado encobrimento na recuperação das armas furtadas de Tancos e sublinhou que "é bom que fique claro" que "não é criminoso".
"Nem através do Governo, nem através de ninguém no parlamento, nem através das chefias militares, nem através de quaisquer entidades de investigação criminal, civil ou militar, nem através de elementos da minha equipa, da Casa Civil ou da Casa Militar, nem através de terceiros, não tive", declarou Marcelo Rebelo de Sousa às televisões, à margem da Assembleia-geral das Nações Unidas, em Nova Iorque.
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Na quinta-feira, os 23 arguidos do processo de assalto ao paiol de Tancos começaram a ser notificados e saiu a acusação de Azeredo Lopes por abuso de poder, denegação de justiça e prevaricação. Ao final da tarde, Rui Rio afirmou que António Costa "ou sabe ou não sabe. E ambas [as hipóteses] são muito más".
"Perante um assunto desta gravidade o ministro da Defesa não avisa o primeiro-ministro? Sabemos que articulou com o presidente da concelhia do PS que também é deputado e não articula com o primeiro-ministro?", questionou o líder do PSD.
Em resposta, Costa disse, ao final da tarde de quinta-feira, que não reconhecia a Rio "autoridade para fazer juízos morais".
"Quem sacrifica o que são os princípios fundamentais da sua vida política, envergonha-se mais a si do que a quem pretende atingir", foi desta forma que o primeiro-ministro reagiu às declarações do líder do PSD sobre a acusação do Ministério Público no caso de Tancos.
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