"Compor é como ser arquiteto e entregar planos às pessoas para habitarem a nossa casa"
Os castelhanos Vetusta Morla, o grupo do milénio para a Rolling Stone espanhola, atuaram este sábado no NOS Alive. A TSF esteve à conversa com a banda que está a reinventar o rock da Península Ibérica.
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Foi como entrar em casa e começar a desenhar o mapa do mundo, sair da carapaça e emergir na orla dos tempos cáusticos. Vetusta Morla regressaram ao palco do NOS Alive, onde tinham estado em 2016, para abanar o esqueleto de convicções ósseas sobre a música castelhana.
Entraram e desarrumaram, ofereceram um dia 'raro' - em espanhol, 'esquisito' - com a 'maldita doçura' que inflama os mapas conhecidos da escolinha da infância. Mas o que os Vetusta Morla conseguiram foi pontapear-nos 'con la punta del zapato', fazer-nos entrar o código genético do rock pelos poros, varrer as ossadas do 'mainstream' para debaixo do tapete, e provar que também há música de 'pelo na venta' em Tres Cantos, a 23 quilómetros a norte de Madrid.
A banda da tartaruga antiga não está fossilizada. Provou, antes, que nem a 'deriva' os fez perder os cantos à casa, e que incendiar o mundo se inicia pelos tímpanos; ou, por outra, que os saltos mortais ('Pequeño Salto Mortal', editora criada pelos Vetusta em 2008, ano do álbum de estreia) às vezes se fazem a passo de réptil, mas que afloram a explodir em todas as direções.
Depois de um concerto graficamente estimulante, em que as mensagens políticas se agitaram como bandeiras e os seis amigos (Pucho, David "el Indio", Álvaro B. Baglietto, Jorge González, Guillermo Galván e Juanma Latorre) deram voz, teclas, cordas e percussão à viagem que iniciaram em 1998, Guille Galván, um dos guitarristas e teclistas, letrista, aterrou à conversa com a TSF. Uma entrevista para trazer à tona memórias e a planta arquitetada para uma casa onde cabem fãs de todo o mundo e distinções da Rolling Stone dedicada à música latina.
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Este foi mais um concerto cheio de intensidade, como costumam ser os vossos. Quem são os Vetusta Morla? Que identidade nova trazem para cima do palco?
Somos uma banda de seis amigos do mesmo bairro, que estão juntos desde miúdos. Aprendemos a fazer música juntos há 20 anos, e, durante todo esse tempo, a cada novo álbum, temos tentado encontrar uma identidade com as bases que sempre nos uniram, mas com algumas mudanças e evoluções. É o que estamos a fazer com 'Mismo sitio, Distinto lugar', o mais diferente dos nossos trabalhos, no qual nos tentámos abrir e fazer coisas que nunca fizemos antes.
O que há de encantador é que, mesmo que não entendas a lírica, aquilo que uma canção pode transmitir tem muita potência.
Vetusta Morla: porquê? Parece um nome místico e quase enigmático.
Morla é uma personagem de um livro [tartaruga], "A História Interminável", de Michael Ende. Era algo que todos tínhamos lido na adolescência. Era uma referência para todos nós e decidimos que ficaria bem no nome da banda.
Há muito que vocês ultrapassaram a dimensão do vosso país. Apesar da barreira linguística, a vossa música soa a universal. Há uma fluidez e uma facilidade que faz com que as pessoas de qualquer país acompanhem as canções. Qual é a fórmula que possibilita que a vossa música chegue a toda a gente?
Nós crescemos a ouvir música cantada em inglês, e muitas vezes não entendíamos o que queria dizer. O que há de encantador é que, mesmo que não entendas a lírica, aquilo que uma canção pode transmitir tem muita potência.
Temos a sorte de levar a nossa música a muitos países, principalmente da América Latina, mas também da Europa, onde encontramos públicos muito diferentes mas que entendem a música da mesma maneira.
Tentamos associar as canções a outras experiências, pensadas para que as pessoas se imaginem dentro de uma paisagem.
Os vossos álbuns também nos remetem para a viagem, com referências a 'Mapas' (2011), 'deriva' ('La Deriva', 2014) e exploração de um novo território, com ´Mismo sitio, Distinto lugar' (2017). Como tem sido esta jornada, desde que se iniciaram, em 1998?
Sim, é verdade, os nossos discos e canções têm muitas referências geográficas. Escrever canções é como desenhar mapas ou como ser arquiteto e entregar planos às pessoas para habitarem a nossa casa. Através da música, sempre tentamos situar-nos no mundo, como aconteceu desde o nosso primeiro álbum, "Un día en el mundo". Os discos servem para nos entendermos como pessoas e artistas.
E são também o reflexo do mundo em que vivemos atualmente. 'La Deriva' (2014) era um álbum com críticas muito políticas.
'La Deriva' era um álbum mais direto e frontal, tanto nas melodias como nas letras carregadas de raiva e protesto. Tudo aquilo que fazemos tem uma perspetiva, passada pelo nosso filtro, mas que tem a ver com tudo aquilo que se passa à nossa volta. As canções às vezes são mais sociais, às vezes mais políticas. É sempre a realidade o que nos nutre e é ela a nossa musa.
Estamos no mesmo sítio, mas num lugar diferente. É como regressar, depois de adultos, à escolinha onde fomos felizes. O sítio é o mesmo, mas irás vê-lo de outra forma.
Ver-vos em palco é quase uma experiência transcendental. É uma ativação de todos os sentidos. Como é que as vossas atuações são pensadas para que tenham todas essas camadas?
A música é sinestésica e pode ser compreendida com vários sentidos. Vivemos um momento em que a música não apenas se escuta mas também se vê, quer seja nos concertos, quer seja nos videoclipes. E cada vez mais, de uma forma consciente, tentamos associar as canções a outras experiências, pensadas para que as pessoas se imaginem dentro de uma paisagem e as associem às suas próprias referências.
Quais são as vossas influências musicais?
O núcleo duro é o rock, principalmente o anglo-saxónico, que foi o que nos juntou quando tínhamos 16 ou 17 anos. Claro que cada um de nós tem os seus gostos próprios... Tivemos também outros projetos paralelos, com outros tipos de música, como o David [baterista] e o Jorge [teclista e percussionista] que estão relacionados com o flamenco. O [guitarrista] Juanma produz outros artistas. Tudo isto faz com pareça muito complicado criar um estilo, já que somos tão ecléticos, mas a verdade é que se torna mais especial e fértil por isso.
É uma pena que, Portugal e Espanha estando tão juntos, não tenham uma troca mais acentuada de artistas(...) Gostávamos de ver mais artistas portugueses em Espanha.
Como é estar neste 'Mismo Sítio, Distinto Lugar'?
A digressão de promoção de álbum 'La Deriva' foi muito longa, e, quando terminámos, sentimos a necessidade de não nos vermos durante um tempo. Quando nos voltamos a juntar tínhamos dúvidas sobre o que íamos fazer e de como nos sentíamos.
Durante o processo de produção, demo-nos conta de que o nosso espaço comum continuava a ser o mesmo: escrever canções é estar em casa, essa que fomos construindo. Demo-nos de que conta de que tínhamos as mesmas motivações que tínhamos quando começámos, ainda que tenham passado 20 anos. Por isso é que estamos no mesmo sítio, mas num lugar diferente. É como regressar, depois de adultos, à escolinha onde fomos felizes. O sítio é o mesmo, mas irás vê-lo de outra forma.
Oxalá que a onda provocada por todos os artistas 'mainstream' faça com que as pessoas não se fiquem pela espuma e mergulhem na diversidade da música feita em castelhano.
E como é voltar a Portugal, pela quarta vez, sempre acompanhados por um público fiel que vem de Espanha?
A primeira vez em que atuámos em Portugal foi em outubro de 2015, na Casa da Música, e, no ano de 2016, viemos pela primeira vez ao Alive. Por proximidade, o público espanhol acompanha-nos nos concertos.
Mas é muito bonito ver a forma com as pessoas portuguesas também se interessam pelas canções. É uma pena que, Portugal e Espanha estando tão juntos, não tenham uma troca mais acentuada de artistas, e que a programação musical não permita, com frequência, quebrar essa barreira. Gostávamos de ver mais artistas portugueses em Espanha.
Conhecem músicos portugueses? Têm referências?
Conhecemos The Gift há muito tempo. Coincidimos em palco várias vezes, temos uma boa relação com eles, e são aqueles que conhecemos melhor. Também gostamos de David Fonseca.
Este é um bom momento para a música espanhola...
É uma época muito interessante, com muitos estilos diferentes. A música latina 'mainstream' está a ter um grande impacto, com muitos artistas a cantar em castelhano, e isso faz com que chegue a um mercado internacional.
É também um bom momento para revisitar tudo o que foi feito anteriormente na música espanhola, em todos os géneros, porque há muita riqueza sonora. É um mundo em si mesmo, com um monte de estilos e de influências diferentes. Oxalá que a onda provocada por todos os artistas 'mainstream' faça com que as pessoas não se fiquem pela espuma e mergulhem na diversidade da música feita em castelhano.