Crise nas urgências: bastonário dos médicos lamenta "banalização do sofrimento" e uso do SNS "como arma de arremesso político"
Ouvidos no Fórum TSF, enfermeiros e administradores hospitalares pedem uma "mudança do próprio paradigma na saúde". Argumentam que a valorização dos centros de saúde, para que estes sejam mais "resolutivos", é essencial para pôr fim à crise nas urgências
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"Caímos nesta banalização do sofrimento." O alerta é feito pelo bastonário da Ordem dos Médicos, que lamenta os elevados tempos de espera nas urgências. Ouvido no Fórum TSF, Carlos Cortes apela a um "grande consenso nacional e político de não utilizar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como arma de arremesso político".
A semana passada ficou marcada pelos elevados tempos de espera de doentes urgentes nos hospitais, um pouco por todo o país. Este fim de semana não foi exceção, com utentes a esperarem 17 horas para serem atendidos. Face a esta situação, Carlos Cortes pede "reformas" urgentes e apela a um consenso no país para melhorar o SNS.
"Há aqui algo que tem de ser feito muito rapidamente, com novas formas de olhar para a saúde. Eu não vejo outra forma de o fazer a não ser através de um grande consenso social e político de não utilizar o SNS permanentemente como uma arma de arremesso político", aponta.
O bastonário quer um "grande sentido de responsabilidade", não só da parte do Governo, mas também dos partidos políticos e da Assembleia da República.
Carlos Cortes argumenta mesmo que o SNS, hoje, não é uma "mais-valia que se note para as pessoas. Bem pelo contrário". Defende igualmente que a situação atual nos hospitais é inaceitável, mas está a tornar-se no novo normal.
"Eu recordo que há dez ou 20 anos os tempos de espera não eram desta dimensão. Os doentes com pulseira verde, que têm de ser vistos ao fim de duas horas, queixavam-se porque só eram vistos ao fim de uma ou de uma hora e meia. Era muito raro fecharem urgências. Quando uma urgência de um hospital fechava, há dez ou vinte anos, era um acontecimento nacional", nota.
Denuncia assim a situação "desumana" vivida nos corredores dos hospitais e lamenta aquilo a que chama "banalização do sofrimento".
"Hoje em dia, caímos nesta banalização do sofrimento, em que as pessoas já sabem que vão ter de esperar. Alguém que espera seis horas, que já é desumano, já se pode considerar até satisfeita de só ter esperado seis horas", critica.
O bastonário da Ordem dos Enfermeiros, Luís Filipe Barreira, pede igualmente uma "mudança do próprio paradigma na saúde", apresentando como caminho alternativo a aposta na "valorização dos cuidados primários e o reforço dos cuidados no domicílio e nos cuidados de proximidade".
"É urgente apostarmos num modelo assistencial que reforce os cuidados no domicílio e que dote de meios os cuidados de saúde primários, para que estes possam ser uma porta de entrada no SNS", adianta, acrescentando, por outro lado, a necessidade de aumentar a capacidade de resposta nos cuidados continuados e das estruturas residenciais para idosos.
Quem partilha da mesma opinião é o presidente da Associação de Administradores Hospitalares. Xavier Barreto defende que os centros de saúde têm de ser "mais resolutivos" e assegura que esse esforço já tem sido feito.
"Temos criado algumas respostas sazonais: no inverno, abrimos os centros de saúde durante os fins de semana e feriados", sublinha, lamentando, contudo, que depois estes voltem a "encerrar" sem que seja criado "um novo circuito em que as pessoas se revejam".
"Os próprios centros de saúde têm de ser capacitados com meios de diagnósticos, imagiologia e patologia clínica para poderem resolver o problema das pessoas, para que elas depois não tenham de ir para o hospital", explica.
Xavier Barreto considera por isso que é urgente pensar na rede de cuidados de saúde primários de "uma forma mais sustentável e consequente", sendo para isso necessário capacitá-los "com equipas, equipamento e mantendo esta reposta aberta ao longo de todo o ano".
Num período em que o número de infeções por gripe é crescente, o líder da Associação de Administradores Hospitalares defende que o alargamento do projeto 'Ligue antes, salve vidas' criou uma "enorme pressão" na Linha SNS 24 e, por isso, pede o seu reforço. Comparativamente ao ano homólogo, em 2024 foram atendidas "quase o dobro das chamas".
"Têm de ser monitorizado de perto estes indicadores de desempenho e a linha tem de ser reforçada. Nas próximas semanas é expectável que esta situação continue a ser muito difícil. Nós vamos continuar a ter os relatórios do INSA - que é a entidade em Portugal que motoriza a época de gripe - a dizerem-nos que, de facto, estamos num período de crescente de infeção de gripe e, portanto, é expectável que nós tenhamos maior procura de serviços de urgência nas próximas semanas", antecipa.
O ex-ministro da Saúde Fernando Leal da Costa fala ainda na chegada de "um número muito grande" de utentes às urgências, encaminhados pela própria linha.
"Há uma necessidade de procura de cuidados médicos que acaba por esbarrar no serviço de urgência, porque não tem outro lado para onde ir. E essa é que é uma questão fundamental", identifica.
Portugal, diz, está a ser cada vez mais confrontado com "uma população potencialmente idosa" e, por isso, mais "propensa para ter doenças, nomeadamente nestas fases sazonais", e que precisam de avaliação médica que "não pode ser feita à distância".
"As pessoas têm de ser vistas por um médico e têm de o encontrar onde ele existir e, nestes casos dos grandes centros urbanos, acabam por ser os serviços de urgência", reconhece.
Sobre isto, o antigo diretor-geral da Saúde Francisco George aconselha a população que ainda não está vacinada a fazê-lo, já que a vacinação "reduz sobretudo a incidência e os casos novos mais graves" das infeções.
"Quem não foi vacinado, vai ainda a tempo de ser vacinado. Quem está vacinado, tem menos probabilidade de ter casos graves. Não tendo casos graves, não precisa de ser tratado em ambiente hospitalar e isto faz toda a diferença", atira.
