Críticos ganham peso, mas Catarina Martins mantém-se firme. O que está em causa na convenção do BE?
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Os críticos acreditam que o Bloco de Esquerda (BE) sairá mais plural e diverso após a XII Convenção Nacional que vai debater cinco moções: uma do núcleo duro do partido e quatro da oposição interna. Catarina Martins continuará líder pelo menos até 2023, mas as críticas de falta de democracia interna e de uma "geringonça falhada" vão fazer-se ouvir.
Os bloquistas reúnem-se a 22 e 23 de maio, no Porto, com um aumento dos opositores, ainda que fiquem longe dos delegados da moção da direção nacional. Catarina Martins conseguiu 233 delegados, e atrás só a moção E, com a grande franja crítica, com 66 representantes.
São 343 delegados para discutir o futuro do partido nos próximos dois anos, uma redução para metade em relação à última convenção. A justificação é a pandemia e o cumprimento das regras sanitárias, mas Pedro Soares, antigo deputado e subscritor da moção E, considerou em entrevista à TSF que a medida é "incompreensível".
Quase três anos depois da última convenção, perceba o que vai ser discutido e o rumo que os militantes querem para o partido.
Moção A - Catarina Martins une a direção em torno do partido
A primeira moção apresentada aos militantes do BE, subscrita por Catarina Martins, envolve-se num amplo consenso dentro do partido. As principais figuras bloquistas subscrevem a moção, incluindo o Presidente do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda e antigo candidato à liderança do partido contra Catarina Martins, Pedro Filipe Soares.
A antiga candidata à presidência da República, Maria Matias, e uma das mais notáveis deputadas do partido, Mariana Mortágua, também acompanham a atual coordenadora do Bloco de Esquerda.
Com o mote "sair da Crise, lutar contra a desigualdade", a referência ao Governo e à antiga "geringonça" surge logo nos parágrafos iniciais da moção, com o partido a acusar do PS de se ter inclinado para o centro.
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"A experiência da "geringonça", da qual o PS se afastou e que não quis reeditar, mostrou que era possível uma política que valorize salários, pensões e apoios sociais, mas esbarrou nas metas de défice impostas por Bruxelas, aliás ultrapassadas pelo Governo", lê-se no documento.
Pelo meio, há ainda críticas aos partidos que suportam o Governo, entre PAN e PCP, o que faz com o Bloco se assuma como a "alternativa à esquerda que se opõe à desigualdade e se bate por uma política consistente", com a criação de emprego e rejeição à austeridade.
"Confortada à direita pelo apoio do Presidente da República e legitimada pelo PCP e pelo PAN, a política de débeis paliativos permite ao PS expandir-se no centro político, que ocupa sozinho desde que o PSD confirmou a sua dependência tácita de uma aliança com a extrema-direita", escrevem os subscritores.
O Bloco acusa ainda o Governo "ensaiar crises políticas" e de fazer "chantagem" com "a perda do poder para a direita radicalizada".
Os objetivos são retirar o país da crise pandémica, numa "luta pelo bem comum, ecologista, feminista, antirracista e anticapitalista". "É o seguro de futuro da humanidade", dizem.
As eleições autárquicas são vistas pela direção nacional como uma oportunidade para "aumentar e rejuvenescer a representação nos municípios e freguesias". Abre-se a porta a candidatos independentes, mas as coligações com a direita e com o PS são automaticamente descartadas.
Moção E - A verdadeira oposição a Catarina Martins
A moção E agrega grande parte da "oposição" interna a Catarina Martins, depois da dissidência de elementos da União Democrática Popula (UDP), em relação à moção da direção. São cerca de 500 militantes que criticam o "excessivo parlamentarismo", a desvalorização do trabalho autárquico e a relação com o PS.
A UDP é um dos partidos que deu origem ao BE, além do Partido Socialista Revolucionário (PSR) e da Política XXI. Depois da saída de Francisco Louçaã da liderança do partido, as três tendências desapareceram e deram origem a duas correntes: socialismo e esquerda alternativa.
Os militantes que subscrevem a moção reveem-se, no entanto, na tomada de posição do partido quanto ao voto contra o Orçamento do Estado, mas criticam a inação na opinião pública, "disseminando a surpresa e até alguma incompreensão entre alguns militantes".
Sobre os futuros Orçamento do Estados, há abertura para uma reaproximação ao PS, desde que sejam garantidas as bandeiras que o partido defende. "O Bloco de Esquerda não se associa nem se compromete com medidas de austeridade nem que atentem contra a dignidade da vida humana, princípio intransponível pelo qual deve determinar a posição a adotar nos Orçamentos de Estado."
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Ora, mas o que correu mal na relação PS-BE? A moção nota que o partido se desviou do seu programa para acudir o Governo, com o pretexto da estabilidade.
"No caminho até à disputa eleitoral de 2019, o PS tinha de ser confrontado com um novo caderno de encargos, em vez do minimalista acordo inicial, mas o Bloco optou por defender a estabilidade como um valor em si e o prolongamento de uma solução institucional com o PS como eixo central da sua estratégia, secundarizando o seu próprio programa eleitoral", escrevem. Pedem, por isso, uma agenda própria, fazendo valer os interesses do partido, como superação da austeridade e a emergência climática.
Os militantes defendem que a estratégia definida na anterior convenção de "ser força de governo, com uma nova relação de forças" falhou, assim como os resultados de Marisa Matias nas eleições presidenciais, apesar do seu "voluntarismo e esforço".
Em ano de eleições autárquicas, o trabalho autárquico e local também tem de ser valorizado, assim como a bandeira da regionalização. "A desvalorização do trabalho local e autárquico, aliados ao centralismo, verticalização, funcionarização e excessivo parlamentarismo foram e são fatores de desmobilização das bases", alertam.
Pede-se ainda mais "pluralidade e diversidade", valorizando as estruturas de base, em torno de um projeto político comum, que agregue todas as "sensibilidades" que compõem o partido.
A moção sustenta que o BE deve-se assumir como uma alternativa política à esquerda "de quem nada espera do PS, nem fica à espera do PCP".
Moção C - "Mais democracia" interna e a relação com PS
A segunda moção em debate, subscrita por apenas 25 militantes, defende "mais democracia interna, mais organização, mais Bloco, menos tendências" para o partido. Ainda assim, adiantam que, ao longo do mandato, estiveram ao lado das políticas da direção nacional, que "consideram terem sido as mais adequadas".
"Não obstante terem sido feitos progressos, persistem motivos para críticas ao funcionamento do Bloco, que continua a ser prejudicado pela agenda das tendências, que são um obstáculo à organização e democracia internas e é para isso que apresentamos esta plataforma/moção", lê-se.
As críticas tornam-se mais evidentes quando se acusa a direção de "ausência de um projeto político coerente", o que levou à criação de mais moções, de acordo com os subscritores.
A moção C pede ainda o fim das tendências no BE, alertando para a possibilidade de o partido se tornar irrelevante no futuro. "Enquanto as tendências não acabarem, é muito importante que nenhuma delas controle completamente o Bloco. Se isso acontecer, então será o fim do Bloco de Esquerda e regressaremos ao tempo dos grupúsculos completamente irrelevantes", avisam.
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Quanto às alianças externas, defendem que tudo deve ser feito para evitar o crescimento do fascismo, lembrando que o PS, "embora não seja socialista, é um partido democrático e antifascista o que, nos tempos que correm, não é despiciendo".
"Devemos continuar disponíveis a estar ao lado do PS e de outros partidos democráticos, sempre que estiver em causa a defesa da Democracia e a luta contra o fascismo. Não devemos repetir a velha tática estalinista dos anos 30 do século passado, que considerava os sociais-democratas como inimigo principal, facilitando assim a ascensão do nazi-fascismo", escrevem.
No entanto, as críticas ao Governo fazem-se sentir logo de seguida: "O apoio do PS a Marcelo nas últimas eleições veio demonstrar uma perigosa aproximação ao centro que vai garantir ainda mais o capitalismo, e validar a nossa decisão na votação do Orçamento".
E também nesta monção o PCP não passou despercebido: "O PCP tem-se notabilizado por apoiar ditaduras neoestalinistas, como a Coreia do Norte e China, entre outras. O PCP evidencia também posições anacrónicas e conservadoras em matérias sensíveis como a eutanásia e as touradas, entre outras. Em suma, estaremos com o PCP naquilo que temos de estar, estaremos, sem complexos, contra as distopias que ele defende".
Os militantes defendem ainda um corte do partido com a CGTP lamentando que, no último congresso, "nenhum dos delegados teve oportunidade de intervir apesar de todos estarmos inscritos".
"Ao sujeitarem-se às humilhações infligidas pelo setor do PCP que controla a central sindical, não estão a dignificar a nossa imagem, mas estão a assumir o seu fraco desempenho sindical", pelo que pedem mais força ao partido junto das comissões de trabalhadores.
Moção N - Marisa Matias e a falta de debate interno
Nas moções críticas da direção nacional, há uma crítica predominante: a relação do partido com o PS, e a incapacidade para negociar novas metas após o acordo de 2015. Os críticos da moção N afirmam que as estratégias do BE "beneficiaram o Partido Social Democrata e, em menor medida, possibilitaram "segurar" o Partido Comunista Português junto do seu eleitorado".
Os militantes que subscrevem a moção N não compreendem os moldes em que foi lançada a candidatura de Marisa Matias à Presidência da República, "sem debate interno, sem mobilização interna e sem a definição das políticas estratégicas a defender pela candidatura". Os críticos defendem ainda que o BE deveria ter apostado numa "convergência à esquerda" com João Ferreira e Ana Gomes, obrigando Marcelo Rebelo de Sousa a disputar uma segunda volta, e evitando que André Ventura ficasse às portas do segundo lugar, que só não aconteceu "graças a um inconsciente coletivo que soube distinguir entre o que era importante e o que era acessório neste combate político".
Os militantes descontentes apontam ainda críticas à desvalorização das bases, com uma direção nacional que "é surda em relação àquilo que as bases murmuram ou gritam", sendo "necessário acabar com a partilha de cargos e de postos entre as duas correntes principais do Bloco de Esquerda".
"Esta situação é agravada por uma profunda incapacidade de se relacionar com as Distritais e o facto de ter transformado os respetivos funcionários numa extensão do Grupo Parlamentar e da Direção Nacional, em torno dos quais funciona o partido/movimento", escrevem.
Quanto ao futuro, prevê-se uma crise política, que poderá beneficiar o atual Governo, com políticas que "irão esgotar a capacidade de "aceitação de migalhas orçamentais" que tem caracterizado as relações à esquerda desde 2017".
É, por isso, altura de o partido lançar um ultimato a Costa: "Ou aceita um acordo (escrito e assinado) com uma clarificação das linhas vermelhas e com uma aposta decisiva no desenvolvimento; ou haverá crise política".
A moção aponta a reforma da justiça, reforço do ensino público, regionalização, renegociação da dívida e a legislação laboral como algumas das bandeiras que o partido deve adotar nos próximos dois anos.
Moção Q - Um partido-movimento que se tornou "num partido tradicional"
A última moção submetida a escrutínio prende-se com oito correntes que os militantes querem ver aplicadas. O objetivo primordial é combater a crise com uma política anticapitalista.
Os militantes defendem que a "gerigonça", da qual o BE fez parte, interrompeu a austeridade, mas apenas para "a substituir por uma austeridade light, não invertendo o essencial da política de favorecimento do capital face ao trabalho". Incitam, por isso, o partido a assumir-se como alternativa ao poder, e não como garante da estabilidade governativa.
Os alertas para o combate à extrema-direita são, mais uma vez, sublinhados, sob pretexto para que o partido volte a recuperar a imagem "antissistema", perdida depois dos acordos com o PS.
"Sem elas, há um espaço político vazio que vai tendencialmente sendo ocupado pelas forças demagogas da extrema-direita. Os acordos de governação com o PS, ao acentuarem a diminuição da dimensão do protesto, da mensagem de classe e da alternativa sistémica, deixaram ainda mais campo aberto para que o pior do sistema pudesse apresentar-se como se fosse uma forma de antissistema.", avisam.
Existem ainda críticas ao desvio do partido, desde a sua fundação, "surgindo agora apenas como um partido tradicional". Sublinham que "falta democracia interna, militância significativa e protagonismo das bases, sobra centralização, institucionalização e rotina", numa direção nacional fechada em si mesma.
Os militantes afetos à moção Q querem ainda que o partido limite os mandatos aos vários níveis da direção, de forma a prevenir a perpetuação nos cargos e o comodismo face à política interna.
